September 23, 2024

Elon Musk, o senhor feudal

 

 

 LUIZ GONZAGA BELUZZO

Conhecido e reconhecido economista grego, Yanis Varoufakis escolheu Elon Musk como protagonista maior do sistema tecnofeudal. “Se eu
tivesse que escolher uma pessoa para
ilustrar o tecnofeudalismo, tanto a pala-
vra quanto o conceito para entender nos-
sa situação coletiva, apontaria Elon Musk.
Brilhante e deficiente, combina raros ta-
lentos de engenharia com ridículas de-
monstrações públicas de ostentação.”

 
Diz Varoufakis que a compra do
Twitter por Musk foi considerada por
muitos comentaristas apenas um epi-
sódio de mais um pirralho rico em bus-
ca de um brinquedo. “Mas havia uma ló-
gica em sua compra do Twitter, uma ló-
gica tecnofeudal que elucida muito mais
do que a mentalidade de Musk.”

 
O economista arrisca seus neurônios
para definir as transformações que le-
varam o capitalismo a desaguar no regi-
me tecnofeudal. Suas peripécias concei-
tuais apontam a substituição dos merca-
dos por plataformas de negociação digi-
tal. Elas parecem, mas não são merca-
dos. Essas plataformas são semelhan-
tes aos feudos. Assim, o lucro, motor do
capitalismo, foi substituído por sua pre-
decessora feudal, a renda. Especifica-
mente, é uma forma de aluguel que de-
ve ser pago pelo acesso a essas platafor-
mas e à nuvem de forma mais ampla. Co-
mo resultado, o poder real hoje não resi-
de nos proprietários do capital tradicio-
nal, como máquinas, edifícios, redes fer-
roviárias e telefônicas, robôs industriais.
Eles continuam a extrair lucros dos tra-
balhadores, do trabalho assalariado, mas
não estão no comando como antes. Eles
se tornaram vassalos em relação a uma
nova classe de senhores feudais, os pro-
prietários do capital da nuvem. Quanto
às gentes do povaréu, voltaram ao status
feudal de servos, alimentando a riqueza e
o poder da nova classe dominante.

 
No Fórum Econômico Mundial de
2018 em Davos, o bilionário George Soros
fez uma acusação implacável contra o
poder das plataformas: os monopólios
da era da internet, ao mesmo tempo que
fornecem serviços cruciais de interesse
geral, impedem a inovação, o bom fun-
cionamento dos mercados e constituem
uma ameaça às liberdades individuais e
à democracia. Na opinião de Soros, seria
inevitável o surgimento de novas regu-
lamentações e novas regras fiscais para
cuidar dessa situação perigosa.

 
No livro Phenomenology of The End,
Franco Bifo Berardi desvenda as trans-
formações geradas pela Economia das
Plataformas: “A economia territorial
da burguesia estava ancorada na dureza
material do ferro e do aço, já em nossa era
a economia está baseada no caleidoscó-
pio da engrenagem semiótica à margem
dos territórios: as mercadorias que circu-
lam no espaço econômico são signos, ci-
fras, imagens, projeções e expectativas. A
especulação e o espetáculo se misturam
na natureza intrinsecamente inflacioná-
ria e metafórica da linguagem”.

 
Berardi avalia as consequências desse
processo para os trabalhadores das pla-
taformas: “O capital deixou de alugar a
força de trabalho das pessoas, mas com-
pra ‘pacotes de tempo’, separados de seus
proprietários ocasionais e intercambiá-
veis. O tempo despersonalizado tornou-
-se o agente real do processo de valoriza-
ção e o tempo despersonalizado não tem
direitos, nem demandas. Apenas deve es-
tar disponível ou indisponível, mas essa
alternativa é meramente teórica porque
o corpo físico, a despeito de desconside-
rado juridicamente, ainda tem que se ali-
mentar e pagar aluguel”.

Hoje, as plataformas invadem todos os
espaços, outrora ocupados pelo comér-
cio, pela finança, pelos serviços, pela pu-
blicidade e pela produção. O capitalismo
das plataformas transforma a possibili-
dade do tempo livre na ampliação das ho-
ras trabalhadas, na intensificação do tra-
balho, na precarização e empobrecimen-
to do óleo queimado que sobrevive na bo-
lha cada vez mais inflada dos trabalha-
dores em tempo parcial.

 
As empresas de platafor-
ma têm um papel cada
vez mais importante nas
economias contemporâ-
neas. Essas empresas se
ocupam, sobretudo, do controle dos cora-
ções e das mentes. Berardi descreve a “au-
tomação psíquica” que contamina os in-
divíduos na sociedade contemporânea. “A
sociedade de massa envolve osindivíduos
nas cadeias automáticas do comporta-
mento, manipuladas por dispositivos téc-
nico-linguísticos. A automação do com-
portamento de muitos indivíduos afeta-
dos e concatenados por interfaces técni-
co-linguísticas resulta nos efeitos mana-
da. O homem é um animal que molda um
ambiente que, por sua vez, molda seu pró-
prio cérebro. O efeito manada é, portan-
to, o resultado da transformação huma-
na do ambiente tecnológico, o que con-
duz à automação dos processos mentais.”

 
Na “automação psíquica”, os proces-
sos conscientes são substituídos por re-
ações imediatas, simplificadoras e sim-
plistas, quase sempre grosseiras, cor-
póreas. Nesses soluços de presunção, a
consciência inteligente, o pensamento e
os próprios sentimentos desempenham
um papel modesto. Convencidos da uni-
versalidade do seu particularismo, os in-
divíduos mutilados executam os proces-
sos descritos por Franz Neumann em
Behemoth, seu livro clássico sobre o na-
zismo: “Aquilo contra o que osindivíduos
nada podem e que os nega é aquilo em
que se convertem”.

 
O tecnofeudalismo das plataformas
acentua duas tendências inerentes às eco-
nomias contemporâneas: a aceleração do
tempo e o encolhimento do espaço. Esma-
gados pelo bombardeio de informações
anônimas que os aprisiona no éter das
redes sociais, os humanos habitantes dos
espaços concretos buscam refúgio na en-
ganosa segurança das crenças mais sim-
ples e simplórias. Na trágica “automação
psíquica” dos indivíduos, os processos
conscientes são substituídos por reações
imediatas, simplificadoras e simplistas,
quase sempre fulminantes e esféricas em
sua grosseria. Nesses soluços de presun-
ção opinativa, a consciência inteligente,
o pensamento e os próprios sentimentos
desempenham um papel modesto.

 
Em seu livro Filosofia e Tecnologia,
Roberto Finelli adverte que “as novas tec-
nologias podem trans-humanizar as for-
mas de controle. Ao invés de abrir e facilitar
espaços da democracia e da discussão dia-
lógica, parecem trancá-los e forçá-los sob a
ditadura de automatismos que, a partir de
sua naturezamatemático-computacional,
pretendem garantir a objetividade da de-
cisão, bem como a aceleração e a determi-
nação do comportamento”.

CARTA CAPITAL 
p

 

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