August 28, 2024

Um legado instável

 


 A morte de Silvio Santos se coloca como um desafio
para o futuro do SBT, emissora feita à imagem de seu fundador

DANIEL CASTRO
Passada a semana de homenagens  a  Silvio Santos, m rto aos 93 anos, uma das questões que se colocam no setor midiático é: o que será do SBT daqui para a frente?
Embora nunca tenha sido a empre-
sa mais lucrativa do Grupo Silvio San-
tos, o SBT era a queridinha do empresá-
rio e apresentador, e a que mais recebia
sua atenção. O SBT, por sua vez, emisso-
ra onde os principais artistas têm suas
vagas no estacionamento marcadas com
estrelas, sempre orbitou em torno do as-
tro maior, Silvio Santos.

 
Mais que “o patrão”, Silvio era tratado
como um deus. Nada podia ser feito con-
tra a sua vontade e quase tudo carregava,
de alguma forma, a sua marca. Tanto que
a emissora, no sábado 17, levou 1h30 pa-
ra interromper a programação habitual
e noticiar sua morte.

 
Supersticioso, ele havia ordenado que
não se preparasse seu obituário, como fi-
zeram todas as outras redes e muitos veí-
culos impressos. Apesar de ele ter pas-
sado três semanas internado no Hospi-
tal Albert Einstein, com um quadro deli-
cado de gripe, o SBT não tinha um mate-
rial pronto para colocar no ar assim que
fosse divulgada a morte de seu criador.

 
Qual será então o futuro da emissora
que sempre se fez à imagem e semelhan-
ça de seu fundador e principal talento ar-
tístico? Uma certeza se tem: será ainda
mais duro que o seu passado. A transi-
ção, no entanto, pode-se dizer que está
sendo tranquila.

 
Desde 2022, Silvio Santos já não gra-
vava seus programas nem aparecia na
emissora. Ainda dava seus pitacos, mas
estava distante do dia a dia. No ano pas-
sado, entregou seu maior tesouro para as
filhas número 3 (Daniela Beyruti, torna-
da uma espécie de CEO), 4 (Patrícia Abra-
vanel, herdeira de seu programa) e 6 (Re-
nata, mais ligada em finanças e gestão).

 
Se Silvio Santos, durante muito tem-
po, cercou-se de office-boys que depois
transformou em assessores, suas filhas
evangélicas se cercaram de coachs e pas-
tores. A tendência é uma renovação gra-
dual no quadro de executivos da emisso-
ra, iniciada com Silvio ainda vivo.
Fernando Pelégio, diretor artísti-
co, foi o primeiro a sair, em outubro de
2023, por discordar das ideias de Daniela
Beyruti para a programação que estreou
neste ano, com talentos importados da
internet, como os youtubers Virgínia
Fonseca e Luccas Neto, e mais do mes-
mo no conteúdo – desde sempre marca-
do pela fórmula circo e sensacionalismo.

 
Os resultados das mudanças foram
inicialmente frustrantes. As duas prin-
cipais apostas, os diários Chega Mais,
que mistura receitas, fofocas e notícia, e
o policial Tá no Ar derrubaram a audiên-
cia e o faturamento, algo que a emissora
diz estar sendo revertido. Se ainda fosse
Silvio Santos o diretor de programação,
ambos os programas já teriam mudado
de horário e de fórmula um par de vezes.
O SBT sempre foi um brinquedo de Sil-
vio Santos – a ponto de correr, no meio, a
piadinha de que a sigla significa, na ver-
dade, Seu Brinquedo de Televisão. O ver-
dadeiro negócio do ex-camelô não era, no
fundo, a televisão, mas a venda de bugi-
gangas e ilusões por meio de seu talento
como apresentador.

 
Foi graças a essas “brincadeiras” que
a TV aberta brasileira viveu seu auge dos
anos 1980 até a primeira metade da déca-
da de 2000. Silvio fez a líder Globo se mo-
vimentar, oferecendo à audiência produ-
ções mais ousadas ou populares, depen-
dendo do momento.

 
Silvio levou o contra-ataque na pro-
gramação a extremos, a ponto de colocar
na tela um aviso de que o filme só iria co-
meçar quando a novela da Globo termi-

nasse, ou de estrear um reality show, a Ca-
sa dos Artistas, em 2001, sem que quase
ninguém soubesse, porque a fórmula ti-
nha sido copiada de um formato compra-
do pouco antes pela Globo, o Big Brother.

 Seu verdadeiro
negócio não era a
tevê, mas a venda
de bugigangas
e de ilusões

 
O fato é que nenhuma outra emissora
desafiou a hegemonia da Globo como o
SBT. E essa talvez tenha sido a maior con-
tribuição de Silvio Santos à televisão brasi-
leira ao longo de seis décadas de produção
de entretenimento popular. Poucas vezes
a TV de Silvio Santos chegou à liderança,
é verdade, mas a ameaça foi constante.
A TV aberta que existia no momento
em que Silvio Santos viveu seu auge está,
ela mesma, em crise, pressionada pelas
novas formas de produção, distribuição
e consumo de conteúdo pelas mídias di-
gitais. O conjunto das cinco maiores redes
brasileiras tem hoje uma audiência 37%
menor do que tinha há 20 anos. O SBT, em
particular, encolheu ainda mais que isso;
perdeu, em 2008, a vice-liderança para a
Record; e sua receita, de pouco mais de
1 bilhão de reais por ano, está em queda.

 
Essa curva descendente evidencia a
contradição embutida na afirmação de
que Silvio Santos teria sido um dos maio-
res empresários do País. Seu SBT, ape-
sar de ter conquistado quase a metade da
audiência da Globo, nunca fez sombra à
eficiência comercial da rede líder. A TV
Globo, sozinha, sempre faturou dez ve-
zes mais que o SBT, que enfrentou um
problema crônico de credibilidade jun-
to ao mercado publicitário. A programa-
ção popular e as constantes mudanças na
grade sempre foram vistas como fatores
de risco para os profissionais que defi-
niam o destino das verbas de marketing.
Silvio Santos era um empreendedor

nato, cujo senso de oportunidade o levou
a criar mais de 40 empresas. Algumas de-
las, como o Baú da Felicidade, fizeram de-
le um homem rico. Outras foram imensos
fiascos, caso do Banco PanAmericano,
que quebrou, em 2010, com um rombo
de mais de 4 bilhões de reais.

 
Que suas iniciativas e sua figura mar-
caram a história da televisão e influen-
ciaram a cultura brasileira não se discute,
mas um pouquinho mais de visão crítica
teria caído bem ao coro de homenagens.

CARTA CAPITAL  

 

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