Depois de reconhecerem amigo em vídeo na Cracolândia, ex-colegas querem custear tratamento de carioca
- Sarda era o apelido de Carlos Eduardo Albuquerque Maranhão porque ele tinha pequenas manchas pelo corpo todo. Depois começaram a chamá-lo de Jesus, por causa dos cabelos compridos. Para a família, era Dudu. Ruivo e com olhos pequenos, ouvia Deep Purple e AC/DC quando seus amigos do Colégio Santo Inácio, em Botafogo, ainda não sabiam o que era rock. Morava com os pais e três irmãos em uma casa sobre o Túnel Rebouças, no Jardim Botânico, antes de a família se mudar para um amplo apartamento na Lagoa Rodrigo de Freitas, na esquina da Avenida Epitácio Pessoa com a Rua Garcia D’Ávila.O garoto que matava aula para tocar violão com os amigos, atormentando os padres jesuítas do colégio, começou a usar drogas aos 16. Trinta anos depois, Carlos Eduardo mora nas ruas da Cracolândia paulistana e está sendo procurado por amigos que não o veem há duas décadas e querem ajudá-lo, pagando um tratamento para sua recuperação.
A não ser parentes próximos, ninguém sabia o destino daquele jovem descabelado, descrito pelos colegas como brincalhão, rebelde, contestador, irônico, às vezes irritante, outras assustador, comandante da “fuga” de uns 15 alunos que pularam o portão da tradicional escola, na Rua São Clemente, para ir a um comício pelas Diretas Já. Até que ele apareceu na internet em um vídeo da organização A Craco Resiste, grupo de apoio a dependentes químicos que vivem na Cracolândia. Postado dia 4 de janeiro, o vídeo viralizou na semana passada, após o prefeito João Doria determinar uma agressiva repressão na região com mil policiais, que espalhou os usuários por ruas do entorno.
AMIGA VOLTAVA DA ESCOLA COM ELE
Quando assistiu ao vídeo com o monólogo de Carlos Eduardo, em que ele fuma um cigarro no Centro escuro de São Paulo e manda um recado de nove minutos ao prefeito Doria, a executiva de marketing Pati Cannabrava quase não o reconheceu. O homem envelhecido que dorme na rua e confessa sua dependência química era o amigo com quem ela voltava de ônibus para casa, após as aulas no Colégio Bahiense, na Gávea. Pati morava ao lado da casa dele, na Rua Barão de Jaguaribe, a uma quadra da Epitácio Pessoa. A amizade nasceu no Santo Inácio, onde os dois repetiram a sétima série. O tempo os afastou, e Pati foi estudar em San Diego, na Califórnia, onde se formou em marketing e negócios, enquanto Carlos Eduardo começou a estudar Direito, mas, segundo amigos, abandonou o curso quando o vício se agravou.
MELHOR AMIGO SE SUICIDOU
Também amigo dos tempos de Bahiense, o baixista Vitor Queiroz, que integrava a banda LS Jack e foi da turma 23, no segundo ano do ensino médio, a mesma de Carlos Eduardo e Pati, lembra do “cara divertido, inteligente, sagaz, altamente comunicativo, apaixonado pelo seu time de coração, o Fluminense”. Outro colega, do Santo Inácio, que prefere não se identificar, conta que eles pichavam muros da Rua Dona Mariana, perto do colégio, com frases de protesto.
— Admirávamos o Sarda. Sempre foi um cara que contestou tudo, dos pais e professores até os próprios colegas. Eu era fanático por atletismo e ele me zoava: “Você acha que vai ser o Joaquim Cruz (atleta que foi campeão olímpico nos anos 1980)?”. Ele zoava todo mundo e, de tanto ser assim, às vezes assustava as pessoas — afirma o amigo, que continuou no Santo Inácio até o fim do ensino médio, em 1988. — Lembro que, se ele não tivesse saído, teria sido expulso. O reitor Luís Fernando Klein era altamente disciplinador e não sabia o que fazer com ele.
Nessa época, seu melhor amigo no colégio jesuíta se chamava Eduardo Henrique, que costumava fazer os trabalhos escolares com Carlos Eduardo. Mas, ainda jovem, o rapaz com quem Sarda mais se abria cometeu suicídio.
O depoimento de Carlos Eduardo teve repercussão impressionante no Facebook, com mais de um milhão de visualizações. O homem fala com honestidade sobre sua vida, conta que toma banho a cada dez dias, que não escova os dentes há oito anos e que os mesmos estão caindo, mas já “não há mais muito o que comer”. Em comentários na rede social e em grupos de ex-alunos do Santo Inácio e do Bahiense no WhatsApp, amigos se surpreenderam com sua lucidez. “Quando o prefeito diz que aqui só tem lixo humano, tá parecendo que para o senhor prefeito é um problema estético. (...) O seu problema estético está muito aquém do problema ético que é a gente ter uma estética dessas numa cidade rica como São Paulo”, disse, antes de chamar Doria de “senhor perfeito".
Ele ficou conhecido na Cracolândia em 2012 ao se tornar o primeiro morador de rua de São Paulo a ter um salvo-conduto, obtido pelo defensor público Bruno Shimizu, que o impede de ser preso a menos que seja flagrado cometendo um crime. Telefona para sua mãe, a economista Nara Albuquerque, duas vezes por semana. Numa entrevista há cinco anos, ela disse que dava R$ 250 por semana ao filho. “Ele morou na Bahia e na Alemanha. Foi internado várias vezes. Aqui no Rio, morava na rua, mas tinha cartão de banco. Não dá para ficar perto da gente porque não larga a droga. Está assim porque quer", declarou a mãe. Procurada agora, sua família não quis dar entrevista. O irmão Pedro Paulo Maranhão disse não querer falar sobre este assunto. “Não me sinto à vontade”, escreveu em mensagem.
— Crack e heroína são drogas tão devastadoras que não cabem nos moldes usuais de internação. As relações sociais ficam muito afetadas, não há possibilidade de redução de danos e os planos de saúde, quando alguém morre por uso abusivo dessas substâncias, consideram como suicídio e fazem de tudo para não cobrir o atendimento. Não temos locais adequados para atendimento gratuito, e falta suporte público efetivo para a ressocialização — resume a psicoterapeuta e conselheira em adicções Patricia de La Serviére.
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