June 2, 2017

TOC (Taxa de Ódio Circulante)


Marcio Tavares D'Amaral

A Taxa de Ódio Circulante (TOC) chegou a níveis insuportáveis no Brasil. Quando dois colunistas assumidamente de direita divergem, e um manda o outro, nas redes sociais, dar a terceiros determinada parte posterior da sua anatomia, chegamos a um limite. Até aqui havia golpistas e antigolpistas, coxinhas e mortadelas. Esquerda e direita. Tenho escrito aqui que acredito ainda existirem sensibilidades ideológicas de esquerda e direita.

Muito esquematicamente, correndo portanto, em falta de melhor, o risco da simplificação, há uma visão que põe ênfase no desenvolvimento humano e social, outra que prioriza o crescimento econômico. Com todas as consequências, boas e más, que políticas derivadas dessas escolhas implicam. Os grupos políticos que expressam essas tendências se combatem. É a regra. Mas, de repente, entre nós, o povo todo, as famílias, companheiros de trabalho, amigos têm posto uma energia odienta na relação com os seus adversários políticos, agora inimigos. “Vai pra Cuba!” “Vai pra Miami!” Esses são mimos que se trocam nas redes, e a grande imprensa ecoa e estimula. E não somos um povo politizado, de verdade. Nossa cultura política é paupérrima. Conheço gente que ia votar no Bolsonaro no ano que vem e, diante de algumas ponderações, decidiu que “então” votaria no Lula. Assim: “então.” Agora o ódio chegou na direita x direita. Foi engraçado. Mas é sintoma de um tremendo naufrágio. Dentro do mesmo campo, parece, há agora a esquerda da direita e a direita da esquerda. E esses desviantes devem ser execrados como a direita e a esquerda se execram: de maneira total. Totalitariamente. Sem resto.

Reinaldo Azevedo e Diogo Mainardi são notoriamente comentaristas políticos de direita. Seus artigos costumam ser pau puro no adversário-inimigo. Eles têm ideias, fazem análises. Os outros são cachorros de Pavlov, não pensam, babam. E tome ferro. São conhecidos assim. Em matéria de ódio à esquerda, podemos sempre contar com eles. Pois deu-se lá o dia em que Reinaldo decidiu escrever sobre o que considerou desmandos do juiz de Curitiba. Analisou suas atitudes no interrogatório do Lula e concluiu que o juiz havia pisoteado a lei. Análise meticulosa, mesmo serena. Pois bastou para Diogo mandar Reinaldo ir dar a parte do corpo que lhe serve de assento. Desavença nos arraias do ódio direitista. Mas, para quem está atento ao crescimento da TOC, foi um sinal alarmante. Uma TOC próxima de 100% tornará a vida inviável. A incivilidade já está nas nuvens. Para manter amizades está-se optando por não falar de política. Mas quando os do mesmo saco começam a derramar a própria farinha, o alerta dispara. Estamos talvez perto da ruptura. E não sei vocês, mas eu por mim sou dos cretinos do diálogo. Acredito nisso. Liberdade, igualdade, fraternidade são parte das minhas orações da noite. Se não puder mais rezar isso, pego o meu boné e vou... De fato, vou para onde? A TOC está se pandemizando.

Então vou ficando por aqui mesmo. Contrariado e triste. Abro o jornal: DENÚNCIA DE TAL ARRASA TAL OUTRO. E penso: agora ferrou. E leio a submanchete, em letras menores: ONTEM TAL AFIRMOU QUE SOUBERA QUE... etc. Chamada para a matéria. E nela: “TAL declarou ontem perante a Junta que teve informação de que alguém disse que TAL OUTRO teria dito em roda de amigos que...” etc. Aí, diante desses fatos alternativos na mesma notícia, vamos às redes procurar “o outro lado”. E encontramos: “Informações desmontam denúncia de TAL”. Opa! Notícia! Vai-se ver, era: “Corre que TAL tem uma amante que conhece um operador da Junta”. E abaixo dezenas de comentários ferinos, de júbilo. E quem tenha, ainda, a desueta (de propósito, palavra já sem uso) amizade à verdade, a tal filosofia, ensombrece. Foi enganado duas vezes em direções contrárias. E a verdade... Mora num poço, disse Noel. O poço secou. A verdade está prisioneira lá no fundo. E sedenta. Coitada.

Outra coisa que se ouve é que (depende de quem diga) os comunistas estão chegando e querem pintar nossa bandeira de vermelho (sangue, suponho); ou que nem no tempo da ditadura foi tão ruim. Nem no tempo do nazismo. A primeira alegação é de uma pobreza e ignorância histórica de fazer chorar Eremildo, o idiota, vigilante das bobagens do mundo que Elio Gaspari criou para nós. Os comunistas chegando...! É preciso ser cego, ter visão trocada. A segunda afirmação é monstruosa. Desrespeita os torturados e mortos, torna invisíveis os judeus, homossexuais, ciganos gaseificados. — De onde se tiram tamanhas barbaridades, de lado a lado? Da TOC. A TOC não deixa pensar. Não deseja pensar. Quando já se sabe, quando as convicções abundam, mandam a verdade tomar atrás. Ô, filósofos, poetas, místicos, músicos, cientistas humanistas, vão... Vão...

A coisa está próxima da ruptura. Toc toc toc.

O Globo, maio 2017

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