August 20, 2017

Reabilitando o sono


José Eduardo Agualusa

Na passada terça-feira desembarquei em São Paulo, numa madrugada glacial, zonzo e trôpego como um zumbi, mas ainda com menos vida e menos alma, depois de dez horas fechado na sufocante classe econômica de um avião da TAP. É em alturas assim que percebemos a importância de uma boa noite de sono.

Nos dias de hoje, os aviões são os territórios onde a luta de classes é mais explícita. Há algumas semanas compreendi totalmente o significado da frase, com um sabor já um tanto arcaico, “opção de classe”. Ainda antes do avião decolar fui abordado por uma das aeromoças. O comandante — meu patrício e meu leitor — convidava-me a ascender à classe executiva. Perguntei se a minha namorada poderia ir comigo. Não, pois havia um único lugar vago na executiva. Naturalmente, recusei. A minha opção de classe foi, afinal, uma opção de amor. Confesso que se me encontrasse sozinho, e tendo de enfrentar um voo noturno de dez horas, eu optaria por viajar com a burguesia. O que invejo mais na burguesia é o direito ao espaço. Ah, poder livremente mover os braços! Poder reclinar a cadeira, esticar as pernas, espreguiçar-me como um felino ao sol.

Cheguei exausto a São Paulo, e logo nessa noite tive de enfrentar uma atenta plateia de leitores. Tenho alguma desconfiança, misturada com admiração, por aquelas pessoas que quase não precisam dormir. Tenho ainda mais admiração pelas outras que, precisando muito dormir, como eu, conseguem adormecer em qualquer lado e em qualquer situação. O atual presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, afirma não precisar de dormir mais de quatro horas por noite, aproveitando o resto do tempo para ler e escrever. Não há como não o invejar. Mas sempre invejei mais um outro presidente português, Mário Soares, que ganhou fama de conseguir adormecer em qualquer circunstância — inclusive enquanto o entrevistavam.

Morrendo de sono, diante dos bravos leitores que haviam atravessado aquela gélida noite paulista para me escutar, lembrei-me de um poeta sul-africano que conheci, há muitos anos, em Berlim. Eram, na verdade, três poetas. Cada um deles estava sentado a uma pequena mesa branca. A sala permanecia na obscuridade, com excepção de três focos, colocados sobre cada uma das pequenas mesas. Uma jornalista alemã apresentava os poetas, numa dissertação longa, árida e monótona, que a mim me fez lembrar as infinitas estradas que atravessam o deserto da Namíbia. Ao fim de quinze imensos minutos, a plateia inteira cabeceava de sono. Eu próprio estava prestes a adormecer quando me dei conta, incrédulo, de que um dos poetas pousara a cabeça nos braços, e roncava. O inédito da situação despertou o público. A apresentadora terminou o seu discurso e dirigiu a primeira pergunta ao poeta adormecido. O poeta retorquiu com um áspero ronco. A jornalista, assustada, muito nervosa, levantou a voz, repetindo a pergunta. Nada. O poeta sonhava, impassível, debruçado sobre o puro esplendor da mesa. Então a mulher ergueu-se e gritou ao ouvido do poeta. Este acordou estremunhado, olhou-a de alto a baixo, e disse: “A essa pergunta, eu não respondo”.

Levantei-me para o aplaudir.

Durante séculos o sono foi visto como uma incompreensível perda de tempo, quase um vício, e os seus cultores mais apaixonados, desprezados como mandriões. Nos últimos anos, felizmente, a ciência vem reabilitando o sono. Ratinhos de laboratório impedidos de dormir morreram, por falência do sistema imunitário, em menos de dez dias. Nada de surpreendente. Não deveria ser preciso assassinar ratinhos para demonstrar algo tão evidente. A tortura do sono é utilizada desde há muito tempo em regimes totalitários e presumíveis democracias, para quebrar os prisioneiros sem deixar marcas físicas.

Num estudo levado a cabo pela Universidade de Chicago, em 2015, um grupo de homens saudáveis, com idades entre 18 e 27 anos, foi impedido de dormir mais de quatro horas durante seis dias. Ao fim desse tempo, o seu organismo estava tão desgastado quanto o de pessoas 40 anos mais velhas. A insulina no sangue descera para níveis semelhantes aos de portadores de diabetes.

Não dormir envelhece. Esta, a principal conclusão de todos os estudos sobre o tema. A outra desventura, ainda que não mencionada em nenhum desses estudos, é que quem não dorme, não sonha. Sendo um grande dorminhoco, eu sonho muito. E sonhar, como tento explicar em entrevistas e nos encontros com os meus leitores, é parte do meu ofício: costumo sonhar com enredos, com personagens, com diálogos e até com os títulos dos meus romances. Privado do sono, privado dos sonhos, não só me arrisco a envelhecer rapidamente e sem glória, como, ainda pior, definharei enquanto escritor.

Ah! Só quero uma boa cama, um travesseiro com plumas de ganso. Deixem-me dormir, dormir, dormir. Deixem-me dormir até chegar o verão.

(o globo, julho 2017)


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