March 24, 2024

Até a ultima gota

 

 

 MÍDIA E MERCADO TRANSFORMAM
O SÓLIDO RESULTADO FINANCEIRO
DA PETROBRAS EM UMA CRISE POLÍTICA

p o r  C A R L O S  D R U M M O N D
 
A decisão do governo Lu-
la de suspender a distri-
buição de dividendos ex-
traordinários de 2023
aos acionistas da Petro-
bras, no valor de 43 bi-
lhões de reais, anunciada
na quinta-feira 7, garante
uma folga financeira para a empresa re-
alizar os investimentos do plano de ne-
gócios, apontam economistas. Mais im-
portante: a medida é um marco para uma
eventual virada de rumo da empresa, que
tem a chance de abandonar aos poucos
a condição de caixa automático exclusi-
vo de detentores de papéis e voltar a ser
uma companhia produtiva, empenhada
na concretização do interesse público.
 
A diretoria da Petrobras chegou a
propor o pagamento de metade dos di-
videndos extraordinários e a destina-
ção do restante para investimentos. Os
representantes do governo no Conselho
de Administração votaram contra a pro-
posta, que acabou rejeitada. Foram pagos
apenas os dividendos obrigatórios, no va-
lor de 14 bilhões de reais. O presidente
da companhia, Jean Paul Prates, diver-
giu da orientação do governo e se abste-
ve na votação, decisão mal recebida no
Palácio do Planalto. Chegou-se a espe-
cular no noticiário uma possível demis-
são de Prates, que tinha na agenda uma
reunião de rotina com Lula na segunda-
-feira 11, encontro que, no fim das con-
tas, serviu para colocar os pingos nos is.
No dia seguinte ao anúncio da reten-
ção dos dividendos extraordinários, o
mundo caiu, ao menos nas páginas dos
sites de jornais e tevês. Manchetes alar-
dearam uma redução do lucro da Petro-
bras de 33% no ano passado, mas escon-
deram o fato de o resultado estar em li-
nha com a queda internacional do preço
do barril de petróleo e ter sido até melhor
do que aquele das petroleiras estran-
geiras maiores que a estatal brasileira.
 
O início da mudança parece promissor,
mas, além de redirecionar os dividendos
extraordinários e reforçar a posição do
governo, majoritário no Conselho de Ad-
ministração, com um representante do
Ministério da Fazenda indicado por Fer-
nando Haddad, será necessário enfren-
tar o bunker de representantes do mer-
cado financeiro, do bolsonarismo e do
lavajatismo no interior da empresa, um
assunto que será retomado abaixo.
 
O alarde da mídia criou a oportunida-
de perfeita para aquilo que parecia im-
possível, transformar o segundo maior
lucro da história da Petrobras, sem ven-
das de ativos estratégicos, em uma pau-
ta negativa, em uma “crise política” – o
que sempre abre uma possibilidade de
ganhos extras no mercado financeiro.
 
“Nós estamos apresentando o segundo
maior resultado da história da Petro-
bras, um lucro líquido de 124,6 bilhões
de reais. Com um detalhe, sem vender
refinaria, sem vender gasoduto e sem
vender ativos estratégicos. É o maior
lucro das empresas brasileiras abertas.
É o terceiro maior de empresas globais
de petróleo”, esclareceu Prates. Segun-
do o economista Pedro Faria, funcioná-
rio da estatal, os lucros no ano passado
da Chevron caíram 40%, da BP, 37%, da
ExxonMobil, 35%, da Shell, 30% e da
Petrobras, 33,8%. “A empresa brasileira
teve o segundo maior lucro da história
sem vender ativos. E guardando recursos
para investir. Ganha o acionista de longo
prazo: o povo brasileiro. Perde quem que-
ria desmontar a empresa”, afirma Faria.
 
Na crise inventada e insuflada nas pá-
ginas econômicas, deixou-se de lado o fa-
to de que o investimento no aumento do
refino, crucial para a segurança energé-
tica do País, possibilitou a redução da im-
portação de derivados no primeiro ano do
atual governo, um negócio de dinheiro fá-
cil para o setor privado, na casa dos 9 bi-
lhões de dólares. Desconsiderou-se ainda
o investimento no aumento da produção
de fertilizantes, crucial para a agricultura
não ficar vulnerável a conflitos externos
e pandemias, e na produção de energia re-
novável, decisiva para garantir a neoin-
dustrialização. A ênfase de jornais e tevês
recaiu sobre a perda do valor de mercado
da companhia a partir do imbróglio dos
dividendos extraordinários. Cabe lem-
brar, como anotou a presidente do PT, a
deputada federal Gleisi Hoffmann, que a
perda de 55 milhões de reais do valor de
mercado representa 25% dos mais de 200
bilhões de valorização da companhia nos
últimos 12 meses. A ação ordinária, que
na segunda-feira 11 fechou a 35,5 reais,
valia 24,19 um ano atrás. Às 11 horas da
quarta-feira 13, a cotação estava em 36,94
reais, com tendência de alta.
 
As críticas à Petrobras se in-
tensificaram na segunda-
-feira 11, quando o presi-
dente Lula reuniu os minis-
tros da Fazenda, Fernando
Haddad, de Minas e Energia,
Alexandre Silveira, e da Casa Civil, Rui
Costa, além do presidente da Petrobras,
Jean Paul Prates, e da diretoria da em-
presa para pôr fim à confusão. O saldo do
encontro é relevante. Ficou claro que, de
agora em diante, investimentos na pro-
dução de petróleo e gás e na transição
energética terão prioridade sobre a dis-
tribuição dos lucros entre os acionistas.
Talvez a proposta de Prates de distribuir
50% dos dividendos extraordinários não
tenha sido tão ruim, pondera o econo-
mista José Augusto Gaspar Ruas, profes-
sor da Facamp. “Eu acho que essa ques-
tão da destinação dos dividendos extra-
ordinários gerou uma fumaça desneces-
sária. A possibilidade real de esses divi-
dendos virarem investimentos é baixa.
 
A retenção entrará para um caixa cuja
função primordial é distribuir dividen-
dos em outro momento. Eles podem até
entrar como incorporação no capital so-
cial, mas é a situação menos provável”,
aponta. A proposta simultaneamente ge-
raria um caixa adicional ao Tesouro, que
terá de fazer um aperto na execução do
orçamento. O governo tem liberado re-
cursos fragmentados e isso terá um im-
pacto muito grande no PIB deste ano.
Distribuir parte desses dividendos ex-
traordinários não seria de todo danoso,
pois, no fundo, não se gerariam muitos
investimentos a partir desses recursos.
Além de evitar uma turbulência desne-
cessária, com a queda de 10% do valor de
mercado da empresa. Tratou-se, contu-
do, de uma sinalização política, no sen-
tido de determinar o fim da farra dos di-
videndos, sublinha Ruas. Agora há uma
convergência de todos os integrantes do
Conselho indicados pelo governo.
 
Na expectativa de que a divisão dos di-
videndos extraordinários entre investi-
mentos e acionistas se confirme, como
queria Prates e talvez venha a se concre-
tizar, inclusive segundo fontes do gover-
no, na terça-feira 12 as ações da Petro-
bras subiram 3%. No mesmo dia, Rui
Costa disse que o governo iniciou um
remanejamento no Conselho de Admi-
nistração da petroleira, também plane-
jado em outras estatais. O ministro re-
feria-se à indicação, por Silveira, de um
representante do Ministério da Fazenda
no Conselho da companhia, no cumpri-
mento de uma decisão de Lula. Haddad
deve indicar o secretário-executivo-ad-
junto da pasta, Rafael Dubeux.
 
Ponto para o diretor de Transi-
ção Ecológica da Petrobrás
Tolmasquim, que, tudo indica, não vê
os brilhantes projetos elaborados pelo
Cenpes, o centro de tecnologia de clas-
se mundial da petroleira, saírem do pa-
pel por falta de determinação política do
Conselho. Dubeux é um dos responsáveis
pela elaboração do plano de transforma-
ção ecológica do governo Lula, elaborado
pela Fazenda em conjunto com o Minis-
tério do Meio Ambiente. Servidor de car-
reira da Advocacia-Geral da União e ad-
vogado com doutorado em Relações In-
ternacionais com foco em inovação em
energia de baixo carbono, autor de livro
sobre desenvolvimento e mudança climá-
tica, Dubeux terá como uma das missões
tirar das planilhas o plano de descarboni-
zação da companhia. “Hoje, a Petrobras
   é administrada por especuladores finan-
ceiros, sem nenhum pensamento sobre o
que ocorre na empresa. Querem receber
o máximo de dividendos o mais rápido
possível. Para eles, no futuro, basta des-
ligar-se da empresa e aplicar o dinheiro
em outro local e deixar o resto para o go-
verno assumir”, diz Cláudio da Costa Oli-
veira, economista aposentado da estatal.
 
Em 2022 e 2023, prossegue o
economista, a Petrobras de-
sembolsou mais de 290 bilhões
de reais com dividendos, paga-
mento muito superior ao reali-
zado por empresas como Shell
e Exxon, que têm receitas e patrimônio
mais de duas vezes superiores àqueles da
congênere brasileira. “Isso é um absur-
do. Eles estão sugando a empresa.”
 
Essa sangria, acrescenta, prejudica
profundamente uma companhia que
ainda precisa fazer investimentos nas
descobertas que ela mesma realizou, mas
estão paralisados porque o recurso que
sobra, a geração operacional de caixa, é
direcionado, na maior parte, ao paga-
mento de dividendos, um contrassenso.
 
A geração de caixa da estatal brasilei-
ra é mais que o dobro daquele de outras
petroleiras, inclusive Shell, Esso, British
Petroleum, Chevron e Total, pois a com-
panhia cobra no mercado interno um
preço pelos combustíveis muito mais
alto do que as concorrentes mundo afo-
ra. “E ninguém fala nada. A empresa tem
cobrado muito acima do Preço de Pari-
dade de Importação, essa é a verdade. Aí
são feitos cálculos do PPI pela Agência
Nacional do Petróleo considerando, por
exemplo, o diesel, como se fosse prove-
niente do Golfo do México. Na verdade,
o que o Brasil importa hoje é quase tudo
originário da Rússia, com um preço bem
mais baixo. Então o parâmetro PPI é ou-
tro. E eles não mudam, para continuar a
enganar a população, dizendo que estão
com preços equiparados.”
 
O economista considera o pró-
prio PPI um absurdo. Lula ti-
nha prometido abrasileirar
os preços, mas ocorre o con-
trário, a Petrobras está com
preços mais altos do que to-
das as outras petroleiras acima citadas.
 
“Esse é um dos fatores que fazem com
que ela tenha uma capacidade de gera-
ção de caixa muito superior às outras.”
No lado das despesas, a empresa gas-
ta muito menos em royalties de partici-
pação especial. Basta lembrar a isenção,
inaceitável, criada em 2010, na partici-
pação especial na cessão onerosa. Um
mecanismo, aliás, que representa uma
anomalia surgida durante o processo
de capitalização da petroleira, quando a
União concedeu à companhia o direito
de exploração de 5 bilhões de barris de
petróleo no pré-sal da Bacia de Santos,
em regime de partilha, com vigência de
40 anos. Além do direito de exploração,
foi concedida isenção do pagamento de
“participação especial” na área da ces-
são onerosa. Cabe acrescentar: de acor-
do com a Lei 12351, de 2010, que insti-
tuiu o regime de partilha de produção e
a Petrobras como operadora única, o pe-
tróleo é da empresa concessionária e ela
paga ao Estado a participação governa-
mental, royalties de 5% a 10% da receita
bruta, e a participação especial, cobrada
nos grandes campos de alta rentabilida-
de, sobre a receita líquida. Uma ressalva
ao modelo é que em todos os países que
o utilizam, a participação governamen-
tal tende a ser baixa, porque está asso-
ciada geralmente a um risco maior. “Já
denunciei isso muitas vezes, e a cessão
onerosa é hoje o maior produtor brasilei-
ro. O maior campo do mundo de explo-
ração de petróleo em águas profundas, o
de Búzios, está nessa condição de cessão
onerosa isenta de pagamento de partici-
pação especial”, assinala o economista.
Com uma receita maior e um custo me-
nor, a Petrobras gera muito mais caixa do
que as outras produtoras do ramo. “Es
sas coisas têm de ser corrigidas para se
chegar a uma situação mais adequada.”
 
Dois integrantes do Conselho confir-
maram a CartaCapital que a companhia
hoje olha muito mais para o mercado do
que para as determinações de Lula. No
comando dessa visão estaria o diretor-fi-
nanceiro, Sérgio Caetano, muito próximo
de Prates e com perfil de gestor de fundo
de investimento. Nos corredores da sede,
no Rio de Janeiro, repete-se uma histó-
ria negada por Caetano, de que teria di-
to que não vai “desagradar em momento
nenhum o mercado”. A diretoria finan-
ceira hoje tem um peso enorme, mas não
é só isso. O mandato-tampão de Michel
Temer e o governo anterior produziram
muitas amarras para a atuação da empre-
sa a partir da Lava Jato, desde a Lei das
Estatais aos regramentos internos, que
engessaram os investimentos. Quando se
tolhem as inversões, por definição a com-
panhia vai gerar muito caixa, pois o pré-
-sal é altamente rentável e o nível de pro-
dução continuará a aumentar até 2030.
Como os custos são baixos, haverá uma
geração de caixa enorme, a par desse ciclo.
 
O problema é que a Petrobras tem uma
dificuldade gigantesca para realizar in-
vestimentos. As inversões cresceram no
plano estratégico, para 101 bilhões, mas
em termos reais passaram de 3% a 4% – a
outra parte foi destinada à compra de ati-
vos existentes. Um problema adicional:
a empresa perdeu capacidade de aumen-
tar o investimento em outras áreas além
do pré-sal. Culpa, em grande medida, da
mencionada herança maldita.
 
Outro núcleo de poder é a Diretoria de
Engenharia, comandada por Carlos Jo-
sé do Nascimento Travassos, “comple-
tamente vinculado à gestão anterior”,
segundo os conselheiros entrevistados,
que o responsabilizam por “segurar 
onteúdo nacional” e ter ligações com
o bolsonarismo e o lavajatismo. O nível
de conteúdo local está baixo e a direto-
ria não faz nenhum movimento para au-
mentar, deixando de recorrer às emprei-
teiras e estaleiros nacionais com expe-
riência comprovada na construção de
plataformas e navios-plataforma FPSO.
Um dos conselheiros estima em 70% a
parcela dos funcionários com poder de
decisão nas áreas não financeiras que
são bolsonaristas, lavajatistas ou ambos.
 
Na segunda-feira 11, após o en-
contro com Lula, o ministro
Silveira ressaltou que “todos
os investidores, quando com-
pram a ação da empresa, sa-
bem que o governo é o con-
trolador, tem a maioria do Conselho de
Administração, e que a companhia tra-
balha para torná-la cada vez mais atra-
tiva ao investidor”. Haddad, agora com
influência indireta, explicou em coleti-
va à imprensa que a decisão foi no sen-
tido de que a distribuição dos lucros ex-
traordinários será feita à medida que fi-
car claro para o Conselho que ela não vai
comprometer o plano de investimentos
da companhia. “A Petrobras estava de-
sinvestindo, não só vendendo patrimô-
nio abaixo do valor de mercado, mas dis-
tribuindo como dividendo um patrimô-
nio que era do povo brasileiro. Agora is-
so se reverteu e passou-se a ter um plano
de investimentos para a geração de em-
pregos.” Silveira destacou que o encon-
tro com Lula foi um “momento muito
oportuno” para convidar a Fazenda a in-
tegrar o Conselho da Petrobras. “Precisa
ter um representante até para trazer a
ótica da Fazenda pública e da economia
nacional para dentro da empresa.”
 
Em entrevista ao SBT, Lula reafirmou
que o governo tem de baixar os preços
da energia e dos alimentos e, em relação
à crise dos dividendos extraordinários,
sublinhou que a Petrobras não tem de
pensar somente nos acionistas, mas
sobretudo nos acionistas.  

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