Desde o início da década de 2020, a humanidade recebe sinalizações de
que o planeta está piorando de forma acelerada e angustiante. A
degradação é mais aguda em dois sentidos: a crise ambiental
e o aumento das desigualdades e da pobreza. Poderíamos incluir, ainda,
um terceiro fator, a retomada das guerras extremadas, como as que estão
em curso na Ucrânia e em Gaza. No território palestino, por sinal, o conflito ganha tons genocidas, à medida que Israel vem matando crianças, mulheres e idosos indiscriminadamente. Trata-se, sobretudo, de uma guerra contra a infância.
Fixemo-nos, porém, aos dois primeiros. A crise ambiental não é mais
uma coisa do futuro. Nós a vemos e a sentimos diariamente. Catástrofes
ocorrem em toda parte, do Polo Norte ao Polo Sul, em todos os
continentes, da Ásia às Américas. Tornados devastadores, enchentes
diluvianas, mares em fúria, incêndios apocalípticos, desaparecimento de
espécies, escassez de água, desertificação, safras perdidas, mortes e
refugiados ambientais são algumas das terríveis consequências do que
fazemos contra a natureza.
A percepção aguçada pelos sentidos parece indicar o prenúncio do fim dos tempos, gerando perturbações psicoló- gicas em número crescente de pessoas. Quando lemos os relatórios da ONU, pre- parados por cientistas, somos informa- dos de que estamos perto de um ponto de não retorno. Ao perder a corrida para de- ter o aquecimento global, a humanidade perde para si mesma. Mesmo cientes de que o modo como produzimos, consumi- mos e vivemos é desastroso, não nos es- forçamos para escapar da tragédia.
Nesta semana, a divulgação do rela- tório da Oxfam sobre as desigualdades trouxe dados assustadores e inaceitáveis. Em três anos, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram suas riquezas, al- ta de 114% desde 2020. No mesmo perí- odo, 5 bilhões de pessoas, 60% da huma- nidade, ficaram mais pobres. Fenômeno semelhante verifica-se por aqui: a fortu- na dos cinco maiores magnatas do Bra- sil cresceu 51%, enquanto 129 milhões de brasileiros empobreceram ainda mais.
Os contrastesmostrados pela Oxfam são cruéis. Os mais pobres levam uma vi- da de restrições e vicissitudes. As mulhe- res e as crianças são as que mais sofrem. Aliás, dentre os 5 bilhões de habitantes que vivem na pobreza, a maioria é consti- tuída de mulheres. Discriminações e vio- lências são comuns no cotidiano dessas pessoas. Os preços aumentam mais que os salários, os direitos diminuem e os ga- nhos das empresas sobre a mão de obra não param de crescer. Nos últimos três anos, cresceu também a diferença entre o Norte e o Sul globais. Quase 70% da rique- za privada está concentrada no Hemisfé- rio Norte, onde vive 21% da humanidade.
Há uma indisfarçável ligação entre o aumento das desigualdades e a crise am- biental. A Oxfam mostra que os 10% mais ricos são responsáveis por 50% das emis- sões de gases de efeito estufa, e o 1% mais rico por 16% da poluição. Ou seja, os en- dinheirados são os principais responsá- veis pelo colapso climático e pelo agra- vamento da pobreza. Já os 50% mais po- bres respondem por apenas 8% das emis- sões de carbono.
O relatório da Oxfam sugere uma re- lação direta entre a concentração da ri- queza nas mãos dos super-ricos e o au- mento do poder empresarial. De um po- der empresarial que estabelece uma no- va era de um poder monopolista concen- trado, de domínio global. Nesse jogo, as grandes companhias aumentam as su- as recompensas, enquanto o poder de compra dos salários cai. É um jogo de ganha/perde. Os três primeiros anos desta década marcam um declínio his- tórico dos salários, segundo a OIT.
O segundo fator da concentração do poder empresarial diz respeito aos sis- temas tributários: os super-ricos e suas empresas evitam pagar impostos, en- quanto o peso maior da carga tributá- ria recai sobre os mais pobres. Em ter- ceiro lugar, com a privatização de ser- viços públicos essenciais, as tarifas su- focam os consumidores e vêm causan- do uma crescente restrição de acesso. Lucros extraordinários das privatiza- das são bancados pela população. Com- panhias que muitas vezes recebem aju- da dos governos por meio de subsídios, isenções e outras benesses.
Por fim, as grandes empresas agravam o colapso climático por conta de sua sa- nha ilimitada por lucro e poder. Indu- zem, inclusive, suas parceiras e forne- cedoras a agir de forma predatória para atender às suas demandas e seus objeti- vos. A conclusão a que se pode chegar é só uma: o mundo caminhará para o aumen- to de conflitos internos e de guerras en- tre os países. A ambição ilimitada e des- trutiva dos poderosos se chocará com as necessidades dos mais pobres e com a ur- gência de salvar o planeta.•
If war is
supposed to be the continuation of politics by other means, Israel’s
assault on Gaza seems to be the continuation by other means of the
absence of politics. It does not seem that Israel understands what its
endgame is. Without a clear sense of an ending, there can be no answer
to the most crucial moral and strategic question: When is enough enough?
Even in the crudely mathematical logic of vengeance, the blood price
for Hamas’s appalling atrocities of October 7 has long since been paid.
The body count—if that is to be the measure of retribution—has mounted
far beyond the level required for an equality of suffering. Yet it
appears to have no visible ceiling. What factor must Jewish deaths be
multiplied by? When, as W.B. Yeats asked in a different conflict, may it
suffice?
“Enough” is the word that Yitzhak Rabin, then Israel’s prime
minister, stressed in his remarkable speech of September 1993 at the
signing of the Oslo Accords:
We who have fought against you, the Palestinians, we say
to you today in a loud and a clear voice: Enough of blood and tears.
Enough… We are today giving peace a chance and saying to you and saying
again to you: Enough.
Enough is a both a political goal and an ethical limit. Without the
first, it is hard to set the second. To know how far you can go, you
have to know where you want to get to. Benjamin Netanyahu’s government
seems to know neither.
There has been much fine reporting on the dreadful intelligence
failures that allowed the massacres of October 7 to happen. But they in
turn arise from something much deeper: a cognitive failure. There has
been a literal false sense of security. Rabin, in his Nobel Peace Prize
acceptance speech in 1994, spelled out in the clearest terms the
impossibility of security without peace: “There is only one radical
means of sanctifying human lives. Not armored plating, or tanks, or
planes, or concrete fortifications. The one radical solution is peace”.
Peacemaking is a political process. Wars may shape the circumstances
in which it is done, but they do not make it happen. Rabin, one of
Israel’s most accomplished warriors, understood that truth. With his
assassination and Netanyahu’s rise, it was deliberately unlearned.
Politics—the negotiation of a just settlement with the Palestinians—was
abandoned and replaced by the illusion that security could indeed be
created and maintained by planes, tanks, fortifications, and
surveillance technology. That illusion has died a terrible death, but it
retains a zombie existence. It persists because the first condition of a
return to politics would be the admission that Netanyahu’s whole
approach has been a disaster, not just for the Palestinians, but for
Israel.
Israel has already tried two radically different strategies in Gaza.
The first was a familiar military and political orthodoxy: conquest and
colonization. Gaza, having belonged to the Ottoman empire and then to
the British mandate in Palestine, was governed by Egypt after 1948,
though neither its traditional residents nor the large refugee
population were granted Egyptian citizenship. After its capture by
Israel in 1956, Gaza was quickly returned to Egyptian control, but
following its reconquest in the Six-Day War of 1967, the territory was
ruled by an Israeli military governor for almost forty years. (Civil
control of Gaza City was transferred to the Palestinian Authority in
1994.) In the late 1970s the right-wing government of Menachem Begin
imagined that this rule could be made permanent and stable if enough
Jews were settled in the territory. Eventually, 8,500 Jewish people did
settle in Gaza—a number large enough to create a sense of existential
threat for Palestinians but too small to be able to control the strip.
Israel needed three thousand soldiers to protect these 8,500 Jews. In
the second intifada it lost 230 of those soldiers.
Ariel Sharon’s decision in 2005 to end the military occupation and
forcibly withdraw the settlements was not a wild caprice. It was a
recognition of reality: the post-1967 attempt at colonization could not
be sustained. By occupying Gaza, Israel had gained nothing and lost
soldiers, money, and international goodwill. It’s worth recalling that
Netanyahu supported the withdrawal for sound policy reasons before he
opposed it for cynical political ones.
It was not for nothing that in 2014, when Hamas was firing rockets
into Israel, Netanyahu did not support demands from his own foreign
minister Avigdor Liberman for a military reconquest and reoccupation of
Gaza. Netanyahu, when running for election, made aggressive noises about
Hamas, claiming in 2008 that “We will finish the job. We will topple
the terror regime of Hamas”. But this was utterly deceitful. Netanyahu
never wanted to topple the Hamas regime. He wanted to retain the threat
that he might do it as a rhetorical trope, a furious sound that
signified nothing. It is this empty vessel that Netanyahu is now seeking
to fill with meaning and purpose—and with blood.
*
For Israel’s real alternative to military occupation and colonization
was Hamas itself. The religious fundamentalists—committed to extreme
antisemitism and the extinction of Israel—could be used to undermine the
Palestine Liberation Organization and, after 2005, to keep the
Palestinian movement divided between Gaza and the West Bank. The
strangeness of this approach lay not only in the illusion that a
jihadist movement could ever be, in practical effect, an ally of Israel,
but in the weird form of war
it created. Since Hamas would continue to attack Israel, Israel would
continue to retaliate. The retaliatory attacks would be bloody and often
horrific in their toll of civilian casualties. But they would be
calibrated so as to ensure that Hamas stayed in power in Gaza.
A review of Israel’s Gaza wars between 2009 and 2014, commissioned by
the US military from the RAND Corporation and published in 2017,
pointed out that this was warfare specifically designed not to defeat the enemy:
Israel never strived for a decisive victory in Gaza.
While it could militarily defeat Hamas, Israel could not overthrow Hamas
without risking the possibility that a more radical organization would
govern Gaza. Nor did Israel want to be responsible for governing Gaza in
a postconflict power vacuum.
Implicit in this policy of repeatedly attacking a regime with
overwhelming firepower while not wanting victory over it was the
impossibility of an endgame. There would be no peace but also no
decisive war. Even if thousands of Palestinians and hundreds of Israelis
died in these sporadic eruptions of extreme violence, their purpose was
to maintain this brutality at what RAND calls a “manageable” level.
The idea of controlled carnage ended in the unrestrained slaughter of
October 7. Netanyahu was forced to abandon overnight the scheme that
had been the touchstone of his whole approach to the Palestinian
question: keeping Hamas strong enough to deny authority to the
Palestinian Authority, but weak enough to pose no more than a sporadic
and limited threat to Israeli citizens.
The failure of Israel’s Plan A was acknowledged with its unilateral
withdrawal from Gaza in 2005. The even more catastrophic collapse of
Plan B has been conceded, as it had to be, after Hamas’s attacks
destroyed the illusion of literal and political containment. But the
only response of which Netanyahu seems capable is a completely
incoherent mix of Plan A and Plan B. There will be, for an unknown
period, a military occupation. But it will end in some kind of reversion
to the situation that followed the 2005 withdrawal: power without
responsibility. Israel will exert complete power over Gaza. But it will
take no responsibility for Gaza. This is not a plan. It is a fusion of
two failures.
Military occupation did not work when Gaza had a smaller Palestinian
population, when its cities were not reduced to wreckage, and when there
was one fewer generation raised on hopelessness and hatred. No one
really seems to think it can work now. Likewise, the belief that Gaza
could be controlled from the outside by an Israeli government that had
no accountability to its people and no sense of obligation for their
welfare, and that could insulate itself from the consequent suffering,
has proved to be a calamity. The notion that the broken shards of these
two collapsed strategies can be glued together to create what Israel’s
defense minister Yoav Gallant calls “a new security regime” has no
credibility.
Bombs and tanks do not answer questions. Who is to govern Gaza if not
Hamas or Israel itself? Does Israel really think that somebody
else—either an international consortium or a Palestinian puppet
regime—will sail into a blood-soaked hellscape of rubble and dust,
inhabited by traumatized survivors, and take responsibility for
rebuilding, policing, and governing it? How is Israel going to make the
kind of peace with its immediate neighbors without which the security of
its citizens cannot be rebuilt?
While these political questions go unanswered, so do the moral ones.
How many deaths are too many? How are obligations to international law
and common decency going to be fulfilled in dense streets crowded with
children, women, the elderly, and the sick? What is the “self” in
Israel’s “self-defense”? Does it see its true image in this
bloodletting? Can it imagine a life beyond revenge?
O PALCO DO CONFLITO NO ORIENTE MÉDIO DESLOCA-SE PARA O MAR VERMELHO
p o rP A T R I C KW I N T O U R
No último verão do He- misfério Norte, enquan- to Washington tentava discretamente conven- cer a Arábia Saudita a realizar o grande acordo de normalização das suas relações com Israel, os di- plomatas em Riad estavam muito mais concentrados em garantir um acordo de paz diferente nas suas fronteiras meri- dionais com uma das insurgências mais bem-sucedidas dos tempos modernos, aquela liderada pelos rebeldes houthis do Iêmen, também conhecidos como Ansar Allah, ou “Apoiadores de Deus”.
Com um cessar-fogo informal no Iêmen, e após meses de conversas priva- das mediadas principalmente em Omã, em 14 de setembro uma delegaçãohouthi voou para Riad, onde se encontrou com o príncipe Khalid bin Salman, minis- tro da Defesa e irmão do príncipe her- deiro. Ainda havia grandes diferenças a resolver, mas, após décadas de várias formas de luta, parecia que a paz chega- ria ao país, e em grande parte nos ter- mos ditados por um grupo que não exis- tia realmente como força política no Iê- men até o início dos anos 2000. A Ará- bia Saudita iria finalmente reduzir suas perdas na desastrosa ofensiva que lan- çou em 2015 para repelir os houthis. Vin- te e três dias depois da reunião em Riad, o Hamas rompeu a fronteira com Isra- el, massacrou israelenses e desencadeou uma série de acontecimentos que agora deixaram o Iêmen exposto a um ataque de dois dias por submarinos e navios de guerra dos Estados Unidos e da Grã-Bre- tanha, no Mar Vermelho.
Além de aumentar a tensão numa região assolada pela violência, afastaram ain- da mais o país da ilusória paz interna. Num país cheio de nuances, dois fatores ampliaram a complexidade de uma re- gião devastada por conflitos: o apoio dos houthis à causa palestina e a forma como a geografia do Iêmen tende a moldar a di- nâmica política. Como observa a escrito- ra Iona Craig, o Iêmen é um exemplo por excelência de geopolítica, o lugar onde a geografia e a política se unem.
O próprio Iêmen pode ser rela- tivamente pobre, mas os fru- tos, muitas vezes desprotegi- dos, da globalização ociden- tal passam tentadoramente pelas suas costas, dia e noi- te. Quase 15% dos produtos exportados para a Europa, Oriente Médio e Norte da África são transportados da Ásia e do Golfo Pérsico por via marítima. Quase 21,5% do petróleo refinado e mais de 13% do petróleo bruto passam por essa rota.
As importações e exportações asiáticas representam cerca de um quarto do co- mércio externo total de Israel, e transi- tam principalmente pelo Mar Vermelho. Há muito tempo Israel teme que a pequena largura do estreito de Bab al-Mandab represente uma vulnerabili- dade de segurança. Durante décadas, pro- curou alianças com países como a atual Eritreia para se defender, primeiro dos esforços liderados pelo Egito e depois pe- los iranianos, para fechar as vias navegá- veis ao tráfego israelense. Na verdade, um motivo para Israel assinar os “Acordos de Abraão” com os Emirados Árabes Unidos em 2020 foi a própria rede de segurança marítima dos EAU, que abrange Djibuti, Eritreia, Somalilândia e a Ilha Perim e o arquipélago de Socotra, no Iêmen.
Os houthis, por sua vez, têm experi- mentado tornar-se uma potência na-
val. Em outubro de 2016, começaram a usar como base o porto estratégico de Hodeidah, recentemente capturado, na costa oeste do Iêmen. Eles dispararam duas vezes contra o destróier USS Ma- son como forma de contra-ataque por- que os Estados Unidos forneceram apoio aéreo aos sauditas. Em janeiro de 2017, os houthis pararam de lançar mísseis balís- ticos e drones sobre a fronteira terrestre em direção a Riad e, em vez disso, envia- ram três barcos suicidas. Também ten- taram minar as rotas marítimas. “Se os agressores continuarem a pressionar Ho- deidah, e se a solução política atingir um muro, algumas opções estratégicas serão adotadas como um ponto sem retorno, in- cluindo o bloqueio da navegação interna- cional no Mar Vermelho”, disse o líder do conselho político houthi, Saleh al Samad. “Os navios passam por nossas águas en- quanto nossa população passa fome.”
Israel, por seu lado, percebeu que o Irã, com sua marinha sofisticada, come- çava a treinar os houthis na utiliza- ção de barcos, drones e mísseis para perturbar o tráfego ligado a Israel, in- clusive fornecendo equipamento ca- paz de detectar a origem de um navio. À medida que os houthis obtinham mais vitórias, o patrocínio de Teerã crescia.
Era evidente aos olhos israelenses que, em 2019, Abdul-Malik al-Houthi, o líder houthi, dirigia cada vez mais sua retórica contra Israel e negava as alegações do pri- meiro-ministro Benjamin Netanyahu de que o Irã tinha começado a fornecer mís- seis de precisão ao Iêmen. “Nosso povo não hesitará em declarar ajihadcontra o inimigo israelense e desferir os golpes mais severos contra os alvos sensíveis do inimigo, se ele se envolver em atos estú- pidos contra o nosso povo. Nossa posição hostil contra Israel é por princípios huma- nos, morais e religiosos”, afirmou à época. Maysaa Shuja al-Deen, do Centro de Estudos Estratégicos de Sanaa, avalia:
“As ameaças houthis à navegação israe- lense não são uma desculpa ou uma ten- tativa de desviar atenção de suas próprias falhas. Estão profundamente enraizadas em sua ideologia. Eles falam em amaldi- çoar os judeus e em morte à América. Seu fundador, Hussein al-Houthi, começou suas palestras por volta da época do 11 de Setembro e da invasão do Iraque pe- los Estados Unidos, e elas tratavam mui- to de um choque de civilizações. É entre muçulmanos e cristãos, um conflito reli- gioso, não é sobre o nacionalismo árabe”.
Assim que a crise de Gaza explodiu, os houthis dispararam inicialmente mísseis ineficazes contra a cidade portuária israe- lense de Eilat, insistindo que só desisti- riam quando Israel permitisse a entra- da de ajuda humanitária em Gaza. Mas, ao tirar partido do território que tinham capturado desde 2014, suas táticas evoluí- ram rapidamente para uma campanha de ataques de surpresa aos navios, que espa- lharam o caos pelas cadeias de abasteci- mento mundiais. Desde ao menos 12 de novembro, de acordo com o Centro de Sanaa, “as forças houthis têm treinado recrutas para equipes de assalto anfíbio, com exercícios que incluem simulações de lançamento de mísseis visando navios e de ataques aéreos. Eles também ampliaram gradualmente seus alvos, de navios com bandeira israelense para navios que comercializam com Israel”.
Al-Deen argumenta que a resposta interna positiva apenas encorajará os houthis: “Os iemenitas são pró-pales- tinos, e esse sentimento tem crescido a níveis sem precedentes nos últimos três meses”. Onde outros grupos hesitaram, os houthis mostraram-se ousados, ao mesmo tempo que produziam vídeos de propaganda, como um helicóptero enfei- tado com a bandeira palestina pousa no convés do navio de carga Galaxy Lea- der, que navega no Mar Vermelho.
Os houthis ficaram particularmen- te orgulhosos quando um entrevista- dor da BBC perguntou a Mohammed Ali al-Houthi, integrante do Conselho Supremo Houthi, por que razão consi- deravam adequado interferir na Pales- tina, “a tantos quilômetros de distância”. Ele respondeu: “Quanto a Biden, ele é vi- zinho de Netanyahu? Vivem no mesmo apartamento, e o presidente francês vive no mesmo andar e o primeiro-ministro britânico no mesmo edifício?”
Abdulghani al-Iryani, também do Centro de Sanaa, afirma: “O campo anti-houthi no Iêmen está pasmo. As poucas declarações feitas contra os houthis desde o início de sua operação de apoio à Palestina foram severamente criticadas pelo público iemenita. O sen- timento é expresso numa frase comum: ‘Meu irmão e eu estamos contra o nosso primo, e meu primo e eu estamos contra o estranho’. Cidadãos de todos os matizes exigiram que os porta-vozes dos grupos anti-houthi ‘calassem a boca’”. Na verda- de, alguns líderes houthis contataram seus adversários políticos de longa data no partido Islah, para ver se farão causa comum contra Israel.
Al-Deen insiste que os houthis não serão dissuadidos pelos ataques ocidentais, mas os verão como um presente, até mesmo como um sargento de recrutamento. “Eles passaram anos na luta contra os sauditas, absorvendo perdas. Não são um exército clássico com]
ases militares estáticas. As milícias mu- dam as regras da guerra e, com o apoio do Irã, têm agora capacidade e experiên- cia para fabricar drones no país. Os Esta- dos Unidos e o Reino Unido deram avisos muito extensos de que isto estava pres- tes a acontecer, por isso não houve ele- mento-surpresa.” Os últimos dias, afir- ma, “farão os houthis acreditarem que já não são atores locais, mas atores re- gionais legitimados por direito próprio a confrontar diretamente a América”.
Os houthis podem até disparar mísseis contra o Bahrein, único país árabe que apoiou os ataques aéreos em defesa da li- berdade de navegação. Farea al-Muslimi, do programa pa- ra o Oriente Médio da Chatham House, alerta: “Os houthis são muito mais experientes, preparados e bem equipados do que muitos comentaristas ocidentais imaginam. Sua audácia e a dis- posição para escalar a atividade diante de um desafio são sempre subestimadas”. O grupo também sabe que a aliança naval militar que apoia os Estados Unidos é tê- nue. O Egito, apesar de obter receitas pro- venientes do Canal de Suez, recusou-se a apoiar os ataques aéreos norte-america- nos. Nenhum país árabe, exceto possivel- mente os Emirados Árabes Unidos, tem a coragem de contestar a visão houthi dos corajosos iemenitas que enfrentam o po- derio dos EUA. A Arábia Saudita teme que sua passagem de saída do Iêmen esteja em vias de ser rasgada.
O ataque com mísseis pode ser vis- to pelo Ocidente como a única opção, mas não é gratuito. Os drones houthis são baratos. Em contraste, os franceses gastam perto de 1 milhão de euros em cada míssil Aster 15 usado pelos france- ses e pelos britânicos para afastar os dro- nes houthis. Esta guerra tem o potencial de ser longa e dispendiosa, talvez trava- da em diferentes níveis de intensidade.
Desde que Lula assumiu a Presidência
da República e apresentou sua pauta econômica, a reforma tributária
tornou-se uma questão de vida ou morte – para Jair Bolsonaro. O assunto
nunca despertou seu interesse pessoal, mas ele avaliava que sofreria um
revés humilhante, caso o governo petista fosse capaz de construir um
consenso mínimo no Congresso Nacional e ainda aprovar a reforma já no
primeiro ano de gestão. Logo ele que vendeu ao mercado a promessa de que
faria tudo – a reforma da Previdência, a reforma tributária, a reforma
administrativa – e encerrou seu mandato aprovando apenas a
previdenciária, e a duras penas. Bolsonaro mandou às favas os escrúpulos
fiscalistas de seu ministro Paulo Guedes e furou o teto de gastos cinco
vezes, mas, ainda assim, uma vitória do PT num tema tão complexo como
tributos seria aviltante.
Tanto mais que o ex-presidente se empenhou no assunto durante seu
governo. Como a reforma tributária mexia nos ganhos de grande parte da
elite nacional, Bolsonaro chegava a despachar sobre o tema diretamente
com seu primeiro secretário da Receita, Marcos Cintra, que se debruçara
sobre os tributos desde a campanha eleitoral. Criou-se até uma distorção
dentro do ministério de Paulo Guedes: havia dois grupos discutindo
textos diferentes – um de Cintra e outro de Rodrigo Maia, então
presidente da Câmara dos Deputados. Maia não tinha simpatia por Cintra e
preferia a proposta de reforma desenhada pelo economista Bernard Appy,
que hoje integra a gestão de Fernando Haddad.
O sentimento de humilhação de Bol- sonaro, segundo o relato de alguns de seus interlocutores, começou a tomar corpo no início de novembro, quando uma primei- ra versão da reforma passou no Senado – e o texto-base era aquele de autoria de Ber- nard Appy. Depois de um ano quase intei- ro recluso em razão dos temores penais, Bolsonaro decidiu encerrar a quarentena.
Em outubro, já estava articulando contra a reforma discretamente, mas no mês se- guinte ficou mais desinibido. Em 8 de novembro, o jornalO Estado de S. Paulo publicou uma mensagem em que Bolso- naro cobrava o apoio do senador Nelson Trad Filho (psd-ms): “Trad, você amanhã será decisivo para derrotarmos a reforma tributária.” Trad votou a favor.
Até então, as articulações da direita contra Lula vinham sendo tocadas à meia- luz nos bastidores por Arthur Lira (pp-al), o presidente da Câmara. Lira é a melhor encarnação do que o cientista político Marcos Nobre chamou de “Centrão sem medo”, no artigoPega, mata e come (piauí_204, setembro 2023) – o “Centrão sem medo” é aquele bloco que, em nome de seus interesses, está disposto a aderir a qualquer lado, inclusive o da extrema di- reita, mas anda cansado de exercer o papel de coadjuvante. Agora e cada vez mais, com a fome de um carcará, seu objetivo é o poder – sem intermediários.
A reforma tributária em sua versão definitiva foi aprovada em segundo turno na Câmara por 365 votos a 118, no dia 15 de dezembro. “Um fato histórico”, comemorou Lula. E Bolsonaro engoliu o sapo. Mas sua volta ao jogo público, que começou a tomar forma ainda antes das articulações contra a reforma, animou o presidente do Partido Liberal, Valdemar Costa Neto. Até o canal do YouTube de Bolsonaro estava sendo melancolica- mente pautado por Lula. Sempre que o presidente inaugurava uma obra, a equi- pe corria para colocar um vídeo antigo dizendo que tudo havia começado no governo anterior. Agora, retomou a pos- tagem de registros de suas andanças e ataques ao governo, como no caso da in- dicação de Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal.
Na versão sem medo, Bolsonaro vol- tou a organizar recepções na sua chega- da em aeroportos do interior, apoiar candidatos ao pleito de 2024 (como Ri- cardo Salles, que quer ser prefeito de São Paulo) e até voou de helicóptero sobre cidades inundadas em Santa Catarina na companhia do governador aliado. Tam- bém deu para aparecer de surpresa nos lugares – em eventos de Michelle e até em encontros oficiais, como aconteceu na reunião do embaixador de Israel, Daniel Zonshine, com parlamentares da direita, para discutir o conflito entre Israel e o Hamas. Ali, era o puro suco de Bolsona- ro, tentando faturar sobre uma tragédia. Fabio Wajngarten, assessor informal de Bolsonaro com alguma influência en- tre os membros da comunidade judaica, achou que seria uma boa ideia infiltrar o ex-presidente na reunião na Câmara.
O embaixador Zonshine queria apresen- tar vídeos dos ataques do Hamas aos deputados, no intuito de pressionar indi- retamente o governo Lula a marcar uma posição mais crítica aos ataques. Wajngar- ten articulou o encontro com o pl, e Bolso- naro apareceu na última hora. A reunião deve inviabilizar a permanência do em- baixador no Brasil, sob a suspeita de ul- trapassar os limites da diplomacia para fazer política, mas reforçou a posição pró-Israel de Bolsonaro, gerando simpa- tia até em parte da comunidade judaica que havia votado em Lula.
Os movimentos de Bolsonaro deixa- ram o Palácio do Planalto em aler- ta. Em parte por isso, o governo se empenhou em promover um ato tão ba- rulhento, com a presença de tantos mi- nistros, para receber os brasileiros que voltavam da Faixa de Gaza, resgatados pela equipe do Itamaraty. Era uma for- ma de evitar que Bolsonaro tentasse ca- pitalizar a chegada do grupo ao país. No final da disputa, ele ganhou a bata- lha dentro de parte da comunidade ju- daica, mas não levou a de Gaza. Logo, voltou suas atenções para a Argentina, que, naquela altura, se preparava para a eleição presidencial.
O ex-presidente se envolveu pessoal- mente na campanha do direitista Javier Milei. Filmou a conversa em que parabe- nizou Milei pela vitória e, depois, compa- receu à posse do novo presidente (à qual Lula não foi) e fez outra aparição de sur- presa – desta vez, tentou se infiltrar na foto oficial dos presidentes presentes à posse de Milei. Foi barrado. O triunfo de Milei re- força, na avaliação de Bolsonaro, que no mundo de hoje não há mais lugar para a “esquerda”. Ele está convicto de que Do- nald Trump ganhará a eleição deste ano e que, junto com Milei, ajudará de algum modo a favorecer a extrema direita no Bra- sil, ainda que ele próprio esteja fora do páreo, já que inelegível até 2030.
A convicção do ex-presidente, ainda segundo aqueles que o cercam, tem fun- cionado como uma evitação mental do que o futuro lhe reserva. Bolsonaro acre- dita que, de fato, acabará sendo preso por sua atuação golpista, mas acha que precisa mostrar dentes e músculos. Já foi alertado nos bastidores de que a delação de Mauro Cid, seu ajudante de ordens no governo, não deverá ter uma prova substancial que o coloque como artífice do 8 de janeiro, mas, mesmo assim, acha que será condenado porque seu caso está sendo avaliado por um “tribunal políti- co”. Incensar a militância neste momen- to, portanto, é providencial.
Na Justiça, afinal, as perspectivas efe- tivamente não lhe são animadoras. As primeiras condenações dos bolsonaristas que participaram da intentona golpista têm se aproximado dos vinte anos de ca- deia. A expectativa é que essa dosimetria seja ainda mais severa para o caso dos artífices. O stf, neste momento, está ca- librando o calendário: não quer uma condenação tão rápida que transforme Bolsonaro em vítima, nem tão lenta que lhe dê tempo para fortalecer os múscu- los e arreganhar os dentes.