March 30, 2024

O triunfo da Uberização

 

 

 O governo Lula tenta remendar o estrago causado pela reforma de Temer e a uberização, enquanto o STF engessa a Justiça do Trabalho

 Por Maurício Thuswohl


  Criamos uma nova categoria no Brasil, chamada trabalhadores autônomos com direitos”, celebrou o presidente Lula ao enviar ao Congresso Nacional, na segunda-feira 4, o Projeto de Lei elaborado pelo Executivo que estabelece regras para o trabalho de motoristas de aplicativo. O envio do PL, que tramitará em regime de urgência e deve ser votado pela Câmara em um prazo máximo de 45 dias, foi igualmente celebrado por trabalhadores e plataformas que operam no setor, após a conclusão em consenso de um processo de negociação tripartite, que se estendeu desde o início do atual governo. Empolgado, Lula disse ter recomendado ao ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que enviasse o projeto ao presidente dos EUA, Joe Biden, “para mostrar ao mundo o que é possível fazer”.

Embora faça sentido do ponto de vista político, afinal trata-se de fato de uma tentativa de regulação nacional inédita para os chamados “trabalhadores plataformizados”, a festa em torno do PL ofusca o fato de que a propalada “autonomia com direitos” consolida mais um rebaixamento das conquistas que os trabalhadores no Brasil obtiveram desde o governo de Getúlio Vargas. Mesmo ao conceder aos motoristas de aplicativo direitos como o pagamento mínimo por hora trabalhada ou a contribuição ao INSS, entre poucos outros, a regulamentação os deixa fora da alçada da Consolidação das Leis do Trabalho e aprofunda a precarização iniciada com a reforma aprovada em 2017 no governo de Michel Temer.

Em paralelo, o Supremo Tribunal Fe-
deral, a partir do entendimento em plená-
rio virtual de que um caso analisado na-
quela Corte é matéria de repercussão ge-
ral, prepara-se para decidir se existe vín-
culo empregatício entre os motoristas e
as empresas que administram e operam
as plataformas virtuais de transporte. Se-
gundo o IBGE, no fim de 2022 cerca de
1,5 milhão de brasileiros trabalhavam
para aplicativos, dos quais 780 mil atu-
am no transporte de passageiros, núme-
ro que pode ter dobrado no ano passado.
Em decisões recentes, o STF tem seguido
a tendência de não reconhecer esses vín-
culos, posição que vai de encontro à com-
preensão das entidades ligadas à Justiça
do Trabalho, mas que, ao criar jurispru-
dência, provocará efeito cascata que de-
verá atingir de imediato categorias ain-
da não regulamentadas, como os entre-
gadores de aplicativos, e podem até mes-
mo ameaçar conquistas de outras catego-
rias que hoje têm salário regular. Ou se-
ja, desde a criação do salário mínimo, em
1940, na Era Vargas, os trabalhadores bra-
sileiros não se encontram tão fragilizados.

 
A proposta enviada pelo go-
verno para regulamentar
o trabalho de motoris-
tas de aplicativo prevê o
pagamento mínimo de
32,10 reais por hora trabalhada e determi-
na que a jornada de trabalho não ultrapas-
se as 12 horas diárias por plataforma. Para
o recolhimento à Previdência, as platafor-
mas vão contribuir com 20% dos valores
referentes à remuneração, e os motoristas
com 7,5%. “O governo fala em trabalha-
dores autônomos com direitos. Mas, na
verdade, não são os direitos trabalhistas
propriamente ditos, conquistados pela
classe trabalhadora ao longo de décadas,
e sim migalhas que satisfazem o poder
econômico na medida dos seus interes-
ses. Tanto que a Uber aplaude a iniciati-
va”, observa o juiz do trabalho Jorge Luiz
Souto Maior. A empresa divulgou nota na
qual afirma que o PL “amplia a proteção
desse modelo de trabalho sem prejuízo da
flexibilidade e da autonomia”. E também
pediu ao STF a extinção de cerca de 10 mil
processos sobre vínculo empregatício em
trâmite nos tribunais inferiores.

 
“Houve um retrocesso muito grande”,
avalia Souto Maior. “Há uma tendência
agora, e isso vai se verificar nos modelos
semelhantes de contratação de traba-
lhadores, atingindo hospitais, comércio,
veículos de imprensa.” Bastará, segundo
o magistrado, criar um aplicativo que fa-
ça a intermediação da mão de obra, pa-
ra que as obrigações do empregador dei-
xem de existir. “Consequentemente, pas-
sa a ser-lhe possível do ponto de vista le-
gal, o que é muito grave, explorar o tra-
balho sem qualquer limite. Estamos re-
tomando uma fórmula do século XVIII.
E com um discurso enviesado e negacio-
nista num tema que é de crucial interes-
se para a sociedade como um todo, mas,
sobretudo, para a classe trabalhadora.”

 
Em resposta conjunta enviada por
e-mail à reportagem, o presidente da
Associação Nacional dos Procuradores
e Procuradoras do Trabalho, a ANPT, Jo-
sé Antonio Vieira de Freitas Filho, e a vi-
ce-presidente da entidade, Lydiane Ma-
chado e Silva, dizem que o projeto repre-
senta “um pequeno primeiro passo ru-
mo à indispensável, adequada e integral
proteção trabalhista e previdenciária
dos trabalhadores a que se refere”, mas
advertem: “Seja pelo alcance reduzido,
seja pela possibilidade de interpretação
deturpada quanto à exclusão do víncu-
lo empregatício, é bastante preocupante
e pode não atingir sua finalidade social,
não sendo, portanto, suficiente”.

 
Presidente da Associação Nacional
dos Magistrados da Justiça do Trabalho,
a Anamatra, Luciana Conforti afirma
sempre haver preocupação quando se fala
em uma nova categoria, porque isso pode
trazer diminuição de direitos: “Um exem-
plo é essa questão da jornada diária de oi-
to horas, podendo chegar a 12. Se os moto-
ristas de aplicativo não são exclusivos, nos
perguntamos como vai haver o controle
dessas 12 horas diárias se o trabalhador
pode estar vinculado a mais de uma pla-
taforma. Da mesma forma, não se define
se o tempo de espera entre uma corrida e
outra será remunerado. São questões prá-
ticas que só veremos mais para a frente”.

 
As entidades buscam reverter o esva-
ziamento da Justiça do Trabalho provoca-
do pelas sucessivas decisões do STF. “En-
tendemos que qualquer relação de traba-
lho é competência da Justiça do Trabalho,
determinada pela Constituição. O PL não
trata disso, mas dizer de saída que os mo-
toristas de aplicativo são autônomos é
preocupante, porque essa determinação,
se há ou não um vínculo, cabe à Justiça do
Trabalho”, avalia Luciana Conforti. A juí-
za diz temer que, a partir desse exemplo,
se possa dizer que qualquer trabalhador
plataformizado é autônomo. “Muitos ser-
viços hoje são plataformizados, então não
teremos mais trabalho pela CLT?”, indaga.

 
Já os dirigentes da ANPT lamentam
que a competência da Justiça do Traba-
lho, “embora tenha origem constitucio-
nal, está sendo afastada por força de rei-
teradas reclamações que têm sido admi-
tidas pelo STF, a despeito da falta de ade-
rência estrita entre determinada situação
concreta e a tese jurisprudencial vincu-
lante”. Freitas Filho e Lydiane Silva acres-
centam que a Justiça do Trabalho “é fun-
damental à efetivação do Direito do Tra-
balho, que, por sua vez, é imprescindível
à preservação e ao robustecimento de um

Estado Democrático e Social de Direito
capaz de assegurar a dignidade dos tra-
balhadores e das trabalhadoras”.

 
Há um ano, em sua mais recente deci-
são no sentido de permitir formas de re-
lação entre empregadores e empregados
alternativas ao estabelecido pela CLT, o
STF, na figura do ministro Alexandre de
Moraes, anulou um acórdão do Tribunal
Regional do Trabalho do Rio de Janeiro
que reconhecia vínculo empregatício em
uma relação de franquia. Outros seis in-
tegrantes da Suprema Corte também já
se manifestaram contra o reconhecimen-
to de vínculos empregatícios em situações
anteriores. Para José Dari Krein, profes-
sor do Instituto de Economia da Unicamp
e pesquisador do Centro de Estudos Sin-
dicais e Economia do Trabalho (Cesit), “o
Supremo, nos últimos tempos, teve uma
função importante de preservar a demo-
cracia, mas do ponto de vista dos direitos
sociais tem uma visão eminentemente li-
beral-conservadora que joga contra o tra-
balho decente e a perspectiva de proteção
e inclusão dos trabalhadores”.

 
Krein avalia que a gran-
de novidade que o traba-
lho da plataforma trouxe
às relações de trabalho
foi possibilitar às empre-
sas organizar atividades econômicas que
mobilizem um contingente expressivo de
trabalhadores sem nenhuma responsabi-
lidade social, trabalhista e previdenciária.

 
Segundo o especialista, vivemos o ápice
de um processo de reformas laborais na
perspectiva de ampliar as liberdades de
as empresas manejarem a força de tra-
balho de acordo com suas necessidades:
“São empresas que não têm capital fixo
e usam como instrumento de trabalho
quem presta o serviço, que é o trabalha-
dor plataformizado”. Outro fenômeno,
acrescenta, é a ausência de oportunida-
des de trabalho de qualidade: “Tem muito
mais gente disponível para trabalhar do
que ocupações de qualidade sendo ofere-
cidas. A ausência de alternativas cria um
mercado de trabalho em que grande par-
te das pessoas ocupadas está numa con-
dição muito precária e vulnerável, com
baixos salários. Esse mar de precarieda-
de faz com que muitos optem por se in-
serir nesses trabalhos de plataforma”. A
dúvida, emenda Krein, é se a aprovação
do PL “ajuda a proteger os motoristas de
aplicativo ou abre brechas para um rebai-
xamento geral dos direitos trabalhistas”.

 
Realizada há sete anos, a reforma pro-
posta por Temer e seu ministro da Fazen-
da, Henrique Meirelles, é apontada como
um marco na precarização do trabalho: “A
reforma de 2017, como era facilmente pre-
sumível, não cumpriu qualquer das suas
inúmeras promessas. Em verdade, apro-
fundou a precarização das condições de
trabalho, afastou os trabalhadores do
sistema de proteção dos direitos sociais e
permitiu a terceirização irrestrita”, dizem
Freitas Filho e Lydiane Silva. Segundo os
dirigentes da ANPT, “o índice de desem-
prego aumentou, os trabalhadores foram
entregues às drásticas consequências so-
cioeconômicas da informalidade e as en-
tidades sindicais foram enfraquecidas”.

 
Souto Maior diz que o objeti-
vo da reforma nunca foi pro-
piciar a geração de empregos,
e sim aumentar os lucros das
empresas por meio de maior
exploração do trabalho. Nisso, avalia, ela
foi muito bem-sucedida: “Conseguiu re-
dução de salários e do custo de trabalho
graças a mecanismos de flexibilização. O
aumento da participação da classe traba-
lhadora no PIB diminui e a das grandes
empresas cresce enormemente. A refor-
ma retirou da classe trabalhadora o ganho
pelo trabalho”, avalia. Segundo o juiz, o
Brasil vive um processo acelerado de acu-
mulação da renda nas mãos dos mais ri-
cos e o ambiente de trabalho ficou mui-
to mais penoso para a classe trabalhado-
ra como um todo, exatamente por conta
dos direitos que vão deixando de existir.

 
Para Luciana Conforti, da Anamatra,
a promessa de que a reforma trabalhista
iria proporcionar maior liberdade às ne-
gociações coletivas tampouco foi cumpri-
da: “Qual aumento de negociações esta-
mos vendo? Ao contrário, tivemos uma de-
cisão do Supremo dizendo que tinha de ha-
ver uma contribuição para o financiamen-
to das entidades sindicais, mas no dia se-
guinte apresentaram um Projeto de Lei
para impedir a cobrança dos não sindica-
lizados. O Congresso continua na inten-
ção de esvaziar os sindicatos, aniquilando
a possibilidade de um sindicalismo forte,
que realmente negocie”. José Dari Krein
também menciona a fragilização do movi-
mento sindical como consequência direta
da reforma: “A queda da taxa de sindicali-
zação pós-reforma trabalhista é uma coisa
impressionante, atingindo em alguns se-
tores 40% de média, de 2017 a 2022. Têm
de existir sindicatos, assim como é impor-
tante a valorização do salário mínimo”.

 
Aos poucos, o governo tenta criar um
ambiente político propenso à volta da con-
tribuição sindical. Nas últimas semanas,
o ministro Luiz Marinho tem se reuni-
do com parlamentares das frentes de Co-
mércio e Empreendedorismo para pedir
apoio a uma proposta que prevê uma ta-
xa de contribuição extraída de acordos de
reajustes salariais obtidos pelos sindica-
tos junto às empresas. A ideia vem sendo
incorporada às discussões sobre as regras
de trabalho nos feriados – o ministro pror-
rogou por 90 dias a suspensão da portaria
que dificulta o trabalho nesses dias. Não
há sinal, entretanto, de que a proposta ve-
nha a prosperar na atual composição da

 Câmara: “Não há compromisso da nossa

parte com a aprovação do projeto”, resume
o deputado Domingos Sávio, do PL. Procu-
rado por CartaCapital, Marinho não deu
retorno até a conclusão desta reportagem.
Apesar das preocupações generaliza-
das com a perda de direitos trabalhistas,
o sentimento é de vitória entre os traba-
lhadores que participaram do processo de
negociação que culminou na apresentação
do PL dos motoristas de aplicativo: “O Bra-
sil tornou-se um exemplo para o mundo. O
debate da proteção aos trabalhadores por
aplicativos e plataformas é mundial. Este
é o primeiro caso que conheço de um país
que regulamenta por meio de lei a prote-
ção a esses trabalhadores”, avalia Sérgio
Nobre, presidente nacional da CUT. Para
Wagner Menezes, secretário nacional
de Transportes e Logística da central
sindical, o foco agora será na pressão so-
bre o Congresso: “Já estamos nos articu-
lando com lideranças dos trabalhadores e
sindicatos para conversar com os líderes
de bancadas e cobrar a aprovação do pro-
jeto. Mas é preciso que todos os trabalha-
dores se empenhem nessa mobilização”.
Menezes avalia que a
aprovação do PL se-
rá “um avanço im-
portantíssimo para
a classe trabalhado-
ra não só na questão salarial, mas também
na social. A categoria precisava dessa re-
gulamentação”. Segundo o sindicalista, o
próximo passo é regulamentar o trabalho
dos entregadores de comida por aplicativo:
“Sabemos das condições precárias e da ex-
ploração que as plataformas exercem so-
bre esses trabalhadores”. Presidente do
Sindicato dos Motoristas de Aplicativos
do Estado de São Paulo, Leandro Cruz
afirma ter gostado do resultado final das
negociações entre governo, plataformas e
empregados: “O trabalhador queria auto-
nomia com direitos, e isso está contempla-
do no PL. Estamos regulamentando uma
profissão que hoje não existe, isso é impor-
tante para nós”. Sobre o vínculo emprega-
tício, Cruz diz esperar a decisão do STF:
“Está nas mãos do Judiciário”.



Em relação aos entregadores de comi-
da, Lula e Marinho prometeram uma de-
finição “em breve”. Na cerimônia de apre-
sentação do projeto, o presidente disse es-
perar que “agora outros setores sentem à
mesa” e fustigou as empresas: “A iFood
não quer negociar, mas vamos encher o sa-
co deles”. Marinho também mencionou a
Mercado Livre como exemplo de compa-
nhia inflexível: “As empresas dizem que o
padrão de negociação não cabe em seu mo-
delo de negócio”, lamentou o ministro. Em
nota, o iFood afirma “não ser verdadeira
a fala do ministro” e garante “querer ne-
gociar uma proposta digna para os entre-
gadores”. A empresa diz que “participou
ativamente do grupo de trabalho forma-
do para discutir o tema”. Já a Mercado Li-
vre afirma que, “diferentemente do que foi
dito, está aberta ao diálogo e atua de di-
ferentes formas nessa agenda setorial”
 
CARTA CAPITAL 

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