May 21, 2024

Extrativismo “verde” e o canto da sereia da transição energética

 

 


A transformação da energia do sol e do vento em eletricidade depende de uma grande quantidade de minérios, cuja extração causa desestruturação social e degradação ambiental. No fim das contas, a substituição tecnológica nos levaria a trocar a dependência de petróleo, gás e carvão por outro grupo de recursos não renováveis, os chamados minerais críticos

 As mudanças climáticas deixaram de ser uma ameaça remota. Elas ocorrem aqui e agora. Vivemos a intensificação dos eventos climáticos extremos, como em São Sebastião (2023), Petrópolis (2022), sul da Bahia (2021) Rio Grande do Sul (2024), e o aumento da temperatura, com 2023 sendo o ano mais quente dos últimos 125 mil anos.

Do ponto de vista global, o consumo de energia se apresenta como principal responsável pelos gases de efeito estufa (GEEs) na atmosfera, contribuindo com 73% das emissões. Se quisermos desacelerar as mudanças climáticas, a decisão prioritária deveria ser reduzir o consumo e a dependência dos combustíveis fósseis, em um processo chamado de transição energética. Essa transição, porém, tem se mostrado cada menos alcançável. Entre 1992, quando foi criada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, e 2022, o consumo global de combustíveis fósseis aumentou cerca de 64%.

Parte da dificuldade tem
sido criada pelos interesses do setor de
energia. A expectativa dos países pro-
dutores de petróleo e carvão, até 2030,
é aumentar a extração em quantidade
muito acima do que seria seguro para
limitar o aquecimento global a 1,5 ºC. O
Brasil planeja, até 2050, dobrar a produ-
ção de petróleo em relação a 2020.

 
Nesse contexto, como colocado por
Helen Thompson, professora em Cam-
bridge, estamos diante de duas geopo-
líticas energéticas complexas: a geopo-
lítica caótica dos combustíveis fósseis
e a geopolítica da “energia verde”.2 Esta
última vem sendo construída por ins-
tituições multilaterais e corporações
transnacionais que argumentam que
a substituição das fontes fósseis por
energia eólica e solar seria suficiente
para evitar o aprofundamento das mu-
danças climáticas. Assim, resumem a
transição energética à substituição tec-
nológica e evitam questionar a intensi-
dade energética que sustenta o padrão
de consumo dos países do Norte e das
oelites do Sul global

Por exemplo, a Agência Internacional
de Energia (AIE)3 defende que, para co-
locar as emissões de GEEs em uma traje-
tória consistente com o Acordo de Paris,
a instalação anual de células fotovoltai-
cas e turbinas eólicas teria de ser tripli-
cada, e a venda de automóveis elétricos,
expandida em 25 vezes até 2040. Essa
visão tecnocentrada se manifesta por
meio da idealização das chamadas fon-
tes de energia “limpa” ou “verde” – no-
menclatura que cria a ideia equivocada
de que seria possível gerar energia sem
impacto social ou ambiental.

 
Porém, isso não é verdade. A trans-
formação da energia do sol e do ven-
to em eletricidade depende de uma
grande quantidade de minérios, cuja
extração causa desestruturação social
e degradação ambiental. No fim das
contas, essa substituição tecnológica
nos levaria a trocar a dependência de
petróleo, gás e carvão por outro grupo
de recursos não renováveis, os chama-
dos minerais críticos.

 
Ainda segundo a AIE, um carro elé-
trico utiliza seis vezes mais minerais do
que um carro convencional, e um par-
que eólico demanda nove vezes mais
minerais do que uma termelétrica a gás.
Esse aumento levaria a uma expansão
inédita na extração dos minerais críti-
cos. De acordo com a Universidade de
Tecnologia de Sydney,5 se fizéssemos a
substituição de fontes de energia para
atender à demanda de 2050, seria neces-
sário ampliar a extração anual de lítio
em 8.845%, e de cobalto, em 1.788%. As
projeções também indicam que não ha-
veria no mundo reservas de cobalto, lítio
e níquel suficientes para garantir essa
estratégia de transição.

 
No entanto, corporações mineradoras
se utilizam do discurso da necessidade
de minerais para legitimar suas ativida-
des, independentemente dos impactos.
Não por acaso, o Conselho Internacional
de Mineração e Metais afirma que “as
mudanças climáticas são, sem dúvida,
o maior desafio ambiental que enfrenta-
mos. [...] O setor de mineração e metais
tem também papel vital na garantia de
uma transição suave para uma economia
de baixo carbono”.6 No Brasil, uma agen-
da positiva é essencial, especialmente
após a crise de credibilidade que o setor
vive em consequência dos desastres em
Mariana (2015), Brumadinho (2019) e,
mais recentemente, Maceió.

 
Uma transição energética restrita à mu-
dança tecnológica está associada à pro-
posta do chamado “extrativismo verde”
ou “consenso da descarbonização”, que

eriam um desdobramento do período
neoextrativista pelo qual passaram países
da América Latina entre 2000 e 2012. Es-
ses processos se assemelhariam pelo dis-
curso da inevitabilidade, pela concentra-
ção de poder em atores não democráticos
(corporações e agências multilaterais) e
pela ampliação da fronteira extrativista
para atender o mercado global.

 
Essa construção é estratégica para
reduzir a resistência a novos projetos
extrativos e a seus impactos. Por exem-
plo, a extração de lítio é considerada
economicamente viável para teores en-
tre 0,5% e 2,5%; ou seja, para cada to-
nelada de lítio, são “deixadas para trás”
entre 40 e 200 toneladas de resíduos.
Não por acaso, de acordo com o Obser-
vatório dos Conflitos da Mineração no
Brasil, em 2020 foram identificadas 87
situações de conflito envolvendo a ex-
tração ou o beneficiamento de minérios
vinculados à transição energética. Elas
incluíam disputas fundiárias, questões
de saúde dos trabalhadores e contami-
nação e escassez de água.

 
A perspectiva futura sugere desafios
ainda maiores. A distribuição espacial
do interesse por minerais críticos no
país se manifesta em três vetores princi-
pais. Primeiramente, existe um arco que
inclui norte e nordeste de Minas Gerais,
oeste e norte da Bahia e sudeste do Piauí
– áreas do Semiárido. Dado o elevado
consumo hídrico dos projetos de mine-
ração, existe potencial de conflitos por
acesso a água. Um segundo destaque
corresponde ao norte de Goiás e ao sul
do Tocantins, uma área de domínio do
Cerrado que já sofre com altas taxas de
desmatamento. Um terceiro eixo se es-
tende pelo norte de Mato Grosso, sudes-
te e leste do Pará e leste do Amazonas.

 
A expansão da fronteira mineral na
Amazônia tende a criar um paradoxo. A
mineração de grande escala nesse bio-
ma pode gerar um desmatamento até
doze vezes maior do que a área da lavra.8
Se esses projetos forem levados adian-
te, o suprimento de minerais extraídos
para garantir a transição energética
justificaria o aumento do desmatamen-
to da Amazônia, o que intensificaria a
emissão de GEEs.

 
Para evitar o canto da sereia da tran-
sição energética exclusivamente tec-
nológica, é preciso reconhecer que tal
proposta não é capaz de evitar o colap-
so climático. Mais ainda, ela será res-
ponsável por transferir o ônus social e
ambiental para pequenas comunidades
rurais, que sofrerão os impactos da ex-
pansão da extração mineral.

 
O debate precisa ir além: a discussão
sobre transição energética deve tam-
bém incluir como diminuir a voraci-
dade energética das elites urbanas. Ela
igualmente deve se pautar por mudan-
ças de caráter coletivo, como melhoria
da mobilidade urbana, adequação dos
padrões construtivos e urbanísticos
para garantir conforto térmico, e mu-
danças no padrão de produção indus-
trial, com aumento de eficiência ener-
gética e redução da obsolescência dos
bens duráveis. Em vez disso, o que ve-
mos é a defesa de ações individuais cal-
cadas no aumento do consumo, como a
aquisição de carros elétricos ou placas
solares de uso domiciliar. Além disso,
seria necessário repensar a globaliza-
ção, baseada no transporte de maté-
rias-primas, bens intermediários e pro-
dutos finais ao redor do mundo.

 
Portanto, a ideia de que “o mundo
pode contar com o Brasil”9 para centra-
lizar a transição energética requer que se
considere de qual concepção de transi-
ção está se falando, pois uma transição
que aprofunde a desigual relação entre o
Norte e o Sul globais, com base na am-
pliação da extração dos minerais críticos,
tende a exacerbar contradições sociais e
econômicas de uma estrutura sistêmica
que nos levou à crise ambiental-climáti-
ca atual. O debate precisa exigir a recon-
figuração dos atuais padrões de produ-
ção e consumo, e mesmo questionar a
definição de desenvolvimento.

 
*Bruno Milanez é professor da Faculdade
de Engenharia e do Programa de Pós-Gra-
duação em Geografia da Universidade Fe-
deral de Juiz de Fora (PPGEO-UFJF); e
Aline Araújo é aluna de mestrado no PP-
GEO-UFJF.

LE MONDE DIPLOMATIQUE   

ilustração: CAIO GOMEZ  

 


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