April 6, 2024

Uma advogada nos porões da tortura

 

 

 Diários de defensora de presos políticos durante a ditadura são publicados em livro e inspiram monólogo com Andrea Beltrão 

Helena Aragão

Em 1965, recebi um telefonema avisando-me que havia uma ordem de prisão contra mim. Quando desliguei bateram na porta, era a polícia. Abri e disse: vou me trocar. Sentaram-se na sala. No quarto fiz um bilhete para Dona Pepe, mãe de Ivo Valença, coloquei-o numa garrafa, e desci pela varanda recomendando meu filho recém-nascido. Tirei os lençóis do berço, para evitar que meu bebê sufocasse. Fui mais uma vez conduzida para a Secretaria de Segurança Pública.

Assim, Mércia Albuquerque narra a quarta de suas doze prisões. Elas estão listadas no final do livro Diários 1973-74 escritos por Mércia Albuquerque Ferreira. Nascida em Pernambuco em 1934, ela era recém-formada em direito, em 1964, quando viu uma cena que mudou sua vida: o líder comunista Gregório Bezerra estava sendo torturado no meio da rua, no Recife. Horrorizada, ela chegou em casa e anunciou para o marido, Octávio, que se dedicaria à defesa de presos políticos. Assim foi feito, e fragmentos expressivos dessa experiência foram registrados numa escrita íntima repleta de revolta, angústia, mas também de ternura e até, eventualmente, de humor.


Os relatos de Diários 1973-74 escritos por Mércia Albuquerque Ferreira dão atenção primordial a mães e pais anônimos, de Pernambuco e de outros estados nordestinos

As páginas de Mércia intercalam descrições sobre o estado deprimente dos presos depois de sessões de torturas, conversas duras com militares e policiais e, sobretudo, momentos de atenção e carinho com mães desesperadas que batiam à sua porta, quase todos os dias, em busca dos filhos desaparecidos. Depois de confiar, num momento de aflição, seu recém-nascido a uma vizinha, ela tentou cuidar dos filhos de outras famílias como se fossem seus.

Preocupações

De modo geral, Mércia escrevia pouco sobre si mesma. Deixou um poema aqui e ali, ou momentos de preocupação com o marido, o filho único ou com a saúde. Em 25 de novembro de 1974, relatou uma visita ao médico: “Deixou claro que só poderei engravidar se deixar de advogar. Meu estado emocional perturba o metabolismo. É por demais cômico, luto pelos filhos dos outros, entram em minha vida, amarguram-me a existência e ainda me privam de ter filhos”.

Os diários foram publicados em livro pela editora Potiguariana em 2023, e pouco antes da publicação chegaram às mãos da atriz Andrea Beltrão e da diretora Yara de Novaes. Impactadas com o conteúdo, elas convidaram a dramaturga Silvia Gomez para criar um monólogo a partir dos relatos de Mércia.

O resultado foi a peça Lady Tempestade, que ficou em cartaz entre janeiro e fevereiro deste ano no Rio de Janeiro, em temporada concorridíssima. O título vem de uma frase em que Mércia se compara à mãe — “mulher terna e acomodada, totalmente diferente de mim. Enquanto sou tempestade, ela é bonança”.

Paralelos

A saída de Silvia Gomez para transformar os relatos em dramaturgia foi fazer uma espécie de diário dentro do diário: uma mulher chamada A. recebe as páginas pelo correio, de um certo R. No programa do espetáculo, Beltrão analisa: “Contar e recontar uma história, muitas e muitas vezes, é uma maneira de impedir que o horror aconteça de novo. O silêncio só interessa aos que deveriam ter sido julgados, mas não foram. O silêncio é o parceiro do medo. Um diário guarda vários segredos e um deles é o desejo secreto de ser encontrado”.

Na peça, uma frase é recorrente: “Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão”. Os paralelos com o presente e o futuro são feitos o tempo todo, inclusive com a inserção de um áudio verídico de uma mãe que teve o filho assassinado pela polícia em 2022, na Bahia. O motivo para uma atuação tão consistente como a de Mércia não ter ganhado notoriedade é claro para a dramaturga: “Tantos homens são reverenciados com nome e sobrenome por seus feitos heroicos… O sistema trabalha muito bem para certos nomes serem apagados”.

 

O remetente do diário, na vida real, foi Roberto Monte, economista e diretor do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, no Rio Grande do Norte, a quem foi confiado todo o acervo de Mércia por seu viúvo Octávio, depois que ela morreu, em 2003.

Foi só em 2023 que Monte conseguiu verba para publicar os diários em livro — pela editora Potiguariana, criada também por ele, e que conta com outras obras sobre a atuação do regime militar no Nordeste em seu catálogo. Demorou, mas, na opinião dele, tudo aconteceu na hora certa. A visibilidade é inédita no momento em que são lembrados os sessenta anos do golpe militar.

Os relatos têm muitas críticas aos militares, mas também sobra para o partidão, o PCB

Parte do acervo, que além do diário tem cartas e documentos jurídicos, está acessível no site www.dhnet.org.br. A esse conjunto se somou, recentemente, um material novo, com informações sobre pessoas defendidas por Mércia, numa espécie de memorial.

Enquanto na peça os militares são citados de modo genérico como “gafanhotos”, alcunha que de fato ela usava vez ou outra no diário, no livro eles aparecem com nome e sobrenome, e há no final uma lista de torturados e de torturadores. Sobre estes últimos, Monte observa: “Em geral, tudo nome de rua, de avenida”.

A plateia do espetáculo se tornou, por vezes, ponto de encontro de ex-presos políticos, ou de familiares dos que morreram. No fim de janeiro, um grupo de parentes estendeu uma faixa na plateia cobrando do governo a reinstalação da comissão de mortos e desaparecidos. Dora Santa Cruz foi além: levou uma foto do seu irmão Fernando Santa Cruz, desaparecido político desde 1974. Convidada a ir ao centro do palco por Beltrão ao fim do monólogo, ela contou a história dele, e citou outras vítimas dos militares, com a plateia gritando “presente!” a cada nome. Foi como um ritual.

Cortes e vazios

Os relatos de Mércia têm muitas críticas aos militares (há diversas páginas rasuradas ou até cortadas), mas também sobra para o PCB (Partido Comunista Brasileiro). “Estou preocupada com a mãe de Maria de Messias, sozinha com um filho excepcional, num quitinete passando muita privação, e nenhum comunista vai lá levar ajuda. Como os homens são iguais”, desabafa em 18 de junho de 1974.

Havia, para ela, uma classe ainda mais abandonada: os camponeses. É o caso do relato de 15 de setembro de 73: “Um pobre camponês, preso há dez anos, vítima da esquerda e da direita. Dei atenção a ele mais de uma hora, afinal alguém precisa ouvi-lo; deixei-o despejar toda a amargura que o machuca há muito tempo”.

Também há elogios a algumas figuras públicas, como Dom Hélder (“fiquei comovida com a ternura com que fala dos problemas do povo”) e Sobral Pinto (“Li uma carta corajosa feita pelo pai das liberdades, Sobral Pinto, ao Ministro da Justiça, que poderá trazer consequências ao velho jurista”). Mas sua atenção primordial é a mães e pais anônimos, de Pernambuco e de outros estados nordestinos.

Mércia se arriscou ao denunciar más condições nas prisões e até partir para o embate direto

Dizia que jamais mentia a uma mãe, preferia até ficar em silêncio. Mesmo em momentos difíceis, como o relatado em 10 de maio de 1973: “Nem bem o dia amanheceu, Dona Rosália chorando me perguntava pelo filho. Já não me animei e falei-lhe dos meus temores. (…) Então a velhinha me deu uma lição: ‘Doutora, a senhora precisa se controlar para ajudar a nós’. Fez-me prometer que acharia o filho, vivo ou morto, o que cumpri”.

Em 29 de novembro daquele ano, descreveu poeticamente outro diálogo, repleto de vazios:

Recebi o pai de Ramires, aflito com a notícia da morte do filho. () O velho me falou: ‘Sinto como se o mundo caísse; estou partido, mas se ele voltasse a viver, e quisesse trilhar o mesmo caminho, não o impediria’. O Sr. Francisco estava pálido, eu comovida; era a dor muda, sem blasfêmias nem lágrimas, era a amargura que tira a doçura da vida e a tranquilidade dos lares. Apertei-lhe a mão e chorei; senti que o silêncio era mais prudente. Abri a porta, e o velho mergulhou na noite.

Se o silêncio era o recurso possível na conversa com parentes em desalento, Mércia se arriscou muitas vezes ao denunciar más condições em prisões e até ao partir para o embate direto: “O Dr. Ednaldo disse-me que mais lhe dói a morte de um cavalo do que a de um preso político. Ao que repliquei: ‘Faz muito bem em defender a sua espécie, eu defendo a minha, os homens’”.

E defendeu até o fim. No posfácio, Maria do Amparo Araújo, fundadora do grupo Tortura Nunca Mais de Pernambuco, conta que, décadas depois, Mércia se tornou ouvidora na Secretaria de Justiça de Pernambuco e foi encarregada de ouvir depoimentos de testemunhas na comissão criada para indenizar sobreviventes. Mais uma vez, ajudou a manter viva a memória dessa página infeliz da nossa história.

QUATRO CINCO UM

 

 

 

 

 

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