August 24, 2017

Atropelamentos são metáforas perfeitas para os dias que vivemos


Fred Coelho

1. Ele acorda e sabe que suas vontades serão lei. Ele é a lei. Ou ao menos a lei que só ele e seus pares conhecem. Lei que ignoramos, pois não sabemos dos incisos, das exceções, das brechas. Mesmo com chuva e frio, tudo ocorrerá como se um sol (de eclipse?) brilhasse sob os seus passos. Reuniões poderosas agitam seus fins de semana. Sentados em belo sofás, vivem a sensação rara de saberem que suas decisões alteram destinos nacionais. Como não sucumbir ao devaneio do ego? Como não se sentir acima de tudo? Ele é a lei.

2. Em “A hora da estrela” (1977), Macabéa vive um tempo suspenso. Sem passado que lhe funde e sem presente que lhe signifique, só o futuro ignorado e incerto pode apresentar alguma possibilidade de sobrevivência. Clarice Lispector faz o gran finale de um romance perfeito dando à personagem o direito a um futuro promissor. Na mesa da Cartomante de Olaria, um estrangeiro surge no horizonte, com dinheiro e amor para a pobre mulher que ocupa “o pardo pedaço da vida imunda”. Mas eis que, ao sair rumo ao futuro, é atropelada. O destino estrangeiro se confirma no Mercedes-Benz que se choca contra seu frágil corpo. Macabéa nunca tinha aspirado um futuro, mas sabia que só ele garantia o cotidiano árido da Rua do Acre. Quando ele finalmente se torna promessa, a vida cessa. “Quanto ao futuro”, diz a autora em um dos 13 outros possíveis títulos do romance. Quanto ao futuro, ninguém mais sabe.

3. Ele se senta em sua mesa e envia mensagens. Algumas delas já foram até mesmo vazadas pela imprensa. Mas e daí? Ele é a lei. Sabe que privado e público é uma questão de perspectiva. Com a tenacidade dos donos da verdade, entende a liberdade como direito fraterno, e não se furta em soltar de prisões justamente aqueles que parecem mais enrolados com a lei. Mas, se ele é a lei, quem decide isso? Se não se pode desejar uma sociedade justiceira cuja prisão se torna resposta para tudo, muito menos se pode aceitar uma sociedade em que a prisão é apenas para os que não têm amigos na lei. A injustiça social do país se torna a cada minuto mais destruidora de vidas e gerações. Se já não bastam todas as manchetes políticas girarem ao redor de dinheiro (para campanhas, para emendas parlamentares, para partidos sem voto, para cargos) e todas as manchetes sociais afundarem ao redor de violências (recordes de estupro, linchamentos, mortes por crime ou por inépcia do Estado), lá está ele, envolto em capas e mantos e frases que flutuam em sua força inexplicável.

4. Em 1968, nove anos antes de Clarice parir a vida e morte muda de Macabéa, Gilberto Gil compôs a canção “Ele falava nisso todo dia”. É a história e um rapaz de vinte e cinco anos que só pensava em garantir o futuro de sua família. A sina de uma vida insegura quanto ao porvir simultaneamente espirala outros destinos. Se morresse cedo, “o seguro de vida, o pecúlio” trariam “a certeza do dever cumprido”. Não faltar aos seus, eis a meta. Como Macabéa, só há a possibilidade de futuro com uma morte silenciosa na linha do horizonte. A letra da música diz que “se morresse ainda forte, um bom seguro era uma sorte pra família”. Morrer com um seguro de vida, no final das contas, vira loteria. O futuro que se promete é, novamente, vazio de presença. Na verdade, o rapaz de vinte e cinco anos poderia estar saindo da cartomante em Olaria, já que “hoje ele morreu atropelado em frente à companhia de seguros”. Oh, que futuro.

5. Ele não se importa com o futuro. Os dias que virão serão sempre iguais ao presente que será sempre igual ao passado. Nada se move para a frente. O que se avança, ele sabe que o atraso alcança. Ele é um intervalo de vida. Ele entope a veia de uma possível renovação. Não o conheço, não sei nem exatamente quem é. Mas todo dia ele acorda e dorme com a consciência tranquila de que faz de tudo para salvar seus privilégios. Para selar uma concepção tacanha e mesquinha de país. Ele pode estar em qualquer lugar. Não irá na cartomante, não desejará uma nova chance de porvir, pois ele é a lei. A verdade do tempo e do espaço tem, em seus dedos, boca aberta e caneta ligeira, o ponteiro e o compasso. Não o conheço. Mas sinto o hálito podre dele em todos os lugares.

6. Macabéa e o rapaz de vinte e cinco anos não viram o futuro prometido. Morreram antes das promessas do mundo para si ou para os seus. Para ela, um novo tempo de amor. Para ele, a preservação de uma dignidade pós-morte. Ambos, atropelados, viram seus sonhos frustrados. No caso do rapaz, não sabemos se ele morreu antes ou depois de ter feito o seguro. Fica a dúvida com a ponta de tristeza sobre o fracasso de seus planos. Na hora de sua morte, Macabéa vislumbra o capim. Já o rapaz de vinte e cinco anos vislumbra o instante vazio.

Atropelamentos são metáforas perfeitas para os dias que vivemos. Nem sabemos mais de onde vêm os bólides que passam por cima de nós, todos ao mesmo tempo. Sabemos apenas que, de alguma forma, ele está com uma das mãos no volante.


No comments:

Post a Comment