March 18, 2024

Ensaio sobre o descaso

 

Cinco anos após o incêndio ocorrido no alojamento dos atletas da base do Flamengo, no Rio, uma reportagem de fôlego esmiúça a gênese da tragédia

 PAULO CEZAR SOARES
Oano de 2019 foi ambivalen-
te para o Clube de Regatas
do Flamengo. O time prin-
cipal conquistou o Campeo-
nato Carioca, o Brasileirão
e a tão sonhada Libertadores da América,
depois de 38 anos de espera. Mas, fora das
quatro linhas, o clube viveu uma tragédia,
com o incêndio no Centro de Treinamen-
to Ninho do Urubu, em Vargem Grande,
Zona Oeste do Rio.

 
Na madrugada de 8 de fevereiro de
2019, 24 atletas que haviam se reapre-
sentado ao fim das férias foram surpre-
endidos pelo fogo que se alastrou rapi-
damente pelo alojamento. A estrutura,
composta de contêineres e com apenas
uma porta de saída, não possuía proprie-
dades antichamas. Dez jogadores morre-
ram – cinco deles tinham apenas 14 anos;
quatro, 15; e o mais velho, 16.

 
Em Longe do Ninho: Uma Investiga-
ção do Incêndio Que Deu Fim ao Sonho
de Dez Jovens Promessas do Flamengo
de se Tornarem Ídolos no País do Futebol,
a jornalista Daniela Arbex descreve, de
forma objetiva e pungente, o drama dos
pais, mães e familiares dos jovens atle-
tas quando tomaram ciência do ocorri-
do. Em um primoroso trabalho de apura-
ção, que inclui o acesso a laudos técnicos,
trocas de mensagens, e-mails e entrevis-
tas com as famílias dos jogadores mortos,
a autora esmiúça a gênese da tragédia.
Mineira de Juiz de Fora, Daniela
Arbex trabalhou durante 23 anos na
Tribuna de Minas, onde foi repórter es-
pecial, e é ganhadora de diversos prêmios
nacionais e internacionais, como o Prê-
mio Esso de Reportagem, o Jabuti e o
Prêmio Wladimir Herzog.

Longe do Ninho é o seu sexto livro-re-
portagem e foi, como os demais, publica-
do pela Intrínseca. Holocausto Brasilei-
ro – Genocídio: 60 Mil Mortos no Maior
Hospício do Brasil (2013) e Arrastados:
Os Bastidores do Rompimento da Barra-
gem de Brumadinho, o Maior Desastre
Humanitário do Brasil (2019) são outros
de seus trabalhos.

 
A tragédia do Flamengo estava fora de
seus planos profissionais até o dia em que
ela foi procurada pela mãe de um jogador
do Ninho do Urubu. “De fato, jamais ha-
via passado pela minha cabeça escre-
ver um livro que abordasse futebol. Nos
meus quase 30 anos de jornalismo, sem-
pre me dediquei à defesa dos direitos de
populações vulnerabilizadas. Nunca par-
ticipei da cobertura de esportes”, diz ela,
em entrevista por escrito a CartaCapital.
“Mas o fato é que fui atravessada pela
história de Bernardo três anos depois da

morte dele. A mãe do atleta, Leda, me es-
creveu no Instagram, após assistir a uma
entrevista minha para o Fantástico, em
2022, por ocasião do lançamento de Ar-
rastados”, prossegue a autora. “A partir
daquele contato, o livro foi nascendo pa-
ra mim, organicamente. Quando me dei
conta, já estava profundamente envolvi-
da com os Garotos do Ninho e, então, me
restava investigar essa história.”

 
A jornalista passou os dois últimos
anos debruçada sobre o caso e sobre a
memória afetiva das famílias dos garo-
tos. “Um dos momentos em que mais me
emocionei foi durante a descoberta, no
IML, de que todas as vítimas estavam
com as placas de crescimento abertas,
ou seja: estavam em pleno desenvolvi-
mento”, relata.

 
Segundo a autora, quando os jogado-
res se reapresentaram, chegaram a pen-
sar que iriam para o CT1, edificação com
status de hotel que, durante dois anos

hospedou o time principal e deveria abri-
gar o futebol de base após o término das
obras do novo Centro de Treinamento
do Módulo Profissional, inaugurado em
novembro de 2018. Eles foram, porém,
mandados para os contêineres em for-
ma de alojamento instalados em um es-
paço projetado como estacionamento.

 
A autora frisa que, no dia do incêndio,
até 9h35 da manhã, a única manifestação
pública do Flamengo tinha sido feita por
meio da conta oficial do clube no X: “O
Flamengo está de luto”, lia-se. Somente às
12h25 o então presidente do clube, Luiz
Rodolfo Landim, falou com a imprensa
na portaria do Centro de Treinamento.
Desculpou-se pela demora em comentar
o ocorrido e, ao final, retirou-se, sem dar
chance para perguntas dos jornalistas.
“A investigação da cadeia de aconteci-
mentos que antecedeu o dia 8 de feverei-
ro de 2019 traria à tona diversas irregula

ridades e uma certeza: a tragédia poderia
ter sido evitada”, diz a autora.

 
Por exemplo, o alvará de funcionamento
havia vencido em 2012 e não havia o certifi-
cado de aprovação do Corpo de Bombeiros.

 
“É, no mínimo, contraditório que o
Flamengo reservasse para os atletas pro-
fissionais um CT com 5,5 mil metros qua-
drados, enquanto para os meninos que
representavam o futuro do clube um con-
têiner com espaço inferior a 200 metros
quadrados”, descreve a autora. “Essa tra-
gédia anunciada acende um alerta sobre
a capacidade de os clubes oferecerem, de
fato, estrutura adequada para os atletas
em formação. São meninos que saem
precocemente de casa, desenvolvem re-
lações comerciais precoces, têm fragili-
zado o seu laço com a família e enfrentam
sobrecarga física e emocional.”

 
Este mês, a tragédia completou cin-
co anos e segue sem uma conclusão na
Justiça.

CARTA CAPITAL    

 

 

 

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