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February 27, 2024
Freddie Mercury cantando Michael Jackson?
Entenda a tecnologia responsável pelos encontros mais inusitados da música
..
Criações
que vão de Elis cantando Ratos do Porão a Frank Sinatra soltando a voz
em canção do Metallica fazem sucesso na internet e renovam debate sobre
uso da tecnologia e proteção de direitos autorais e de imagem
Até alguns anos atrás, a possibilidade era restrita à imaginação e à
perícia de seus muitos imitadores: o apresentador Silvio Santos cantando
(e bem!) o velho hit do rock “Sultans of swing”, do grupo inglês Dire
Straits, ou então o “Down under”, dos australianos Men at Work. Hoje, em
iniciativas como o perfil de redes sociais 1001 AI Covers, isso não só é
uma realidade, como um sucesso, em que uma dupla de vídeos atinge mais
de um milhão de visualizações, cada.
Com os aplicativos de inteligência artificial empregados na música,
alguns deles de uso gratuito, qualquer um com sensibilidade e algum
tempo disponível é capaz de inundar a internet com canções (e vídeos
feitos sob medida) que, com intenções apaixonadas de fã, ou satíricas,
põem célebres intérpretes (ou personalidades da mídia) para cantar
músicas que, por diversas razões, eles jamais teriam cantado. A nova
mania, no entanto, reacende dúvidas sobre o uso legal de recursos
tecnológicos no que se refere a direitos autorais e de imagem.
Do barulho
Os Beatles interpretando “God only knows” (que Paul McCartney considera
a canção mais bela de todos os tempos), dos rivais Beach Boys? E que
tal algo bem mais improvável, como Frank Sinatra (1915-1998) em uma
versão jazz de “Enter Sandman” (1991), pedrada do Metallica? Ou então um
troço realmente impossível, como Elvis Presley (1935-1977) soltando o
vozeirão, desenvolto, em “Highway to hell” (1979), do AC/DC? Tudo isso
já foi feito por produtores mais ou menos amadores e jogado na internet
nos últimos meses, para deleite de apreciadores da música pop e das
possibilidades infinitas da tecnologia digital.
Um publicitário do interior de São Paulo que pede para ser identificado
apenas como Lucas é a pessoa por trás do 1001 AI Covers, perfil do
Instagram que até ontem reunia 50.400 seguidores. Em seu cardápio, estão
vídeos com diversas músicas cantadas por Silvio Santos e outras por
apresentadores de TV como Fausto Silva e Celso Portiolli. Depois de um
início no YouTube, em um canal derrubado por questões de direitos
autorais, Lucas migrou para o TikTok. Repostado no X (antigo Twitter),
um vídeo de “Sultans of swing” “furou a bolha” e o fez “correr atrás do
prejuízo”, criando uma conta no X e no Instagram, no fim de dezembro.
— Uso um software que você pode treinar para fazer as vozes, o que
precisa é mandar no mínimo uma hora de voz da pessoa, e, quanto mais
limpa essa voz, melhor o resultado — conta ele, que costuma se dedicar a
essa tarefa no fim da noite, com aplicativos cujos nomes mantém em
segredo. — O processo para fazer uma música geralmente demora umas oito
horas. Eu mando a AI treinar e vou dormir, vou fazer minhas coisas, e
geralmente no dia seguinte, quando acordo, está pronto. Se a voz ficou
boa, vamos embora. Mas já teve caso em que não ficou legal, e aí vou
ajustando. Com a música pronta, vou pensando nas ideias para o clipe.
E um dos clipes que chamaram mais a atenção na página foi o de Silvio
Santos cantando “Fast car” (1988), de Tracy Chapman, publicado logo após
a cantora ter tido essa música redescoberta com uma apresentação no
Grammy ao lado do cantor country Luke Combs.
— Lembrei que tinha um vídeo do Silvio Santos dirigindo um carrinho de
golfe! E aí tudo começou — conta Lucas. — Fico muito feliz quando
consigo passar para a tela o que tá na minha cabeça, e com “Fast car” eu
consegui isso. Tem um outro processo criativo que é o inverso, quando
eu parto do vídeo, como o que fiz com o Silvio cantando “Let a boy cry”,
da Gala (Rizzato, cantora italiana de dance music). Uma vez, no
programa “Em nome do amor”, ele perguntou o que era techno, o DJ soltou
essa música e ele começa a dançar. O Silvio é o carro-chefe, qualquer
vídeo, qualquer música com ele vai muito bem.
O nonagenário apresentador de TV, de fato, brilha nas criações da
internet (o perfil de Vector Lua, no YouTube, faz bastante sucesso com
uma boa interpretação IA de Silvio Santos para “Amiga da minha mulher”,
de Seu Jorge), assim como Manoel Gomes (do hit viral “Caneta azul”),
personagens do seriado “Chaves” e Freddie Mercury (1946-1991), cantor do
grupo Queen, que pode ser encontrado traçando de “Take on me” (A-Ha) e
“Billie Jean”(Michael Jackson) a “Careless whispers” (George Michael).
‘Macetando’ e death metal
Produtor musical de bandas de metal e hardcore, o paulistano Nicolas
Gomes abriu em 8 de dezembro no Instagram o perfil Fake Music BR, que
usa a inteligência artificial não para dar novas vozes às músicas, mas
para levá-las a novos estilos musicais. Ele e seu parceiro Augusto,
cantor de uma banda de hardcore, já pegaram o axé “Macetando”, de Ivete
Sangalo e Ludmilla, e transformaram num aterrorizante death metal:
“Macetando o Apocalipse” (com referência irônica ao diálogo de Ivete e
Baby do Brasil no último carnaval em Salvador). Sua música mais
conhecida é “Bob Fish” — o punk do Dead Fish virado em reggae de Bob
Marley.
— A gente não usa muito esse lance de clonagem de voz, o lance
realmente é pegar uma música de alguém e levá-la para outro estilo —
conta Nicolas, que usa a versão gratuita do aplicativo Suno, em que você
põe a letra e pede para que ela seja aplicada em uma música de
determinado estilo. — O vocal é, digamos, aleatório. O que a gente pode
direcionar é se vai ser feminino ou masculino. Mas às vezes a gente
escuta e vê que está parecendo a voz da Pitty, ou da Elis Regina (alvo
de polêmica ano passado em um vídeo criado por IA em que cantava com a
filha Maria Rita, e que no Fake Music surge lá cantando “Morrer”, dos
Ratos de Porão, numa improvável versão soul music). A gente ainda não
achou o pulo do gato, aquele que viraliza, a gente ainda está testando
formatos. Sou produtor, queria que isso fosse uma porta para conhecer
meu trabalho.
Um novo futuro possível
Lucas, do 1001 AI Covers, conta ter tido um retorno positivo de João
Silva, filho de Fausto Silva, que compartilhou vídeos com a versão IA do
pai em seus stories. Mas ainda não de Silvio Santos (“rolou uma mega
mobilização para os vídeos chegarem até a família Abravanel, desconfio
que tenham chegado, mas não sei se eles gostaram ou não”, diz). Entre o
público do seu perfil, a reações variam entre os elogios e comentários
do tipo “aí os computadores se rebelam, destroem a Humanidade e a gente
se pergunta ‘por quê?’ ou “vai usando a IA, quando menos perceberem
estaremos escravos dela!”. Entre os profissionais da música, há opiniões
menos apocalípticas.
“O que pode parecer agora uma piada, uma curiosidade, daqui a pouco
pode ser um produto. Você pode estar no seu streaming favorito, dar play
e falar: ‘Como seria essa música na voz de outro artista?’ Isso pode
mudar a forma como a gente consome música e proporcionar uma forma de
consumir canções que você não consumiria se não fosse com aquele
artista”, argumenta Felipe Vassão, produtor do rapper Emicida, em vídeo
em seu perfil no Instagram. “É até uma nova forma de você lançar música,
porque tem muita gente que compõe mas que não é bom intérprete. E se
você pudesse escolher com que roupa a música vai se apresentar para
você? É quase como trocar a skin do personagem de um videogame.”
Legislação
Mas, claro, ele mesmo admite que existem problemas legais a se resolver
até que cheguemos a essa versão cor-de-rosa do futuro. O que, ao que
tudo indica, será bem complicado. Apesar de aplicativos de IA, como o
que foi lançado pelo YouTube em novembro, permitirem o uso de vozes
famosas (como as de Demi Lovato, Sia, John Legend, Charlie Puth e Charli
XCX) para produzir faixas, mesmo ali existe um limite de 30 segundos
para cada resultado. Criadora e coordenadora do curso de direitos
autorais Música Copyright e Tecnologia, Guta Braga joga luz sobre a
questão:
— A questão do uso de IA na criação de conteúdo está sendo discutida
globalmente. A maioria dos países entende que não há proteção legal para
esse tipo de conteúdo pois se baseia em conteúdo preexistente, o que
necessita de autorização prévia para uso, se considerarmos, por exemplo,
a lei dos direitos autorais (Lei 9.610/98) — explica ela. — Isso
lembrando que muitos usos por IA não dizem respeito apenas aos direitos
autorais e conexos. Muitas vezes o uso é da voz e imagem, o que se
refere aos direitos da personalidade, que também devem ser previamente
autorizados.
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