June 22, 2024

Starlink, de Elon Musk, leva internet a aldeia isolada na amazônia e a divide por dentro

 

 

 
Jack Nicas
 
The New York Times

Enquanto o discurso se arrastava, os olhos se desviavam para as telas. Adolescentes rolavam o feed do Instagram, um homem mandava mensagem para a namorada e outros se aglomeravam em volta de um telefone que estava transmitindo uma partida de futebol enquanto a primeira líder feminina do grupo falava.

Uma cena como essa seria comum em praticamente qualquer lugar, mas isso estava acontecendo em uma aldeia indígena remota, localizada em uma das regiões mais isoladas do planeta.

O povo marubo vive há muito tempo em ocas comunitárias espalhadas ao longo do rio Ituí, no profundo da floresta amazônica. Eles falam sua própria língua, tomam ayahuasca para se conectar com os espíritos da floresta e capturam macacos-aranha para fazer sopa ou manter como animais de estimação.

Eles preservaram esse modo de vida por centenas de anos por causa do isolamento. Mas, desde setembro, os marubo têm internet de alta velocidade graças a Elon Musk.

A aldeia de 2.000 membros é uma das centenas em todo o Brasil que de repente estão se conectando com o Starlink, o serviço de internet via satélite da SpaceX, a empresa espacial privada de Musk. Desde sua chegada ao Brasil, em 2022, o Starlink conectou a maior floresta tropical do mundo, levando internet para um dos últimos lugares offline do planeta.

O New York Times viajou para a Amazônia para visitar aldeias marubo e entender o que acontece quando uma civilização pequena e fechada de repente se abre para o mundo.

 "Quando chegou, todos ficaram felizes", disse Tsainama Marubo, 73, sentada no chão de terra da maloca de sua aldeia, uma cabana de 15 metros de altura onde os marubo dormem, cozinham e comem juntos. A internet trouxe benefícios claros, como videochamadas com entes queridos distantes e pedidos de ajuda em emergências. "Mas agora, as coisas pioraram", ela disse.

Ela estava amassando frutas de jenipapo para fazer uma tinta corporal preta e usava colares feitos de conchas de caramujo. Ultimamente os jovens têm ficado pouco interessados em fazer essas tintas e joias. "Os jovens ficaram preguiçosos por causa da internet" disse. "Eles estão aprendendo os costumes dos brancos".

Então ela fez uma pausa e acrescentou: "Mas por favor, não tirem nossa internet".

Indígenas marubo usam celular com internet na aldeia Manakieaway - Victor Moriyama/The New York Times

Os marubo estão lidando com o dilema da internet: ela se tornou essencial, mas com um custo. Após apenas nove meses com o Starlink, os marubo lidam com os mesmos desafios que têm afetado os lares americanos há anos: adolescentes grudados nos celulares, grupos de bate-papo cheios de fofocas, redes sociais viciantes, estranhos online, videogames violentos, golpes, desinformação e menores assistindo pornografia.

A sociedade moderna lidou com essas questões ao longo de décadas à medida que o uso da internet avançava. Os marubo e outras tribos indígenas, que resistiram à modernidade por gerações, estão agora confrontando o potencial e o perigo da internet de uma só vez, enquanto debatem o que isso vai significar para sua identidade e cultura.

Esse debate chegou agora por causa do Starlink, que rapidamente dominou o mercado de internet via satélite em todo o mundo, fornecendo um serviço antes inimaginável em áreas tão remotas.

A SpaceX fez isso lançando 6.000 satélites Starlink de baixa órbita —aproximadamente 60% de todas as espaçonaves ativas— para fornecer velocidades mais rápidas do que muitas conexões de internet residencial para praticamente qualquer lugar na Terra, incluindo o Saara, as estepes mongóis e pequenas ilhas do Pacífico.

Os negócios estão em alta. O Elon Musk anunciou recentemente que o Starlink ultrapassou 3 milhões de clientes em 99 países. Os analistas estimam que as vendas anuais aumentaram cerca de 80% em relação ao ano passado, para aproximadamente US$ 6,6 bilhões.

A ascensão do Starlink deu a Musk o controle de uma tecnologia que se tornou uma infraestrutura essencial em muitas partes do mundo, que está sendo usada por tropas na Ucrânia, forças paramilitares no Sudão, rebeldes houthis no Iêmen, um hospital em Gaza e socorristas em todo o mundo.

Mas talvez o efeito mais transformador do Starlink esteja em áreas que não tinham acesso à internet, como na amazônia. Atualmente existem 66 mil contratos ativos na amazônia brasileira, abrangendo 93% dos municípios legais da região.

Isso abriu novas oportunidades de emprego e educação para aqueles que vivem na floresta. Também deu aos madeireiros e garimpeiros ilegais da Amazônia uma nova ferramenta para se comunicar e evadir as autoridades.

Um dos líderes marubo, Enoque Marubo (todos os Marubo usam o mesmo sobrenome), 40, disse que imediatamente viu o potencial do Starlink. Depois de passar anos fora da floresta, ele disse acreditar que a internet poderia dar autonomia ao seu povo. Com a tecnologia, eles poderiam se comunicar melhor, se informar e contar suas próprias histórias.

No ano passado, ele e um ativista brasileiro gravaram um vídeo de 50 segundos pedindo ajuda para obter o Starlink de possíveis benfeitores. Ele usava sua tradicional coroa marubo, estava sentado na maloca, e uma criança usando um colar de dentes de animais aparecia sentada ao lado. Eles enviaram o vídeo, e dias depois receberam uma resposta de uma mulher em Oklahoma (EUA).

O povo indígena

O Território Indígena do Vale do Javari é um dos lugares mais isolados da terra, que fica em uma parte da floresta tropical e possui o tamanho de Portugal, sem estradas e com um labirinto de vias navegáveis. Das 26 tribos do Vale do Javari, 19 vivem em total isolamento, sendo a maior concentração no mundo.

Os marubo também já estiveram sem contato, vagando pela floresta por centenas de anos, até que seringueiros chegaram perto do final do século 19. Isso levou a décadas de violência e doenças —e à chegada de novos costumes e tecnologia. Os marubo começaram a usar roupas e alguns aprenderam português. Trocaram arcos por armas de fogo para caçar javalis e facões por motosserras para limpar terrenos para a plantação de mandioca.

Uma família em particular impulsionou essa mudança. Na década de 1960, Sebastião Marubo foi um dos primeiros marubo a viver fora da floresta. Quando ele retornou, trouxe outra nova tecnologia: o motor de barco. Isso reduziu as viagens de semanas para dias.

Seu filho Enoque emergiu como líder da geração seguinte, ansioso para levar sua tribo para o futuro. Enoque dividiu sua vida entre a floresta e a cidade, trabalhando em um momento como designer gráfico para a Coca-Cola. Então, quando os líderes marubo se interessaram em obter conexões de internet, eles foram até ele para perguntar como.

Enoque obteve sua resposta quando Elon Musk veio ao Brasil. Em 2022, o proprietário da SpaceX e Jair Bolsonaro, então presidente do Brasil, anunciaram a chegada do Starlink em frente a uma tela que dizia "Conectando a Amazônia".

Enoque e Flora Dutra, uma ativista brasileira que trabalha com povos indígenas, enviaram cartas para mais de cem membros do Congresso pedindo o Starlink. Ninguém respondeu.

Então, no início do ano passado, Flora viu uma mulher americana falar em uma conferência espacial. Ela verificou a página da mulher no Facebook e a viu posando do lado de fora da sede da SpaceX. "Eu sabia que ela era a pessoa certa", disse.

A benfeitora

A página do LinkedIn de Allyson Reneau a descreve como consultora espacial, palestrante, autora, piloto, diretora executiva, diretora de conselho e mãe de 11 filhos biológicos. Pessoalmente, ela diz que ganha a maior parte de seu dinheiro treinando ginástica e alugando casas perto de Norman, Oklahoma.

Sua história é perfeita para o "Today Show" —e, de fato, ela já a contou lá. Allyson se matriculou na faculdade aos 47 anos, obteve um mestrado na Harvard Extension School aos 55 anos e depois se tornou palestrante motivacional itinerante. Suas redes sociais a mostram com crianças em Ruanda, na televisão no Paquistão e em conferências na África do Sul.

A atenção que ela atraiu nem sempre foi bem recebida. Em 2021, foi entrevistada na CNN e na Fox News por "resgatar" uma equipe de robótica composta apenas por meninas do Afeganistão durante a tomada do poder pelo Talibã. Mas, dias depois, advogados da equipe de robótica disseram a Reneau para parar de reivindicar um resgate com o qual teve pouca participação.

Allyson disse que não tentou ajudar as pessoas por fama. "Caso contrário, eu estaria contando a você sobre todos os projetos que faço pelo mundo", disse em uma entrevista. "É o olhar no rosto, é a esperança nos olhos. Isso é o troféu."

Ela disse que tinha essa perspectiva quando recebeu um vídeo de um estranho pedindo ajuda para conectar uma tribo remota da amazônia.

Reneau nunca tinha ido ao Brasil, mas achou que o retorno sobre o investimento era alto. Enoque estava pedindo 20 antenas Starlink, que custariam aproximadamente US$ 15 mil, para transformar a vida de seu povo.

"Você se lembra de Charlie Wilson?", Allyson me perguntou. Ela estava se referindo ao congressista do Texas que garantiu mísseis Stinger que ajudaram os mujahedins afegãos a derrotar os soviéticos na década de 1980 —mas que críticos dizem que deu impulso a origem do Talibã.

Charles Wilson mudou essa guerra com uma arma, disse. "Eu podia ver que isso era semelhante", completou Allyson. "Uma ferramenta mudaria tudo em suas vidas. Cuidados de saúde, educação, comunicação e proteção da floresta."

Allyson também disse que comprou as antenas com seu próprio dinheiro e doações de seus filhos. Então ela reservou um voo para ajudar na entrega.

A conexão

A internet chegou nas costas dos homens. Eles caminharam quilômetros pela floresta, descalços ou de chinelos, carregando duas antenas cada um.

Homem caminha pela floresta tropical, carregando painel e satélite da Starlink amarrado às costas com cordas.
Integrante do povo marubo carrega painel solar usado para as antenas da Starlink - Victor Moriyama/New York Times

Logo atrás estavam Enoque, Flora Dutra e Allyson. Reneau e um cinegrafista que estava documentando a jornada.

Nas aldeias, eles colocaram as antenas no topo dos postes e as conectaram aos painéis solares. As antenas então começaram a conectar os satélites Starlink aos telefones dos moradores. Alguns marubo já tinham telefones, comprados com benefícios de assistência do governo, para tirar fotos e se comunicar quando estão na cidade.

A internet foi uma sensação imediata. "Mudou tanto a rotina que foi prejudicial", admitiu Enoque. "Na aldeia, se você não caça, pesca e planta, você não come."

Os líderes perceberam que precisavam impor limites. A internet seria ligada apenas por duas horas durante a manhã, cinco horas à noite e o dia todo no domingo. Durante esses momentos de conexão, muitos marubo ficam agachados ou deitados em redes em seus celulares. Eles passam muito tempo no WhatsApp. Líderes coordenam aldeias e alertam autoridades sobre questões de saúde e destruição ambiental pelo aplicativo. Professores marubo compartilham lições com alunos em diferentes aldeias. E todos estão em contato muito mais próximo com familiares e amigos distantes.

Para Enoque, o maior benefício tem sido em emergências. Uma picada de cobra venenosa pode exigir um resgate rápido de helicóptero. Antes da internet, os marubo usavam rádio amador, transmitindo uma mensagem entre várias aldeias para alcançar as autoridades. A internet tornou o contato instantâneo. "Já salvou vidas", disse ele.

O debate

Em abril, sete meses após a chegada do Starlink, mais de 200 marubo se reuniram em uma aldeia para reuniões.

Enoque levou um projetor para mostrar um vídeo sobre trazer o Starlink para as aldeias. Quando os procedimentos começaram, alguns líderes no fundo da plateia se manifestaram. A internet deveria ser desligada durante as reuniões, disseram. "Não quero que as pessoas postem nos grupos, tirando minhas palavras do contexto", disse outro.

Durante as reuniões, os adolescentes navegam pelo Kwai, uma rede social de propriedade chinesa. Meninos assistiam a vídeos do astro do futebol brasileiro Neymar. E duas meninas de 15 anos disseram que conversavam com estranhos no Instagram. Uma disse que agora sonhava em viajar pelo mundo, enquanto a outra queria ser dentista em São Paulo.

Essa nova janela para o mundo exterior deixou muitos na aldeia divididos.

"Alguns jovens mantêm nossas tradições", disse TamaSay Marubo, 42, a primeira líder mulher do local. "Outros só querem passar a tarde inteira em seus celulares."

Kâipa Marubo, pai de três filhos, disse que estava feliz porque a internet estava ajudando a educar seus filhos. Mas ele também estava preocupado com os jogos de tiro que seus dois filhos jogam. "Estou preocupado que eles de repente queiram imitá-los", disse. Ele tentou excluir os jogos, mas disse acreditar que os filhos tenham outros aplicativos ocultos.

Alfredo Marubo, líder de uma associação de aldeias marubo, emergiu como o crítico mais vocal da tribo em relação à internet. Os Marubo passam sua história e cultura oralmente, e ele teme que o conhecimento se perca. "Todos estão tão conectados que às vezes nem falam com sua própria família", disse.

Ele está mais preocupado por causa da pornografia. Alfredo disse que jovens estavam compartilhando vídeos explícitos em chats em grupo, algo impressionante para uma cultura que desaprova beijos em público. "Estamos preocupados que os jovens queiram experimentar", disse sobre o sexo retratado nos vídeos. Ele também afirmou que alguns líderes falaram que já observaram comportamentos sexuais mais agressivos nos homens mais jovens.

Alfredo e Enoque, como chefes de associações marubo rivais, já eram adversários políticos, mas a discordância sobre a internet criou uma disputa amarga. Depois que a Flora Dutra e Allyson Reneau entregaram as antenas, Alfredo as denunciou por falta de permissão adequada das autoridades federais para entrar em território indígena protegido. Flora, por sua vez, criticou Alfredo em entrevistas, e Enoque disse que ele não era bem-vindo nas reuniões.

O futuro

Flora agora tem como objetivo levar o Starlink para centenas de outros grupos indígenas em toda a amazônia, incluindo o maior território remoto do Brasil, dos yanomamis.

Alguns funcionários do governo brasileiro e organizações não governamentais disseram que estavam preocupados que a internet estivesse sendo implementada nas aldeias muito rapidamente, muitas vezes sem treinamento sobre os perigos.

Segundo Flora, os grupos indígenas querem e merecem conexão. Sobre a crítica, ela disse que faz parte de uma longa tradição de estrangeiros que falam aos indígenas como devem viver. "Isso se chama etnocentrismo —o homem branco pensando que sabe o que é melhor", completou.

Enoque e Flora disseram que planejavam fornecer treinamento em internet. Nenhum marubo entrevistado disse que já havia recebido.

Em abril, Allyson voltou à floresta. A pedido de Enoque, ela comprou mais quatro antenas. Duas estavam a caminho dos korubo, um povo com menos de 150 pessoas que foi contatado pela primeira vez em 1996 e que ainda tem alguns membros em total isolamento.

Sentada em um tronco, comendo carne seca e mandioca cozida servida no chão de terra da maloca, Reneau disse que reconhecia que a internet era "uma faca de dois gumes". Então, quando ela posta no Facebook sobre levar internet aos marubo, ela sempre enfatiza que foi um líder que solicitou.

"Não quero que as pessoas pensem que estou trazendo isso para impor a eles", disse Allyson. Ela acrescentou que esperava que pudessem "preservar a pureza dessa cultura incrível porque, uma vez que desaparece, desaparece".

Mais tarde, na mesma refeição, o pai de Enoque, Sebastião, disse que a jornada da aldeia com a internet já tinha sido prevista.

Décadas atrás, o xamã marubo mais respeitado teve visões de um dispositivo portátil que poderia se conectar com o mundo inteiro. "Seria para o bem do povo", disse. "Mas, no final, não seria."

"No final," ele acrescentou, "haverá uma guerra".

Seu filho sentou no tronco em frente a ele, ouvindo. "Eu acho que a internet nos trará muito mais benefícios do que danos", Enoque disse. "Pelo menos por enquanto."

Independentemente disso, completou, voltar atrás não é mais uma opção. "Os líderes foram claros", disse. "Não podemos viver sem a internet."

FOLHA 

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