March 6, 2024

AGONIA SEM FIM

 


UM ANO APÓS A REVELAÇÃO DA TRAGÉDIA
HUMANITÁRIA QUE ESCANDALIZOU O MUNDO,
O DRAMA DO POVO YANOMÂMI PERSISTE

 p o r  F A B Í O L A  M E N D O N Ç A
1
No início de 2023, ima-
gens de crianças e adultos
Yanomâmi em estado de
desnutrição severa, esque-
léticos, vítimas da fome e
da atuação criminosa do
garimpo ilegal, chocaram
o mundo e levaram o go-
verno federal a decretar situação de emer-
gência em saúde pública. Passado um ano
do decreto, a realidade na região parece
ter mudado pouco. A insegurança alimen-
tar e doenças evitáveis, como verminoses,
malária e pneumonia, continuam presen-
tes na vida dos indígenas, levando muitos
deles à morte. A violência dos garimpeiros
que teimam em permanecer no local tam-
bém persiste. No ano passado, foram re-
gistradas 363 mortes na Terra Indígena,
20 a mais que as contabilizadas em 2022,
último ano do governo Bolsonaro. O Mi-
nistério da Saúde diz não ser possível es-
tabelecer a comparação, devido ao apagão
de dados na gestão anterior. Reconhece,
porém, a gravidade da tragédia humanitá-
ria e admite até que a quantidade de mor-
tes pode ser até maior, devido ao elevado
índice de subnotificações de óbitos na-
quele território.

 
Segundo Júnior Hekurari Yanomâmi,
presidente do Conselho Distrital de
Saúde Indígena e representante dos
Yanomâmi na Secretaria de Saúde Indí-
gena (Sesai) do Ministério da Saúde, mui-
tas crianças morrem nas aldeias sem o
governo tomar conhecimento. “Somente
quando há acompanhamento da equipe
de saúde ou quando a morte se dá na uni-
dade básica ou no hospital, ela é contabi-
lizada. Os óbitos em comunidades afas-
tadas, sem a presença do governo, não
entram na conta. É feita uma ficha de-
claratória para investigar depois. Então,
esse número será atualizado daqui um
ou dois anos. O total de mortes do povo
Yanomâmi é bem maior que o divulgado.”
Weibe Tapeba, secretário de Saúde
Indígena do Ministério da Saúde, tam-
bém admite a possibilidade de a mortan-
dade ser ainda maior, sobretudo duran-
te a gestão Bolsonaro. “Não temos como
comparar 2023 com 2022 porque tivemos
um apagão de assistência à saúde indígena.
Além disso, possivelmente estamos conta-
bilizando mortes que podem ser de 2022
ou 2021, dado que será confirmado a par-
tir de um inquérito sanitário que estamos
realizando no território”, explica. “Para o
Ministério da Saúde, 2023, quando come-

çamos a atuar no território, é o ano-base.

 
Não são somente os dados de mortalida-
des que estão sendo relatados, mas todas
as informações envolvendo malária, do-
enças diarreicas e respiratórias, enfermi-
dades que estão aumentando exatamente
porque não estamos conseguindo restabe-
lecer a nossa assistência. Vamos fazer um
pente-fino no próprio território.”

 
Malária, desnutrição e pneu-
monia figuram entre as
causas de morte mais co-
muns, embora seja fre-
quente a ocorrência de
mais de uma enfermida-
de para acelerar o óbito. “Quando uma
criança morre de malária, ela não mor-
re só de malária, ela morre de malária e
desnutrição ao mesmo tempo. Eu mesmo
presenciei de 15 a 18 mortes em 30 dias
que fiquei dentro do território. A maioria
é de crianças com menos de 1 ano e meio.

 
São doenças e mortes que poderiam ter si-
do evitadas, tem cura para isso. O Estado
precisa reconhecer o problema”, dispara
Júnior Hekurari. A falta de assistência à
saúde se soma a dificuldade que os indí-
genas têm para produzir nas aldeias, de-
vido à insegurança e à ação dos garimpei-
ros, o que potencializa a insegurança ali-
mentar dos Yanomâmi. “Nossas comuni-
dades são muito fortes. Mesmo doentes,
muitos indígenas trabalharam duro nas
roças no ano passado. Plantaram maca-
xeira, banana, milho, batata... Mas isso
demora para dar retorno, às vezes dez ou
12 meses”, diz o líder Yanomâmi.

 
Paralelamente ao decreto de emergên-
cia em saúde pública, o governo Lula tam-
bém instalou, em janeiro do ano passado,
o Comitê de Coordenação Nacional para
Enfrentamento à Desassistência Sanitária
das Populações em Território Yanomâmi,
envolvendo os ministérios dos Povos Indí-
genas, da Saúde, da Justiça, do Meio Am-
biente, da Defesa, do Desenvolvimento e
Assistência Social, além do Exército, da
Força de Segurança Nacional, da Funai e
do Ibama. Mesmo com todo esse aparato,
a crise humanitária persiste. Para o indi-
genista e ex-presidente da Funai Sydney
Possuelo, falta vontade política do Estado
brasileiro para enfrentar o problema, re-
ferindo-se tanto ao governo federal quan-
to ao Congresso Nacional e ao Judiciário.

 
“O Estado brasileiro não resolve porque
não quer. Parece haver uma fragilidade,
uma dependência do Congresso para to-
mar as decisões. O Executivo tomou pro-
vidências mais no âmbito político, mas as
ações diretas para retirar os garimpeiros
foram tímidas. O Exército tem homens lá
dentro sem o menor preparo para defender
as regiões de fronteira e proteger o territó-
rio indígena. Onde é que está a Marinha,
que poderia fechar os rios, que estão sen-
do invadidos e poluídos? Por que o espaço
aéreo não está fechado e, se está, por que os
helicópteros dos garimpeiros continuam
sobrevoando a região? Há uma ação feita
para inglês ver”, critica Possuelo. “Para re-
solver o problema, não precisa inventar a
roda. Já está escrito na Constituição Fede-
ral o que tem de ser feito”, completa.

 
Possuelo lembra que, quando foi presi-
dente da Funai, no início dos anos 1990,
conseguiu não só a demarcação da TI
Yanomâmi como expulsou mais de 60 mil
garimpeiros. “É claro que a situação era di-
ferente, hoje eles estão mais organizados.
Mas, quando o Estado quer, quando o Exe-
cutivo, o Legislativo e o Judiciário cum-
prem as suas responsabilidades, eles co-
locam seus órgãos para atuar e resolvem.
Não me parece ser o caso agora”, alfineta,
criticando a tese do marco temporal apro-
vada no Congresso, apontada como “o tiro
de misericórdia sobre os povos indígenas”.

 
No início de 2023, havia na TI
Yanomâmi cerca de 20 mil garimpeiros.
Hoje, segundo Júnior Hekurari, tem cerca
de 5 mil. “A força-tarefa até quebra os equi-
pamentos, mas eles têm muita tecnologia,
planejamento, e recuperam em questão de
horas. O Exército fez o mapeamento para
bloqueio de espaço aéreo, mas não conti
nuou. Para resolver, o governo brasileiro 

 tem de funcionar”, destaca, acrescen-
tando que os garimpeiros transitam livre-
mente na fronteira com a Venezuela e que
a insegurança no território compromete o
atendimento médico dos indígenas. “Como
a segurança falhou, a saúde recuou.”

 
Segundo o Ministério dos Povos In-
dígenas, houve uma redução de 85%
das áreas para mineração ilegal na TI
Yanomâmi entre fevereiro e dezembro
de 2023, se comparado ao mesmo perío-
do do ano anterior, e uma queda de 50%
no desmatamento da Amazônia, além d

estruição de 340 equipamentos utiliza-
dos pelo garimpo ilegal. O governo fede-
ral também conseguiu reabrir seis dos
sete polos de saúde na TI Yanomâmi.

 
Em nota à reportagem, o Ministério da
Justiça faz um balanço da atuação na TI
em 2023, destacando a proteção de vá-
rias comunidades Yanomâmi, fiscaliza-
ção das pistas de pouso e decolagem clan-
destinas em apoio à Polícia Federal e à
Agência Nacional de Aviação Civil, e nas
instalações dos polos de saúde da Sesai.

 
Segundo a nota, a Força Nacional perma-
nece atenta e já aumentou o efetivo em
32% entre janeiro e fevereiro deste ano.
Júnior Hekurari até reconhece o empe-
nho do governo Lula no primeiro semes-
tre do ano passado, mas afirma que, a par-
tir de agosto, a força-tarefa montada para
resolver a crise trabalhou de forma desar-
ticulada, facilitando o retorno dos invaso-
res. “O governo não tinha uma estratégia
para combater o garimpo. No início, quan-
do o presidente Lula decretou a emergên-
cia, fizeram muito barulho para afugentar
os garimpeiros. A partir de julho e agosto,
eles perceberam a fragilidade e começa-
ram a entrar de novo. As equipes de saúde
não conseguiam mais ir às comunidades.
Tem muito jogo político. O Ibama quer
trabalhar de um jeito, o Exército trabalha
de outra forma, eles não se reúnem para
resolver o problema. Estamos reféns em
nosso próprio território, porque os inva-
sores estão impedindo as equipes de saú-
de de atender as nossas crianças.”

 
O Ministério dos Povos Indígenas cita a
complexidade da crise como uma das difi-
culdades no enfrentamento do problema e
diz que, no primeiro ano de atuação, prio-
rizou ações emergenciais. A partir de ago-
ra, quer implementar ações permanentes,
dando o exemplo da instalação do Casa do
Governo, prevista para ser inaugurada na
quinta-feira 29, com foco no atendimento
às demandas indígenas de Roraima. A uni-
dade vai funcionar na capital, Boa Vista, e
será uma espécie de base de interagências
dentro do território para fiscalização per-
manente, com o apoio das Forças Arma-
das, Polícia Federal, Ibama, Força Nacio-
nal de Segurança, Sesai e Funai.

As equipes da Funai e da Saúde
precisam de segurança para
realizar seu trabalho. Com
a presença de garimpeiros
fortemente armados, o tra-
balho fica totalmente com-
prometido. É necessário o controle total
do espaço aéreo e fluvial através das for-
ças de segurança, para concretizar o co-
mando do presidente Lula. E a Casa de
Governo será uma transição para que es-
sa atuação articulada seja mais efetiva”,
explica a ministra dos Povos Indígenas,
Sonia Guajajara. Tapeba acrescenta que a

 Casa do Governo vai ajudar a distensionar
problemas existentes na coordenação da
própria operação de emergência.

 
Outra medida anunciada pelo governo
Lula para minimizar a crise sanitária na
TI Yanomâmi é a construção do primei-
ro hospital indígena do País, a ser insta-
lado em Boa Vista, e a construção e refor-
ma de 22 unidades de saúde básica dentro
da TI Yanomâmi, além de um centro de re-
ferência para serviços de atenção especia-
lizada, mais especificamente no polo-ba-
se de Surucucu, cujo objetivo é levar ser-
viços de média e alta complexidade para
dentro do território. Segundo a Sesai, o go-
verno também vai contratar novos profis-
sionais de saúde para atender a população
Yanomâmi. “Quando chegamos, tínhamos
apenas oito profissionais do Programa
Mais Médicos, e hoje são 28. Vamos melho-
rar o salário, oferecer gratificações atra-
vés de auxílio para alimentação, e criar,
especialmente, um incentivo para quem
atuar naquela região”, explica Tapeba.

O governo federal anunciou ainda a li-
beração de um crédito extraordinário de
1,2 bilhão de reais, a ser utilizado em ações
imediatas para atender à demanda dos in-
dígenas da região. No início de fevereiro, o
Ministério da Saúde encaminhou ao STF,
atendendo a uma determinação do presi-
dente da Corte, o ministro Luís Roberto
Barroso, um plano de ação para ser apli-
cado não só na TI Yanomâmi, mas tam-
bém nos territórios Karipuna, Uru-Eu-
-Wau-Wau, Kayapó, Arariboia, Mundu-
rucu e Trincheira Bacajá, onde a situação
é bastante crítica, devido à ação de garim-
peiros, madeireiros e ruralistas. A medi-
da consta na Arguição de Descumprimen-
to de Preceito Fundamental 709, de 2020,
cujo objetivo é evitar que a omissão do Po-
der Público coloque em risco a saúde e a
subsistência da população indígena.

 
“No ano passado, em maio, fomos em
Genebra e aprovamos a primeira resolu-
ção de saúde indígena em âmbito mundial.
Lá, já havíamos colocado a necessidade de
aperfeiçoamento da nossa atuação e vamos
entregar à ministra Nísia Trindade e ao
presidente Lula uma minuta da nova po-
lítica nacional de saúde indígena”, explica
Tapeba. “No território Yanomâmi, vamos
criar uma força-tarefa, em parceria com
outras secretarias, para que a gente consi-
ga dar respostas mais urgentes, tendo em
vista que a Sesai atua com um modelo de
atenção básica limitado. Assim, com esse
conjunto de forças, a gente reforça o cui-
dado integral da população indígena den-
tro do próprio território. Isso vai envolver a
contratação de mais médicos e outros pro-
fissionais que atuam na saúde indígena, a
implantação de sistemas de abastecimento
de água e tecnologia para ampliar o servi-
ço de telessaúde e ter condições de oferecer
internet e energia. Se 2023 foi um ano de
ações emergenciais, 2024 vai ser caracte-
rizado como o início de ações estruturan-
tes e permanentes no próprio território.”

 
“A gente não quer mais chorar pela mor-
te de crianças, pela falta de profissionais
de saúde na nossa comunidade. Morrer
por diarreia, desnutrição e malária? Es-
sas moléstias são evitáveis”, diz Júnior
Hekurari. “O que fizemos com essas pes-
soas que estão nos matando e nos contami-
nando com metais pesados? O povo Yano-
mâmi está com alto índice de mercúrio no
organismo, mais de 800%. Até quando?” 

CARTA CAPITAL      


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