March 31, 2024

Caso encerrado ?

 



A PF APRESENTA OS MANDANTES DO ASSASSINATO
DE MARIELLE, MAS AINDA DEVE UMA DEVASSA NO
“ECOSSISTEMA CRIMINOSO” DO RIO DE JANEIRO

 p o r M A U R Í C I O T H U S W O H L

 

  “Espero que avance muito mais. Ainda não tem a história completa, a motivação não está clara. Então, ainda não fechou.” As palavras de Ágatha Arnaus, viúva do motorista Anderson Gomes, resumem o sentimento dos familiares das vítimas – e de boa parte do Brasil – quanto ao desfecho das investigações sobre as mortes de seu marido e da vereadora Marielle Franco. A conclusão do caso foi anunciada no domingo 24 pelo Ministério da Justiça, cinco dias após a delação premiada do sicário Ronnie Lessa ter sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal e seis anos depois do crime. A possibilidade de que as investigações ainda não tenham chegado ao fim gera, porém, muita expectativa, sobretudo após a confirmação da participação de peixes graúdos na trama criminosa.

Identificados pela Polícia Federal como “autores intelectuais” do duplo homicídio, os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro e deputado federal pelo União Brasil, respectivamente, gozam de grande prestígio na política fluminense. Já o ex-chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, acusado de participação no crime e de posterior sabotagem do inquérito, é conhecido por seu trânsito e diálogo com diversas forças políticas do estado. Com os três em presídios separados por determinação do STF, não será surpresa se novos elementos ou delações ganharem a luz do dia: “O inquérito tem 470 páginas e muito provavelmente vão se abrir outros flancos. Esse crime esbarra em vários outros e expõe uma cena criminosa muito profunda e enraizada nas instituições do Rio de Janeiro”, afirma a jornalista Fernanda Chaves, única sobrevivente do atentado que matou Marielle e Anderson.

 O ministro da Justiça, Ricardo Lewan-
dowski, não descarta a possibilidade, mas
também não a vislumbra por ora. “É cla-
ro que podem surgir novos elementos,
mas neste momento os trabalhos foram
dados como encerrados.” Já seu anteces-
sor, Flávio Dino, hoje no Supremo Tribu-
nal Federal, avaliou, durante o julgamen-
to que referendou a prisão dos suspeitos,
que “a leitura das peças processuais reve-
la a possibilidade de configuração de um
autêntico ecossistema criminoso” no Rio.

 
Segundo o magistrado, isso “pode gerar a
continuidade das investigações em um ou
mais inquéritos”. Viúva de Marielle, a ve-
readora Monica Benicio, do PSOL, diz que
Lewandowski “fez um pronunciamento
que foi prometido não apenas a nós fami-
liares, mas à democracia brasileira”, mas
também não está satisfeita: “O voto do mi-
nistro Dino fala muito do que ainda há pe-
la frente. Essa investigação revela que, de
fato, existe um ecossistema criminoso que
se articula com a política institucional. É
o crime institucionalizado dentro do Es-
tado. Isso não só pode, como deve, gerar a
continuidade da investigação criminal”.
No campo da esquerda, a ideia é esmiu-
çar a proximidade do clã Brazão com o clã
Bolsonaro. Nas últimas eleições, Chiqui-
nho Brazão foi o cicerone de Bolsonaro
em atividades de campanha realizadas
nas comunidades de Rio das Pedras e
Gardênia Azul, redutos políticos dos Bra-
zão. Domingos e o irmão mais velho – o
deputado estadual Pedro Brazão – tam-
bém declararam apoio ao ex-capitão na
disputa contra Lula no ano passado. Ou-
tro alvo é o ex-ministro Walter Braga
Netto, que foi vice na chapa derrotada de
Bolsonaro e era chefe da intervenção fe-
deral na segurança pública do Rio em
2018, ano em que Rivaldo Barbosa foi no-
meado chefe da Polícia Civil e Marielle e
Anderson foram assassinados.

 
A bancada do PSOL na Câmara solici-
tou à Procuradoria-Geral da República a
abertura de uma investigação para apu-
rar as relações do general Braga Netto
com o delegado, que era chefe da Delega-
cia de Homicídios da Capital e foi alçado
à Chefia de Polícia na véspera do crime:
“Importa salientar que Braga Netto foi
alertado que Barbosa era suspeito de ter
ligações com a milícia carioca e mesmo
assim bancou sua indicação. Braga Netto
deu o poder necessário para o artífice e
uma das cabeças pensantes da execução
de Marielle Franco”, diz o documento as-
sinado pelos deputados Henrique Vieira,
Célia Xakriabá e Érica Hilton.

 
Em nota, a defesa de Braga
Netto repetiu a manjada tática
bolsonarista de colocar em ci-
ma de subordinados a culpa por
erros ou malfeitos. Afirmou que,
embora tenha assinado a nomea-
ção de Barbosa, este teria sido indicado pe-
lo então secretário de Segurança Pública,
o também general Richard Nunes. “Por
questões burocráticas, o ato administra-
tivo era assinado pelo Interventor Federal
que era, efetivamente, o governador na
área de segurança pública.” O detalhe
omitido na nota é que o nome do delegad
havia sido recomendado pelo Comando
Militar do Leste, que naquela ocasião era
chefiado havia três anos por Braga Netto.
Já Nunes, um dos oficiais a não endossar
as pretensões golpistas de Bolsonaro em
2022, não pode ser considerado hoje um
aliado do bolsonarismo.

BRAGA NETTO
AGORA TENTA
SE ESQUIVAR DA
RESPONSABILIDADE
PELA NOMEAÇÃO
DE UM SABOTADOR

 Ainda não há sinalização da estratégia
de defesa que adotarão os irmãos Brazão,
agora presos. A julgar pela celeridade com
que a direção do União Brasil discutiu e
aprovou, por unanimidade, a expulsão do
deputado Chiquinho no mesmo dia de sua
prisão, o que parece certo é que, ao menos
em um primeiro momento, ambos serão
repudiados tanto por adversários quanto
por aliados. Outro sinal dessa tendência
foi dado pelo relator do caso na Comissão
de Constituição e Justiça da Câmara, de-
putado Darci de Matos, do PSD, que na
terça-feira 26 apresentou um parecer que
valida a prisão de Chiquinho. Em segui-
da, a análise da CCJ foi interrompida por
um pedido de vista apresentado pelos de-
putados Gilson Marques, do Novo,
Roberto Duarte, do Republicanos, e Faus-
to Pinato, do PP, que terão dois dias para
devolver o parecer para votação no pró-
prio colegiado. Após a análise na CCJ, o
texto seguirá para o plenário da Câmara.
São necessários 257 votos para que a pri-
são seja mantida ou revogada.

 
Já Domingos Brazão teve um pedido
de impeachment contra si protocolado no
TCE do Rio a pedido do Ministério Públi-
co junto ao Tribunal de Contas da União.
Em seu despacho, o subprocurador Lu-
cas Furtado sugere que seja analisada a
possibilidade de afastamento cautelar de
Brazão das atividades do tribunal esta-
dual e também de sua aposentadoria
compulsória ao final da apuração inter-
na. Brazão já havia sido afastado de suas
funções em 2017, suspeito de receber pro-
pinas em contratos firmados pelo gover-
no do Rio, mas retornou ao cargo no ano
passado por decisão da Justiça. Assim que
retornou ao TCE, o conselheiro requereu
o recebimento do valor correspondente
a 420 dias de férias não tiradas nesse pe-
ríodo, em um total de 581 mil reais. Além
de Domingos e Chiquinho, o clã conta
ainda com o deputado estadual Pedro
Brazão, irmão mais velho, e com o verea-
dor Waldir Brazão, que era chefe de gabi-
nete de Chiquinho, adotou o nome da fa-
mília e se elegeu nas eleições de 2020.

 
A revelação da chocante participação
de Barbosa e Giniton Lages, chefe da De-
legacia de Homicídios da Capital por ele
indicado, na trama criminosa é vista co-
mo uma oportunidade de se enfrentar a
histórica corrosão das instituições de Es-
tado pelo crime organizado no Rio de Ja-
neiro, embora esta seja uma tarefa com-
plexa. “Tudo que está envolvido no assas-
sinato de Marielle e Anderson constitui
uma revelação da profundidade, magni-
tude e extensão em que se tem dado a de-
gradação das instituições do Rio de Janei-
ro, em particular das polícias e da justiça
criminal de uma maneira geral”, diz o an-
tropólogo e cientista político Luiz Eduar-
do Soares. Mas que não se alimentem ilu-
sões: “A maior parcela das autoridades
responsáveis e das lideranças políticas no
Rio é parte do problema e está envolvida
com essa dinâmica há muitos anos. Por-
tanto, seria muito ingênuo supor que daí
proviesse a mudança”. O especialista ava-
lia, porém, ser possível iniciar um proces-
so em busca de soluções: “Devemos tra-
zer à sociedade a necessidade de irmos
muito mais fundo, não só na busca da pu-
nição de culpados, mas na transformação
das condições que tornaram um caso co-
mo o da Marielle possível”.

 
Soares afirma que há uma “de-
gradação institucional auto-
construída”, uma espécie de
“doença autoimune” na segu-
rança pública do Rio. “Não se
trata do crime penetrando a
polícia, não se trata de organização cri-
minosa já constituída que planeja a infil-
tração, embora existam personagens da
milícia que se candidatam para ocupar
espaços no Legislativo e até no Executivo.

 
Na maior parte dos casos, o que você tem
são policiais civis ou militares que bus-
cam associação com protagonistas do
crime, que agem como criminosos dire-
tamente e passam a funcionar eles pró-
prios como criminosos. É um processo de
degradação interno.” O antropólogo diz
que o caso do delegado Barbosa “é uma
expressão hipertrofiada” de um processo
contínuo de envolvimento da polícia com
a corrupção e com a violência nas suas
formas mais despóticas: “Isso leva ao
poder Wilson Witzel e Cláudio Castro,
leva ao poder Jair Bolsonaro, mas tam-
bém havia levado ao poder Sérgio Cabral
com as suas tinturas liberal-democráti-
cas. São diferentes modalidades, mas es-
sencialmente trazem esse amálgama de
força e domínio político com base em ex-
torsão, chantagem e assassinato”.

 
Para o sociólogo Ignacio Cano, o cri-
me e o comprometimento de Barbosa, se
comprovados, reforçam que as relações

da polícia fluminense com o crime orga-
nizado acontecem há muito tempo e po-
dem envolver muitos crimes: “A gente sa-
be que o Escritório do Crime funcionou
durante anos sem ser importunado, jus-
tamente pelo comprometimento da Po-
lícia Civil. Ninguém telefona para um de-
legado e pede ajuda para matar alguém
se não houver uma relação consolidada,
se isso já não foi feito outras vezes. Isso
indica um comprometimento muito al-
to de todas as esferas de poder no Rio de
Janeiro”. Analista da segurança pública
no Rio de Janeiro há mais de 20 anos, Ca-
no afirma que o estado perdeu “uma
grande oportunidade de botar muita coi-
sa a limpo” quando o ex-governador Sér-
gio Cabral se dispôs a fazer delação pre-
miada em 2021: “Ele teria muita coisa a
dizer sobre esse comprometimento em
todas as esferas mas, infelizmente, sua
delação não se concretizou”. Mesmo sem
garantia alguma de que o Caso Marielle
por si só vá sanar o sistema, acrescenta
Cano, ele pode representar o início de um
processo de limpeza nas polícias e na po-
lítica fluminenses: “Mas, certamente, es-
taremos ainda muito longe do finaL

Fernanda Chaves avalia que o Rio vi-
ve hoje sob a ação de máfias infiltradas
em todo o poder público. “Os mandantes
da morte da Marielle têm braços no Tri-
bunal de Contas, na Câmara dos Verea-
dores, na Assembleia Legislativa, no
Congresso Nacional. Não é um policial
envolvido, é o chefe da Polícia Civil”, enu-
mera. A jornalista observa que, para além
da possível motivação do crime estar vin-
culada à grilagem de terras pela família
Brazão, como sugerem as investigações,
é como se o Rio tivesse matado Marielle:

 
“O Estado falhou miseravelmente o tem-
po inteiro. Falhou quando não protegeu
uma autoridade saindo do trabalho, cir-
culando pela zona central da cidade, do
lado da prefeitura e de grandes prédios.
Ela foi assassinada às 9 da noite, no meio
da rua, em um estado que estava sob in-
tervenção federal, isso é muito impor-
tante frisar”.

 
Eo Estado seguiu falhando, acres-
centa Chaves, “quando atuou
para que o crime não fosse elu-
cidado, quando duas promo-
toras alegaram interferência e
nada aconteceu, quando provas
sumiram, quando foram plantadas teste-
munhas e quando o delegado do caso foi
mudado por cinco vezes ao longo do pe-
ríodo”. Já Monica Benicio diz que o que
está em jogo vai muito além da família
Brazão e também da própria Marielle:

 
“Estamos falando de uma arquitetura
de poder que envolve a estrutura políti-
ca, legislativa e judiciária no nosso esta-
do e que se espraia em inúmeros arran-
jos territoriais. Precisamos entender que
estamos diante da ponta de um iceberg
e não nos contentarmos com respostas
pontuais para arranjos estruturais. Me
comove muito dizer isso, porque o assas-
sinato da minha esposa não é só sobre o
assassinato da minha esposa. É sobre o
Rio de Janeiro com mais justiça social
que eu quero ver nascer, que ela queria
ver nascer. E isso só começa aqui se en-
tendermos que não acaba aqui”..

CARTA CAPITAL      

 

 

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