December 7, 2025

Questões jornalisticas: Os vivos e os mortos

 

 

Uma leitura das escolhas da grande imprensa na cobertura do massacre no Complexo do Alemão

Fernando de Barros e Silva

 

Três dias antes de deixar a bancada do Jornal Nacional, que ocupou por quase trinta anos, William Bonner abriu o telejornal anunciando o local e a data da principal notícia daquela terça-feira:

Rio de Janeiro, 28 de outubro.

A seguir, executando o jogral, ele e Renata Vasconcellos se alternaram para anunciar os destaques de uma edição histórica. A escalada – nome que os jornalistas dão à apresentação dos principais fatos do dia, que serão tratados adiante – se desenrolou da seguinte maneira:

Renata Vasconcellos: Moradores da segunda maior metrópole do país são paralisados pela batalha entre policiais e o Comando Vermelho.

Bonner: Para impedir o cumprimento de mandados de prisão, os traficantes usaram até drones para o lançamento de bombas.

Vasconcellos: E armaram barricadas em diversos pontos da cidade.

Bonner: Mais de oitenta foram presos.

Vasconcellos: A ação policial mais letal da história da cidade tem dezenas de mortes confirmadas.

Bonner: E declarações de autoridades revelam falta de coordenação entre os governos estadual e federal no combate ao crime.

A decisão de abrir o telejornal pelos transtornos e pela sensação de caos que a reação dos traficantes produziu no Rio é uma opção editorial. O JN avaliou que isso era mais importante do que “a ação mais letal da história da cidade”, com “dezenas de mortes confirmadas” até aquele momento. Só depois de ser informado sobre a “batalha” que paralisou a cidade, só depois de saber que os traficantes usaram “até drones para o lançamento de bombas”, que “armaram barricadas”, que “mais de oitenta foram presos”, o telespectador é apresentado à notícia das “dezenas de mortes”. Funciona como se elas, as mortes, estivessem justificadas por tudo que aconteceu. A ordem dos fatores, neste caso, altera o produto. Não foi preciso fazer nenhum comentário ou lançar mão de adjetivos, bastou elencar as coisas de uma determinada maneira. O jornalismo pode ser melhor ou pior, mais ou menos atento a nuances, tecnicalidades e normas de conduta, mas nunca é neutro. Para o JN de 28 de outubro de 2025, o massacre do Alemão não foi o principal acontecimento do dia. As mortes foram “amortecidas” na abertura do telejornal.

Assim que a escalada terminou, Bonner deu sequência ao programa, iniciando o primeiro bloco do noticiário com uma observação:

Uma batalha entre policiais e bandidos do Comando Vermelho voltou a mostrar a dimensão do desafio que o crime organizado impõe às autoridades e à sociedade no Rio de Janeiro.

A voz, grave, bastante conhecida, exprime um certo pesar, mistura bem dosada de alerta e lamento. De novo, não é neutro. Só depois de fazer este comentário sobre a enormidade do problema, Bonner enfim diz que “a operação policial de hoje é a mais letal da história da cidade, com 64 mortos confirmados até agora. Quatro eram policiais”. E emenda: “Os traficantes fecharam ruas e vias expressas e chegaram a usar drones para lançar bombas. Oitenta e um foram presos.” A redundância em relação à escalada de segundos atrás também não é neutra. Lembrem-se bem, espectadores: “Os traficantes fecharam ruas e vias expressas e chegaram a usar drones para lançar bombas.”

A edição impressa do jornal O Globo que circulou no dia seguinte, 29 de outubro, estava em linha com o JN da véspera. A manchete estampava em letras maiúsculas “A METRÓPOLE-REFÉM”, e dizia na linha seguinte, em letras minúsculas, “64 mortos e milhões sob o medo”.

Como se ainda houvesse dúvidas de que o centro das atenções do Grupo Globo não estava exatamente no número de mortes, àquela altura ainda parcial, mas estarrecedor, o jornal da família Marinho trazia um editorial intitulado Operação expõe limite estadual no combate ao crime. Começava assim:

A resistência feroz que a polícia fluminense encontrou na operação desta terça-­feira contra o Comando Vermelho nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio, é demonstração eloquente dos limites enfrentados pelos governos estaduais no combate às organizações criminosas.

Logo adiante, é o próprio governo estadual quem toma a palavra no texto para reiterar o argumento do editorial: “O secretário de Segurança do Rio, Victor Santos, reconheceu que o governo do estado não tem condições de enfrentar o tráfico. ‘Não dá para enfrentar sozinho’, afirmou. ‘É preciso que, sem ideologia, estado, União e município se sentem à mesa.’ O governador Cláudio Castro cobrou ‘um trabalho de integração muito maior com as forças federais’.”

O editorialista frisa a seguir que Castro disse ter pedido “apoio de blindados do Exército por três vezes e que os pedidos foram negados”. E acrescenta que “o governo federal afirmou que não houve pedido de ajuda para a operação atual”.

O próprio Castro diria depois que havia sido mal interpretado, que a solicitação de ajuda não se referia à Operação Contenção, como foi oficialmente chamado o massacre, mas, àquela altura, a confusão instalada favorecia o governador, que distribuía as responsabilidades pelo ocorrido, com auxílio do jornalismo.

Ao invocar a “necessidade de atuação mais efetiva do governo federal e de maior integração entre as forças de segurança”, o editorial apontava para um problema real, mas, justamente naquele dia, seus argumentos prestavam um serviço para o governo fluminense. Prevaleceu a cordialidade diante das autoridades e a cumplicidade com o que havia ocorrido, como se o editorialista, depois do ponto final, levantasse da cadeira, se espreguiçasse lentamente, pegasse o paletó no cabide e desse um tapinha nas costas do governador. O pior ainda estava por vir.

 

A cena de dezenas de corpos enfileirados na Praça São Lucas, na Penha, rodeados por parentes e moradores da favela em estado de choque, entre atônitos e desesperados, desafia nossa capacidade de descrever o horror ali concentrado. Mesmo para quem já está anestesiado com a violência brasileira, parece faltar um nome para definir a enormidade do que se vê.

Com o número de mortes atualizado, o JN de 29 de outubro dedicou mais de meia hora à chacina. Mas em nenhum momento mencionou a palavra chacina ou alguma de suas variantes – matança, carnificina, execuções sumárias, assassinatos em série. Esses termos ficaram perdidos na mata, longe do jornalismo da Globo.

Essa foi uma determinação da direção da emissora. Numa das orientações da chefia de jornalismo que circularam por escrito para a cúpula dos telejornais da Globo e da GloboNews, dizia-se que o termo “chacina não deve ser usado por nós”. O mesmo comunicado orientava a emissora a evitar entrevistas com especialistas ou políticos que falassem em chacina para caracterizar o ocorrido na Penha e no Alemão.

Havia outras recomendações. Os jornalistas não deveriam fazer comentários sobre o sucesso ou o fracasso da operação. As perguntas aos entrevistados deveriam ser sóbrias e sem juízos de valor. Os repórteres deveriam se esforçar para entrevistar as autoridades de segurança do Rio e dar amplo espaço para suas explicações. Os analistas deveriam ter cuidado para não se precipitar em julgamentos. A certa altura, dizia-se também que havia uma polarização, um duelo, entre esquerda e direita em torno deste assunto, e que a Globo não deveria dar munição para nenhum dos lados.

Na prática, este conjunto de diretrizes comprometeu não só o espírito crítico, que é parte do bom jornalismo, mas a própria busca pela verdade, sacrificada no altar do oficialismo, vocalizado por autoridades “neutras” de um governo de extrema direita.

A escalada do JN do dia seguinte ao massacre se desenrolou da seguinte maneira:

Renata Vasconcellos: Rio de Janeiro, 29 de outubro.

William Bonner: No dia seguinte à operação policial contra o Comando Vermelho, dezenas de corpos encontrados na mata são levados para a praça da Penha.

Vasconcellos: E o número oficial de mortos salta para 121.

Bonner: A polícia afirma que atraiu os traficantes para a rota de fuga na mata para proteger inocentes nas ruas da comunidade.

Vasconcellos: E que apreendeu 118 armas.

Bonner: Mas o chefe da facção escapou.

Vasconcellos: O governo estadual divulga imagens de pessoas despindo cadáveres de uniformes de combate.

Bonner: O diretor-geral diz que a Polícia Federal analisou os planos.

Vasconcellos: E avaliou que não poderia participar da operação.

(Aparece neste momento a imagem de Andrei Rodrigues, diretor-geral da PF, em entrevista coletiva, justificando na defensiva a sua posição.)

Bonner: O estado do Rio e o governo federal anunciam um escritório emergencial contra o crime organizado.

Há várias coisas a observar aqui. Bonner começa por anunciar que os corpos foram “encontrados na mata” e “levados para a praça da Penha”. É bem diferente de dizer que a polícia matou dezenas de pessoas em circunstâncias não esclarecidas (e cuja identidade ainda não se conhecia) e abandonou os corpos na mata. E que parentes e moradores resgataram os cadáveres por conta própria, sendo obrigados a executar, sob condições desumanas, uma tarefa que o Estado tem a obrigação legal de fazer. Pela lei, caberia à polícia preservar a área até a chegada da perícia, que também é uma exigência legal, sem a qual se torna impossível saber exatamente como as pessoas morreram e apurar as responsabilidades.

Ao alegar que a polícia “atraiu os traficantes para a rota de fuga na mata para proteger inocentes nas ruas da comunidade”, Bonner endossa a versão oficial. Além do zelo com os moradores da favela, nas palavras de Vasconcellos, a polícia ainda “apreendeu 118 armas” e o governo divulgou “imagens de pessoas despindo cadáveres de uniformes de combate”. É curioso que o número de armas apreendidas, 118, seja quase o mesmo das pessoas mortas pela polícia, 117. Uma coincidência. Todos os elementos que cercam a notícia aterradora das 121 mortes – quatro delas de policiais – contribuem para que o telespectador tenha a sensação de estar diante de uma matança virtuosa, ou, no mínimo, inevitável. No dia 22 de novembro, com a morte de mais um policial que havia sido ferido e estava hospitalizado desde a operação, subiu para 122 o número de vítimas.

Assim que a escalada do JN termina, quem abre o primeiro bloco do noticiário é Renata Vasconcellos. Depois de repetir o número atualizado da tragédia, ela diz que moradores das comunidades da região do Alemão e da Penha “resgataram corpos da mata onde houve o principal confronto”.

Primeiro, na escalada, o JN engole que a polícia “atraiu os traficantes para a rota de fuga na mata para proteger inocentes”. A seguir, diz que os corpos foram resgatados na mata “onde houve o principal confronto”. Juntas, as afirmações sugerem que na mata não havia inocentes e que quem morreu, sem exceção, estava enfrentando a polícia, o que é duplamente implausível. A versão oficial foi comprada sem ressalvas, mas, àquela altura, já havia relatos de corpos mutilados, tiros na nuca, ferimentos feitos a faca e ao menos um homem decapitado. O enredo empacotado pelas autoridades de segurança do Rio estava muito longe de elucidar a verdade da operação. Com boa vontade, era inconsistente; sem eufemismos, fantasioso. Reproduzi-lo sem mais na abertura do telejornal de maior audiência do país foi, mais do que uma opção editorial, uma decisão política.

Essa orientação fica ainda mais clara ao longo do telejornal.

 

A primeira reportagem daquela noite mostra imagens da Praça São Lucas pela manhã, onde estavam os cadáveres. A repórter Bette Lucchese, veterana na cobertura da criminalidade no Rio, diz: “No asfalto, o retrato de mais um dia que entra para a história da violência no país. Pessoas incrédulas, em choque, diante dos mortos deixados lado a lado no meio da rua.” E completa, enquanto vemos imagens de mulheres chorando, “a todo momento chegam mais carros com mais corpos”.

Uma mulher negra é entrevistada pela repórter. Sem que se saiba quem ela é (ela é só mais uma), a mulher diz: “Muito terror, muito medo. É isso o que nós tem pra falar. Muita mãe chorando e a gente não sabe o que fazer.”

Voltamos a ver corpos cobertos no chão e a repórter diz que “foram moradores da favela que trouxeram os mortos da mata para uma das principais ruas da comunidade”. A seguir, por alguns segundos, aparecem homens da Defesa Civil recolhendo corpos do asfalto e colocando no rabecão. “Em meio à multidão, um trabalho silencioso”, comenta Lucchese.

(Como contraponto a este clichê que poetiza as coisas – “em meio à multidão, um trabalho silencioso” –, recomendo ao leitor que assista ao registro da mesma cena, da remoção dos corpos, gravada por Raull Santiago, morador do Alemão há 36 anos, ativista e fundador do Instituto Papo Reto, ONG que trabalha “pelos direitos das populações de favelas e periferias”, como eles se definem. Santiago fez várias lives naquele dia. Elas estão disponíveis em seu perfil no Instagram. Esta a que me refiro dura quase 7 minutos e meio. Ele filma em silêncio quase o tempo todo, mas há muito burburinho à sua volta, pessoas falando sem cessar. Por volta do quarto minuto da transmissão, Santiago diz: “O cheiro tá muito forte, tá foda.” Ouve-se adiante uma mulher em desespero – “deixa eu ver ele” – e outra que diz “massacre, foi um massacre, covardia”. A repetição mecânica de corpos sendo alçados do chão pelos braços e pelas pernas e colocados em caixões estreitos, nos quais alguns são acomodados com visível dificuldade, o som das ferragens quando os caixões são empurrados em trilhos para dentro do rabecão, a atmosfera pesada que se mistura ao peso físico dos corpos abatidos – temos a sensação de estar num matadouro humano.)

Voltamos ao JN. Lucchese entrevista outra mulher, também negra, sem que seu nome seja identificado. Aos prantos, ela diz: “Não é um dos meus que está ali, mas eu sou mãe. Eu sou mãe, eu sei muito bem o que cada uma tá passando, porque eu também já tive perda.”

Na sequência, uma terceira mulher, também negra, também sem identificação, fala ao microfone da Globo: “Eu não sou mãe, sou tia, mas a gente vê assim a realidade… A gente fala, né, pra procurar coisas melhores, mas, infelizmente, minha filha… É muito difícil, pra uma mãe, um pai, ver um filho assim.”

Lucchese então entrevista Martín González (ele, sim, identificado), jornalista argentino que está no local: “É muito difícil para nós compreender isso. É muita violência, muita morte. Eu não lembro de ter vivido uma coisa como essa”, ele diz.

No JN, ninguém na Praça São Lucas fala em massacre. Não há, entre as pessoas entrevistadas, qualquer menção à polícia ou crítica explícita à operação da véspera. É preciso deduzir isso da fala do jornalista argentino. Já as três mulheres negras, testemunhas sem nome do horror e da dor, contribuem involuntariamente para sugerir que houve ali algo como uma fatalidade. São fiéis servidores da nossa paisagem, como diz um verso de Carlos Drummond de Andrade. Afinal, este foi só “mais um dia que entra para a história da violência no país”, como disse a repórter no início.

Depois da sequência dos cadáveres na praça, Lucchese sobe de carro até a região da mata, no alto do Complexo. “A gente está acompanhando a busca feita pelos moradores, que tentam encontrar os corpos de parentes”, ela diz, acrescentando que “não havia bombeiros, não havia polícia, não houve perícia no local onde os corpos foram encontrados”. Deve-se a Lucchese a única menção a este fato escandaloso, que singulariza essa tragédia. O Estado simplesmente desapareceu do Complexo no day after. Não há registro de que algo parecido tenha acontecido antes desta operação.

 

A ausência da polícia na cena do crime foi tratada de forma ligeira, mas a exposição em tom celebrativo dos responsáveis pela ação mereceu amplo destaque no JN daquela noite. Houve uma orientação específica da direção da emissora para que duas longas falas selecionadas dos chefes da Polícia Militar e da Polícia Civil fossem reproduzidas em todos os jornais do grupo.

Assim que a reportagem de Lucchese na Praça São Lucas se encerra, Bonner anuncia da bancada: “As autoridades estaduais de Segurança Pública apresentaram hoje detalhes do planejamento da ação.”

Entra em cena o repórter Pedro Bassan, que faz a escada para as autoridades. Ele começa assim: “A polícia do Rio estava preparada para um grande confronto. O secretário de Polícia Militar, coronel Marcelo de Menezes, disse que desde o início o plano era encurralar os traficantes para que eles deixassem as comunidades em direção à área de mata fechada. […] Assim, se houvesse confronto, haveria menos risco de atingir a população.”

Segue-se a explicação do coronel Menezes, em pé, diante de um painel com o mapa dos complexos, onde setas e inscrições descrevem a dinâmica das ações:

O que a gente traz de diferente nessa operação foi a incursão de tropas do Bope na área mais alta da montanha da Serra da Misericórdia, que divide esses dois complexos, criando o que a gente chamou de muro do Bope. Fazendo com que os marginais fossem empurrados através das nossas incursões para essas áreas mais altas. E isso tinha um objetivo claro: proteger a população de bem que mora naquela região.

Bassan volta e reproduz o mantra oficial: “As autoridades do Rio afirmam que, com exceção dos quatro policiais, todos os mortos eram bandidos a serviço da facção criminosa, porque morreram no meio da mata em situação de confronto.” A seguir, o repórter informa que “os mortos eram do baixo escalão do tráfico, responsáveis por conter o avanço da polícia enquanto os chefes escapavam para outras áreas”. Sua fala funciona como uma espécie de antídoto para o fracasso da missão. Edgard Alves de Andrade, o Doca, apontado como líder do Comando Vermelho nos complexos, escapou do cerco, que deixou como saldo, além da matança generalizada, a morte de cinco policiais, um recorde de baixas fatais em operações.

A seguir, foi a vez do secretário de Polícia Civil do Rio, Felipe Curi, comentar a epopeia. Sua fala é superlativa:

A operação de ontem foi o maior baque que o Comando Vermelho, em toda a sua história, já tomou, desde a sua fundação, lá no final da década de 1970. Nunca houve uma ação que desse um baque tão grande; nem em 2010, na ocupação do Alemão, o Comando Vermelho tomou um baque tão grande. Com a perda tão grande de armas, de drogas e, principalmente, de lideranças.

Bassan volta, sempre fazendo escada para as autoridades: “O secretário disse que os mortos usavam roupas de combate, como botas e fardas camufladas. Ele exibiu um vídeo, que mostra um dos corpos tendo a roupa cortada ao chegar à Praça São Lucas.”

E Curi sola outra vez:

Nós temos imagens deles todos paramentados, com roupas camufladas, com colete balístico, portando essas armas de guerra aqui [aponta para os fuzis dispostos em frente aos jornalistas]. Aí apareceram vários deles só de cueca, ou só de short, descalços, sem nada. Então nós temos imagens de pessoas que retiraram esses corpos da mata e colocaram em via pública, tirando a roupa desses marginais. E também é importante mencionar que a Polícia Civil está instaurando inquérito policial na 22ª DP, na Penha, para investigar essas pessoas pelo crime de fraude processual.

Bassan prepara outra escada, agora para o governador: “O governador do Rio, Cláudio Castro, lamentou a morte de quatro policiais, e disse que a operação foi um sucesso.” E dá-lhe oficialismo: “A gente foi e fez a nossa operação, e foi um sucesso, ontem, tirando a vida dos policiais, o resto da operação foi um sucesso. A gente não fica aqui chorando, a gente fica trabalhando’’, diz o governador.

O JN daquela noite ainda exibiria uma longa reportagem sobre “a vida nas áreas dominadas por traficantes”, com cenas de crueldades praticadas pelo Comando Vermelho. Tomada em seu conjunto, a edição não deixa muitas dúvidas: o telespectador que aguentou ir até o fim do JN assistiu a um massacre, mas jornalístico.

 

No dia seguinte, 30 de outubro, O Globo estamparia em manchete, na sua primeira página: “Mortos chegam a 121, e governos do Rio e federal criam parceria contra facções do crime.” Acima da manchete, uma foto horizontal de ponta a ponta, feita com o uso de drone, mostrando do alto os cadáveres enfileirados na praça da Penha. Na legenda se lê que, “para a polícia, a retirada de fardas usadas por alguns deles foi tentativa de afastar a ligação com o CV”.

Mas a pièce de résistance da edição é o editorial. Nele, o jornal reitera, com mais ênfase, sua adesão à versão oficial. Operação policial no Rio foi resultado de planejamento, diz o título. Vale citar um trecho: “É revelador que a operação, a mais letal na história do Rio, tenha deixado mais de uma centena de mortos. Mas ela foi resultado de planejamento para tentar preservar os moradores e encurralar os traficantes nas matas, onde ocorreu a maior parte dos confrontos.”

Mais adiante, Curi, que havia brilhado no JN da véspera, volta a ser tratado com toda consideração. Diz o texto: “O secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, descreveu o quadro encontrado como ‘cenário de guerra’. ‘O que as polícias do Rio enfrentam não é mais questão de segurança pública, é uma guerra irregular, assimétrica, uma questão de defesa e de soberania nacional’, disse. É um argumento que não pode ser desprezado.”

O argumento que O Globo não quis desprezar, pelo menos naquele momento, é o que embasa a inclusão do Comando Vermelho na prateleira do “narcoterrorismo”. É isso que Curi defende e foi isso que o deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP) tentou emplacar ao desfigurar o projeto de lei do governo que endurece a legislação penal contra as facções – assunto de que trata o artigo de Evandro Cruz Silva na página 44 desta edição. À altura da votação do projeto pela Câmara, o Grupo Globo já se posicionava contra esse passo, entre outras razões porque a proposta teria implicações sobre os negócios do país. A semente, no entanto, foi plantada. E o editorialista ajudou a regá-la.

 

A cobertura do massacre feita pelo Grupo Globo destoa do que foi publicado na imprensa de São Paulo, sobretudo pelo jornal O Estado de S. Paulo. “Ação policial no Rio com ‘muro do Bope’ supera Carandiru em mortes”, estampou o Estadão em sua primeira página do dia 30. O editorial daquela edição foi especialmente crítico em relação à operação e a Cláudio Castro, além de bem escrito, o que é uma marca do jornal, concorde-se ou não com sua posição política, conservadora, como se sabe.

Rio é refém do crime e da inépcia, diz o título. Depois de comparar a cena dos cadáveres expostos na Penha à imagem dos corpos enfileirados, 32 anos antes, na chacina de Vigário Geral, o editorial comenta que os registros fotográficos, tristemente semelhantes, resumem “o absoluto fracasso de um modelo de segurança pública baseado quase exclusivamente no confronto aberto entre policiais e criminosos”.

Vale citar mais alguns trechos:

Não há dúvida de que as polícias, como forças do Estado detentor do monopólio da violência, têm o dever de enfrentar o crime, inclusive com emprego de força letal quando indispensável. Tampouco há controvérsia quanto à necessidade de se cumprir ordens judiciais. O busílis é que o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), não tem um projeto de segurança pública – ele apenas repete, com trágicos resultados, a velha fórmula das incursões episódicas. Basta examinar o saldo da operação de anteontem: mais de uma centena de mortos, entre os quais quatro policiais; dezenas de feridos; a população do Rio, literalmente, paralisada pelo pânico; economia fechada; vias bloqueadas por criminosos; e, para coroar a inépcia, o principal alvo da operação, Edgar Alves de Andrade, vulgo “Doca”, foragido. Considerar isso um sucesso é uma afronta à razão.

A falta de coordenação foi gritante. A Prefeitura do Rio nem sequer foi informada de que uma ação policial daquela magnitude seria deflagrada. O caos que se seguiu expôs a irresponsabilidade do governo estadual. À luz dos fatos, é inegável que a operação foi mais do que um fracasso: foi a reafirmação de que o governo do Rio não controla o próprio território do estado e, é forçoso dizer, nem as forças de segurança sob seu comando, que deveriam se pautar pela legalidade em suas intervenções. São inúmeros os indícios que sugerem que houve execuções sumárias de suspeitos.

Em entrevista coletiva, o sr. Castro afirmou ter “muita tranquilidade” para elogiar o resultado da operação, garantindo, sem qualquer comprovação, que, “de vítima ontem [dia 28 passado], só tivemos esses policiais”. A declaração, além de leviana, ofende a inteligência da sociedade. É inaceitável que o chefe do Executivo fluminense valide, sem perícia e sem identificação das vítimas, uma operação que produziu dezenas de mortos em circunstâncias ainda obscuras. A polícia, em vez de preservar as cenas dos supostos confrontos, permitiu o desaparecimento de provas fundamentais para a elucidação dos fatos. Isso não é prática de Estado decente, comprometido com o império da lei.

O contraste entre esses parágrafos e a posição editorial do Grupo Globo é total. O jornal Folha de S.Paulo ficou no meio do caminho. Comparado ao do Estadão, seu editorial do dia 29 é inexpressivo. E mal escrito, com erro de concordância no primeiro parágrafo:

Cenas de guerra mostraram o poderio aterrador do crime organizado no Rio de Janeiro durante megaoperação nesta terça (28) contra a facção Comando Vermelho (CV). O resultado desastroso do combate ao narcotráfico foram ao menos 64 mortes, sendo 4 de policiais, na ação mais letal do gênero na história do estado.

O resultado, no caso, foi pífio. O editorialista desiste de falar dos indícios de atrocidades cometidas pela polícia e dá um jeito de criticar a “demagogia praticada por [Ricardo] Lewandowski” no mesmo dia em que Castro havia caracterizado a operação como um sucesso.

As manchetes do jornal nos dias 29 e 30 não fogem do principal, que é o número de pessoas assassinadas: “Ação policial mais letal no Rio deixa 64 mortos; facção ataca com drones” e “Mortos em ação no Rio vão a 121, e governos formam gabinete anticrime”. Mas os enunciados foram pintados em tons pastel, que suavizam o ocorrido – “ação policial mais letal deixa”, “Mortos em ação no Rio vão a”. Parece haver aqui, na escolha dos verbos, um cuidado para não melindrar demais o cidadão de bem, ou aquilo que Caetano e Gil definiram como o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina ao falar do Carandiru na canção Haiti.

 

É pedagógico relembrar como foi a cobertura do massacre no Carandiru, em 1992. Os presos foram assassinados pela polícia numa sexta-feira, dia 2 de outubro, mas as autoridades estaduais esconderam o fato, com receio de que ele tivesse influência sobre as eleições municipais, cujo primeiro turno se deu no dia seguinte, sábado. Não havia internet, e os jornais só conseguiram noticiar o horror em toda sua extensão no domingo, dia 4.

O Globo publicou uma chamada no alto de sua primeira página, com o seguinte enunciado: “Polícia de São Paulo massacra 111 presos rebelados.” O texto da chamada dizia ser “um dos maiores massacres já acontecidos em penitenciárias do mundo inteiro”. No dia seguinte, 5 de outubro, outra chamada na capa: “Polícia usou até cães para matar presos no massacre de SP.”

O primeiro editorial do jornal carioca sobre o assunto foi publicado só no dia 7 de outubro. Chamava-se Pavor e insegurança e começava assim:

Qualquer versão que se adote, a reação será uma só: a do horror. É a resposta unânime ao ocorrido sexta-feira na Casa de Detenção de São Paulo. Porque não há versão que explique como fatalidade ou casualidade o saldo ainda provisório de detentos mortos – 111, segundo a Secretaria de Segurança Pública; mais de 200, segundo as informações de que dispõe o Ministério da Justiça. Foi chocante até mesmo para os curtidos, por obrigação de ofício, nos rituais de violência, como os peritos do Instituto Médico Legal. Eles receberam os cadáveres aos montes, como se fosse a colheita, em vala comum, de executados em campo de concentração.

No último parágrafo, o editorial afirma: “Do horror produzido pela matança escancarada, passa-se logo à insegurança coletiva face à ação da polícia. A chacina é o seu retrato em negativo como instituição.”

Nos jornais de São Paulo, o assunto mereceu a manchete de domingo: “Chacina mata 111 presos em SP” (Folha); “Massacre deixa 111 presos mortos” (Estadão). Chacina e massacre, sem eufemismos.

O editorial da Folha do dia seguinte, 5 de outubro, intitulava-se Massacre no Carandiru. E começava da seguinte forma:

A fileira de corpos de presidiários em caixões toscos, números gravados com tintas nas pernas, é uma daquelas imagens de barbárie que a opinião pública dificilmente esquece, por mais que se esforcem as pessoas em afastá-las da consciência – tomadas por compreensível aversão perante tamanha degradação da condição humana. Nenhuma manobra de desinformação poderá jamais disfarçar o dantesco das cenas, ou a dimensão do massacre. Massacre, sim, pois não há outra palavra para se referir, sem cinismo, aos fatos hediondos protagonizados pela Polícia Militar na Casa de Detenção.

Também no dia 5, o Estadão publicou seu editorial, Massacre na Detenção, como segundo destaque da página – o lugar do texto fazia muita diferença antes das redes sociais. Apesar do título, adotava um tom cauteloso, perguntando retoricamente que era preciso apurar “quem matou quem?”. No final, dizia ser “essencial que se ponham a limpo os fatos” e esclareçam os “possíveis excessos policiais”.

É sintomático que hoje o editorial do Estadão sobre o Rio lembre, no tom e na independência em relação aos governantes, o editorial da Folha de antigamente sobre o Carandiru. E que O Globo de 1992 tenha escrito sobre a polícia de São Paulo que “a chacina é o seu retrato em negativo como instituição”. A frase serviria à perfeição para os subordinados de Cláudio Castro.

 

Sim, é preciso levar as diferenças em consideração. No Carandiru, os presos foram executados dentro de suas celas. Não tinham armas de fogo, mas estiletes, pedaços de paus com pregos, facas improvisadas. A polícia, na ocasião, usou como justificativa para sua ação o argumento de que foi atacada pelos detentos com dardos embebidos em sangue contaminado por HIV.

Nos complexos da Penha e do Alemão havia criminosos armados, inclusive com fuzis, e houve intenso confronto. Dos 2,5 mil policiais que participaram da operação, cinco morreram e outros doze ficaram feridos. Quatro civis foram atingidos por balas perdidas e também se feriram. Tudo isso são fatos.

É fato também que a operação durou cerca de 18 horas, das cinco da madrugada até as dez da noite de 28 de outubro. Isso é inédito. A praxe é que essas operações sejam concluídas ainda de dia, por razões de segurança. Os dois policiais civis que morreram no local foram atingidos por volta das dez da manhã. Os dois sargentos do Bope que participavam do resgate de outros policiais morreram entre meio-dia e uma da tarde. Às 13 horas, os quatro policiais já estavam mortos. O que aconteceu depois disso, durante pelo menos nove horas, ainda é pouco conhecido.

O Grupo Globo comprou sem descontos a tese oficial do “confronto na mata” para poupar inocentes. A cobertura ignorou, até mesmo como hipótese, que a polícia, decidida a vingar a morte dos colegas de farda, possa ter partido para a matança indiscriminada. É uma versão que tem muito mais respaldo nas evidências até aqui disponíveis do que o discurso cínico de que “os bandidos que não se entregaram foram mortos em confronto”.

Tome-se, como exemplo, a reportagem da BBC Brasil com o fotógrafo Bruno Itan. Natural do Recife, ele se mudou para o Complexo do Alemão aos 10 anos e hoje mora na Rocinha. Recebeu mensagens de moradores e se dirigiu ao local dos conflitos, onde permaneceu por mais de 24 horas. Itan disse ter visto um “corpo que estava sem cabeça, corpos totalmente desfigurados, sem rosto, sem a metade do rosto, sem braços, corpos sem perna”. E ainda: “O que me chamou muita atenção foram muitos corpos com facadas, têm muitas fotos que dá pra ver que foi arma, efeito de arma branca, entende?” Todo mundo entende.

Um policial do Rio que não participou da operação lembrou a uma das pessoas que entrevistei que o símbolo do Bope é a “faca na caveira”. Para o batalhão, a imagem significa a vitória sobre a morte. Este policial acredita que tanto a cabeça cortada, encontrada na mata, como os diversos ferimentos a faca nos corpos têm a ver com isso.

Segundo esse veterano da polícia, o que quase nunca aparece nos relatórios oficiais, e muito menos nas coletivas ensaiadas das secretarias de segurança, é a vigência de um código tácito, compartilhado de Norte a Sul do país, que orienta o comportamento das polícias militares: para cada policial morto, morre um número x de “bandidos”. A lógica é tribal e opera como um acerto de contas automático. No vocabulário interno da polícia, “bandido” não é uma figura definida juridicamente, mas uma silhueta aproximada: mora na área onde o policial tombou? Corre risco. Tem a idade errada, a roupa errada, a cor errada, o silêncio errado? Corre risco igual.

Essa regra tácita, que também funciona no policiamento ostensivo do dia a dia, produz efeito multiplicado quando transposta para megaoperações. Foi assim na chacina do Jacarezinho, no Rio, em maio de 2021, quando um policial civil morreu com um tiro na cabeça e a polícia matou 27 pessoas num único dia. Foi assim no Guarujá, em São Paulo, durante a chamada Operação Escudo, deflagrada depois da morte de um policial da Rota, em julho de 2023. A polícia matou 28 pessoas em quarenta dias. A coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, Fernanda Balera, diria depois: “Em todos os lugares, as pessoas diziam que a operação teria o número de 30 mortos”, em referência à idade do policial assassinado.

Meses depois, a polícia paulista fez a Operação Verão, que teve início em dezembro de 2023 e matou 56 pessoas até abril de 2024. A chacina recrudesceu depois do assassinato de mais um policial da Rota, no início de fevereiro daquele ano.

A lista poderia se estender. O que importa, aqui, é ter claro que, com o massacre do Alemão, a ocorrência de execuções extrajudiciais em megaoperações atingiu um novo patamar. E a cobertura jornalística desses eventos hediondos também regrediu a um novo patamar.

 

A edição do Fantástico do dia 2 de novembro coroou o oficialismo adotado pela Globo ao longo da semana. Na véspera, o JN havia divulgado uma pesquisa realizada pela Genial/Quaest apontando que uma larga maioria da população do estado do Rio (64%) havia aprovado a operação policial. Ela havia si­do “um sucesso” para 58% dos fluminenses. Pode-se perguntar, diante de 121 cadáveres, qual o sentido (jornalístico e político) de fazer essa pergunta, dessa maneira, reproduzindo a expressão usada pelo governador. Mas ela foi feita.

A adesão popular à violência praticada pelos agentes do Estado não é uma novidade, pelo contrário. Pesquisas feitas na época do massacre do Carandiru também registravam apoio significativo à truculência policial. A novidade, ao que parece, está no uso que se faz das pesquisas. Elas hoje servem não apenas para medir os humores do cidadão, mas para legitimar a barbárie e desresponsabilizar o jornalismo de suas omissões. Na segunda-feira, 3 de novembro, a manchete do jornal O Globo foi: “72% apoiam medida que enquadra facções como terroristas.”

Voltemos ao Fantástico. A resenha dominical da Globo dedicou mais de 1 hora e 15 minutos à operação da terça-feira. Entre as reportagens anunciadas na abertura do programa, estavam “o passo a passo da fabricação de fuzis usados por traficantes do Complexo do Alemão e também em outros estados”, “quem é o traficante principal alvo da operação que escapou da polícia”, “quais são os efeitos reais dessa megaoperação na estrutura e no domínio do Comando Vermelho”. Apesar da quantidade de mortos, logo se percebia que o foco não estava no esclarecimento do que aconteceu.

A grande atração da noite, no entanto, não eram essas. Assim que os repórteres concluem seus destaques, as apresentadoras anunciam:

Poliana Abritta: Domingo, 2 de novembro. A cobertura especial começa agora.

Maju Coutinho: Boa noite, o Fantástico reuniu imagens exclusivas de vários ângulos para reconstituir a megaoperação contra o Comando Vermelho na última terça-feira.

Abritta: Foram 121 mortos em 18 horas de conflito. Um dia de pânico na segunda maior cidade do país.

Em meio à edição nervosa de barricadas e cenas de combate, acompanhadas por uma música de fundo que acentua a tensão, a repórter Ana Carolina Raimundi explica ao telespectador: “Nessas imagens exclusivas feitas pela inteligência da polícia, a que o Fantástico teve acesso, é possível ver que os bandidos estavam fortemente armados, esperando os agentes no alto do morro. Conforme a polícia avança, o tiroteio se intensifica.”

A seguir, a repórter insiste: “Essas são imagens inéditas. Aqui os bandidos se reúnem bem no alto do morro. Quase todos vestem roupas pretas ou camufladas. E à medida que o tiroteio avança, eles correm para se esconder no topo da mata da Serra da Misericórdia.”

Em seguida, por alguns minutos, vemos imagens dramáticas de policiais sendo atacados ou em apuros, parte delas feitas por dois “cinegrafistas independentes” que acompanhavam a polícia. Há registros do resgate tenso do delegado que foi baleado na perna, do policial que levou um tiro na barriga e de outro que foi em seu socorro e acabou atingido na cabeça.

Na sequência, mostra-se a rendição de 26 supostos traficantes escondidos numa casa, onde o Bope afirma ter encontrado dezenove fuzis. Não vemos, em nenhum momento, a polícia matar ou ferir alguém. No Fantástico, policiais são atacados e morrem, suspeitos são presos.

Mais adiante, como contraponto, o programa dedica espaço às ministras Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos, e Anielle Franco, da Igualdade Racial. “Elas ouviram moradores que disseram que alguns corpos tinham sinais de tortura. Alguns teriam marcas de mutilações e um corpo foi encontrado decapitado”, diz a repórter.

Eis que entra em cena o chefe da Polícia Civil, Felipe Curi. A ele cabe a palavra final sobre o que aconteceu: “Tudo leva a crer, na verdade é uma tática do crime organizado, fazer lesões, cometer lesões nesses corpos justamente para incriminar os policiais.”

Transcorridos 21 minutos do programa, Maju Coutinho anuncia mais uma exclusividade: “Agora a gente traz cenas do combate pelo ponto de vista dos policiais na linha de frente. São vídeos inéditos das câmeras corporais no local onde aconteceu o confronto mais intenso.” E Poliana emenda: “Os registros mostram o fogo cruzado, táticas de guerra e o resgate a dois policiais feridos.”

A reportagem é de Bette Lucchese: “Tudo parece saído de um filme de guerra. Você vai ver a operação contra o Comando Vermelho do ponto de vista dos policiais. Imagens feitas por drones e por câmeras corporais, instaladas no uniforme de agentes. Material selecionado e cedido pelo governo do estado. São cenas impactantes.”

A seguir, como se nada fosse, ela esclarece: “O governo diz que parte das gravações foi perdida. De acordo com o comando da Polícia Militar, algumas câmeras ficaram sem bateria por causa do longo tempo da operação e pararam de gravar.”

O jornalismo da Globo também ficou sem bateria e parou de investigar. Com a edição do Fantástico, a emissora concluiu a sua megaoperação. Podemos batizá-la de Contenção da Verdade.


Com a colaboração de Marcella Ramos

PIAUI 

 

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