October 25, 2024

O poder da farda

 

 


As eleições de 2024 consolidam a presença de integrantes das forças de segurança na política

MARIANA SERAFINI


Nas eleições de 2024, o País
registrou um recorde de
integrantes das forças de
segurança eleitos para o
Executivo ou para ocupar
cadeiras nas Câmaras Municipais. Usan-
do outras legendas como uma espécie de
“barriga de aluguel”, o Partido Militar
cresce sem fazer alarde. Poucos analis-
tas deram atenção ao fenômeno, até o
Instituto Sou da Paz revelar que 856 po-
liciais e militares das Forças Armadas
venceram a batalha das urnas em 6 de
outubro, entre eles 759 vereadores, 52
prefeitos e 45 vice-prefeitos.

 
Desde o fim da ditadura, a turma bus-
ca formas de se infiltrar e reconquistar o
poder político. O movimento ganhou for-
ça, porém, com a chegada do capitão Jair
Bolsonaro e de seu vice, o general Hamil-
ton Mourão, no Palácio do Planalto em
2018. Além de sua numerosa tropa de mi-
nistros egressos das Forças Armadas, o
então presidente mais que dobrou a pre-
sença de militares da ativa ou da reser-
va em cargos civis da administração fe-
deral, chegando a 6.157 em meados de
2020, segundo um balanço do Tribunal
de Contas da União. Mesmo após a desas-
trosa condução da pandemia de Covid-19,
que resultou na morte de 700 mil brasi-
leiros, o general Eduardo Pazuello, ex-
-ministro da Saúde, foi premiado pelos
eleitores bolsonaristas com uma vaga na
Câmara dos Deputados, após obter o se-
gundo maior número de votos no estado
do Rio de Janeiro.

 
Agora, o Partido Militar consolida sua
presença na esfera municipal. Em Foz do
Iguaçu, cidade paranaense com 285 mil
habitantes, localizada na tríplice frontei-
ra entre Brasil, Argentina e Paraguai, o
general Joaquim Silva e Luna, ex-minis-
tro da Defesa de Michel Temer e diretor
da Usina de Itaipu entre 2019 e 2021, por
indicação de Bolsonaro, não teve dificul-
dade para se eleger prefeito, com 50,14%
dos votos válidos. Em São Paulo, cidade
mais rica e populosa do País, o coronel
Mello Araújo, ex-comandante da Rota, a
violenta tropa de elite da polícia paulis-
ta, tem grandes chances de se eleger vice-
-prefeito. Foi incluído na chapa de Ricar-
do Nunes (MDB) por exigência do ex-pre-
sidente, que já havia confiado ao policial
a direção da Ceagesp, o maior entrep

rante sua gestão. Em Manaus, o vereador
mais votado nas eleições deste ano foi o
Sargento Salazar, empresário e ex-inte-
grante da Polícia Militar do Amazonas.

 
Esses três candidatos são do PL de Bol-
sonaro, o partido que elegeu o maior nú-
mero de integrantes das forças de segu-
rança (19,63%), segundo o levantamen-
to do Sou da Paz. Praticamente, todos os
policiais e militares eleitos em 6 de outu-
bro são filiados a legendas da direita ou
extrema-direita. Depois do PL, figuram
na liderança o Republicanos (11,22%),
MDB (10,4%), PSD (9,46%),União Brasil
(8,06%) e Podemos (5,02%).

 
Diretora-executiva do Sou da Paz, Ca-
rolina Ricardo explica que o instituto ob-
serva essas candidaturas há oito anos, e
é possível identificar uma certa estabi-
lidade desses perfis na política nos últi-
mos anos, sobretudo no Legislativo Fe-
deral. Nas últimas duas eleições muni-
cipais, houve, porém, um salto de par-
ticipação de policiais e militares, que
ela atribui a dois fatores. Primeiro, pe-
la existência de um “vazio de lideranças
progressistas na área da segurança pú-
blica”, tema muito sensível para os elei-
tores. Além disso, candidatos com esse
perfil que se apresentam como os “úni-
cos legitimados a discutir o tema”, e aca-
bam sequestrando a pauta.

 
“O efeito é muito ruim”, avalia a ad-
vogada e socióloga. “A pauta de seguran-
ça pública deveria ser debatida de forma
ampla na sociedade e por todos os espec-
tros políticos, mas, na prática, isso não
acontece.” Outro problema é a falta de
regulação ou de fiscalização das regras
existentes. As corporações costumam
estipular um certo período de afasta-
mento das atividades para quem dese-
ja entrar nas disputas políticas, mas ra-
ramente o isolamento é respeitado. Não
existe, porém, uma lei que obrigue 

existe em países como EUA, França e In-
glaterra. O projeto do Novo Código Elei-
toral (PLP 112/21) prevê um afastamen-
to mínimo de quatro anos para que po-
liciais e militares possam disputar car-
gos eletivos, mas são remotas as possibi-
lidades de a proposta avançar com a atual
configuração do Congresso Nacional.

 
Em muitos casos, acrescenta Caroli-
na Ricardo, as candidaturas de agentes
das forças de segurança levam a eviden-
tes conflitos de interesse, caso dos “poli-
ciais influencers”, que exibem suas ativi-
dades profissionais nas redes sociais ou
fazem comentários sobre segurança pú-
blica e política uniformizados, com far-
damento. “Não é incomum ver policiais
em serviço apoiando candidaturas ou a
utilização de instalações das corpora-
ções nas campanhas. Isso mostra uma
mistura muito nociva de política com se-

urança, além do uso da estrutura públi-
ca em benefício próprio.”

 
Oficial da reserva do Exército, Marce-
lo Pimentel observa que existe uma legis-
lação muito clara para regular a partici-
pação política de integrantes das Forças
Armadas, mas ela tem sido solenemente
ignorada. Trata-se da Lei 6.880, de 1980,
que dispõe sobre o Estatuto dos Milita-
res. De acordo com o regulamento, os pra-
ças e oficiais devem abster-se, na inativi-
dade, do uso das designações hierárqui-
cas, de participar de atividades político-
-partidárias, de discutir ou provocar dis-
cussões pela imprensa a respeito de as-
suntos políticos ou militares, excetuan-
do-se os de natureza exclusivamente téc-
nica, quando devidamente autorizados, e
do exercício de cargo ou função de natu-
reza civil. “É importante falar sobre es-
sa Lei, porque às vezes parece que ela está
até um pouco esquecida”, diz. “Se a regra
fosse respeitada, não haveria necessidade
de quarentena. Um agente não pode usar
a farda para se promover politicamente.”

 
Para Pimentel, com o fim do regime mi-
litar, em 1985, e a promulgação da Cons-
tituição de 1988, foi firmada uma espé-
cie de pacto onde os agentes de seguran-
ça se afastaram da política, depois de mais
de duas décadas no poder. Mas esse pro-
tagonismo político não desapareceu, fi-
cou apenas “adormecido”. Mesmo antes
de Bolsonaro chegar ao poder, ele iden-
tifica dois processos que se retroalimen-
tam. “Há uma militarização da política,
ao mesmo tempo que existe uma politi-
zação das forças militares”, observa. “Isso
ganhou aderência na sociedade. Não à toa
as escolas cívico-militares se proliferam
pelo País. Mas a militarização do gover-
no federal, convém lembrar, começou no
governo de Michel Temer. E o excesso de
operações de Garantia da Lei e da Ordem,
na gestão de Dilma Rousseff, deu às For-
ças Armadas um protagonismo enome.


Já Francisco Teixeira, professor de
Teoria Social e História Contemporâ-
nea da UFRJ, discorda que os militares
tenham passado um tempo adormeci-
dos, após o fim da ditadura. Ele traba-
lhou mais de 20 anos na Escola de Guer-
ra Naval e na Escola de Comando e Esta-
do-Maior do Exército, além de ter atua-
do como assessor no Ministério da De-
fesa e no Gabinete de Segurança Insti-
tucional, o GSI, e pôde observar de perto
o comportamento dos militares. “O que
eu vi depois do fim da ditadura, na verda-
de, foi uma atividade frenética dos mili-
tares, a começar pela própria Constitui-
ção, quando havia mais de 40 oficiais na
Assembleia Constituinte.”

 
Teixeira destaca que as escolas de
oficiais passaram a oferecer aos agen-
tes, além da formação tradicional mili-
tar, especializações e cursos de MBA, em
Administração de Empresas. “Eram cur-
sos caríssimos, pagos pelo Estado brasi-
leiro. A ideia era que um oficial da Mari-
nha, do Exército ou da Aeronáutica tives-
se também habilidades para ser um ad-
ministrador”, explica. Com isso, na oca-
sião do impeachment de Dilma, em 2014,
havia muitos militares “absolutamente
convencidos de que tinham capacidade
de administrar qualquer coisa, porque
eles tinham um MBA, e isso os habilitava
inclusive a administrar o Brasil”, ironiza.

 
Segundo o levantamento do Sou da
Paz, a cidade do Rio de Janeiro é a que
teve a maior participação de integrantes
das forças de segurança, 8% do total. O
dado não chega a surpreender o cientis-
ta político João Feres Jr., coordenador do
Laboratório de Estudos da Mídia e Esfe-
ra Pública da Uerj. “O Rio tem uma ima-
gem de ser muito perigoso, inclusive pa-
ra os próprios cariocas, e essa imagem é
bastante reforçada pela cobertura jor-
nalística”, explica. “Além disso, as mi-
lícias, integradas por ex-policiais, tam-
bém têm forte apelo nas comunidades,
são uma máquina eleitoral.” 

CARTA CAPITAL        

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