Diante do avanço do movimento conservador das tradwives, precisamos resgatar o sentido original do Dia da Mulher
POR GABRIELA MOCH SCHMIDT
Nosso 8 de março já não tem
o mesmo significado daquele
mobilizado por mulheres
que lutavam por
uma sociedade mais justa
no início do século passado. Hoje, flores,
bombons e parabéns, aliados a mensagens
que ressaltam nossa feminilidade ou elogiam
nossa “força”, predominam os discursos
que rodeiam essa data. Parece que
utilizar o Dia Internacional da Mulher para
falar sobre equiparação salarial, reivindicar
creches para todas as crianças ou
discutir direitos reprodutivos caiu em desuso.
O feminismo – e aqui excluímos o
“feminismo” liberal, porque entendemos
que um feminismo que atende uma parcela
tão pequena das mulheres não é verdadeiramente
feminista – virou démodé.
Na moda estão as tradwives. Impulsionadas
pela onda conservadora e fascista
que cresce ao redor do mundo, as esposas
tradicionais abandonam suas carreiras
para servir à família. Nos moldes da
moral cristã, elas são submissas a seus
companheiros provedores e devem permanecer
em casa: seu papel é limpar, cozinhar
e cuidar dos filhos e do marido,
entre outras atividades domésticas. Tudo
isso, claro, sem perder a “beleza” – segundo
os parâmetros da estética da mulher
branca e de classe média dos EUA
dos anos 1950. O movimento, muito forte
nas redes sociais, nos alerta sobre o modo
como a crescente onda ultraconservadora
deseja que as mulheres ajam.
Há, portanto, uma disputa em torno
do signo “mulher”. De um lado estamos
nós, a propor que ser mulher é resultado
de um processo socio-histórico. Do outro
lado estão eles, que consideram a mulher
como inerentemente submissa, sensível e
cuidadosa. Da mesma forma, disputam-se
os significados em torno do Dia Internacional
da Mulher. Nessa disputa, os grupos
dominantes apagam o histórico de
luta por direitos. Ora, se não podem extinguir
a data, oficializada pela ONU em
1975, podem alterar seu significado. E o
8 de março transformou-se em um bom
dia para presentear as mulheres, exaltando
sua essência “feminina” e, ao mesmo
tempo, “guerreira”. A luta feminista aca-
bou sendo reduzida a uma mercadoria.
Com isso, tentam apagar a origem operária
da data. Não devemos nos esquecer,
porém, da grande passeata das mulheres
em 26 de fevereiro de 1909, em Nova York,
na qual cerca de 15 mil mulheres saíram
às ruas em busca de melhores condições
de trabalho. Ou da alemã Clara Zetkin,
que propôs, durante o II Congresso Internacional
de Mulheres Socialistas, em
1910, a criação de um Dia Internacional
da Mulher e de uma jornada de manifestações
sindicais e socialistas dedicadas
aos direitos das mulheres. Ou, ainda, das
operárias russas que, em 23 de fevereiro
de 1917, pelo antigo calendário russo – ou
8 de março de 1917, pelo calendário gregoriano
– saíram às ruas para protestar
contra a fome e contra a Primeira Guerra
Mundial. A data foi adotada pelos soviéticos
como o Dia da Mulher Heroica
e Trabalhadora, o que foi seguido posteriormente
por diversos países.
É a partir de todos esses movimentos
sociais, liderados por mulheres que
lutavam por melhores condições,
sobretudo trabalhistas, que o 8 de março
se consolida como o Dia Internacional
das Mulheres. Apesar de o movimento
ter iniciado há mais de um século e de
ter sido oficializado há 50 anos, ainda
não superamos algumas daquelas
reivindicações e vivemos em uma
sociedade profundamente desigual.
De acordo com o 2º Relatório de
Transparência Salarial e Critérios Remuneratórios,
divulgado pelo Ministério
do Trabalho e Emprego em 2024, as
mulheres ainda recebem 20,7% a menos
que os homens em empresas com cem ou
mais empregados. A disparidade é ainda
mais acentuada quando acrescentamos o
critério racial: mulheres negras têm um
salário médio 50,2% inferior ao salário de
homens não negros. A igualdade salarial,
vale lembrar, é prevista pela CLT desde
1943, mas as empresas não a cumprem.
Além da remuneração salarial desigual,
há o acúmulo da dupla jornada de
trabalho que recai sobre as mulheres.
Conforme pesquisa da Infojobs realizada
em 2024, 83% das mulheres acumulam a
jornada de trabalho remunerado com as
tarefas domésticas, e quase metade delas
(45%) não recebe ajuda do parceiro ou
da rede de apoio. As novas tradwives estão
aí para nos lembrar de que o cuidado
doméstico não é visto como um trabalho,
mas como uma “predestinação” feminina.
Para piorar, 70% das participantes declararam
ter perdido a oportunidade de
emprego devido ao gênero.
Outro dado que podemos incluir nessa
lista é o do assédio no ambiente de trabalho.
Um estudo conduzido pela consultoria
Deloitte no ano passado mostrou
que uma em cada quatro mulheres
já sofreu assédio durante o atendime
to a clientes ou consumidores, além dos
assédios cometidos pelos próprios colegas
de trabalho. Em resumo, mais dificuldades
para conseguir emprego, salário
menor, jornada de trabalho maior e
ambiente inseguro.
É com um olhar para a nossa história
combativa e outro para nossas reivindicações
atuais que precisamos urgentemente
resgatar o Dia Internacional das
Mulheres como um dia de luta pelos direitos
das trabalhadoras – e aqui incluímos
não apenas aquelas que trabalham
fora, mas também as que cuidam da casa.
O discurso do “não nos dê flores, nos
dê respeito” pode até parecer batido ou
mesmo clichê, mas vem perdendo força
em uma sociedade que caminha para o
ultraconservadorismo de direita.
Nesse sentido, apesar de nos parecer
óbvia a razão de existir do Dia Internacional
das Mulheres, não há consenso em
relação a esse tema. Numa sociedade cor-
rompida pelo conservadorismo cristão
e pela ascensão do fascismo, é cada vez
mais necessário combater concepções
reacionárias sobre o papel da mulher em
nossa sociedade. Além de disputarmos os
discursos, também precisamos ocupar
espaços. Há, no Brasil e no mundo, passeatas
e manifestações no dia 8 de março,
assim como coletivos e movimentos que
se organizam para combater o patriarcalismo
e lutar por igualdade durante todo
o resto do ano. Este é um convite para todas
e todos que acreditam em um mundo
mais justo: a hora é agora! •
*Gabriela Moch Schmidt é licenciada em Letras
e mestra em Linguística Aplicada pela UFRGS.
Atualmente, é professora na rede municipal de
Canoas (RS) e integrante do Instituto Cultiva.
CARTA CAPITAL
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