November 11, 2023

O monstro da inteligencia artificial

 



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Na quinta-feira (9), quando soube por seu editor que o livro “Frankenstein”, clássico de Mary Shelley publicado pelo Clube de Literatura Clássica, era semifinalista no Prêmio Jabuti na categoria Ilustração, o designer Vicente Pessôa não fingiu modéstia. Perguntou: “Mas só este livro?” Ele também é autor do projeto gráfico de uma edição ilustrada de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, inscrita no concurso literário, o mais tradicional do país, mas que não passou pelo crivo dos jurados. As ilustrações de ambos os livros haviam sido criadas por uma ferramenta de inteligência artificial chamada Midjourney. Por isso, em meio a polêmica e discussões sobre limites de uso da tecnologia e novas fronteiras para a criação, “Frankenstein” acabou desclassificado.

Em nota divulgada nesta sexta-feira (10), a Câmara Brasileira do Livro (CBL), organizadora do Jabuti, afirma que, após avaliação, concluiu que obras geradas por IA não são elegíveis para o prêmio. “A utilização de ferramentas de inteligência artificial tem sido objeto de discussão em todo o mundo, em razão dos princípios de defesa dos direitos autorais”, completa o comunicado, jogando lenha na já incandescente discussão sobre o estatuto da arte produzida por IA.

No alvo

Ao GLOBO, o curador do Jabuti, Hubert Alquéres, disse que a CBL desclassificou “Frankenstein” após ouvir o departamento jurídico e os jurados da categoria. O primeiro explicou que o uso da IA não é regulamentado: não há remuneração dos autores do conteúdo que alimenta as bases de dados, por exemplo. O júri afirmou que teria avaliado “Frankenstein” com outros critérios se soubesse que as imagens haviam sido geradas por IA. Hubert assegurou que a questão da IA será contemplada na próxima edição do prêmio. Ainda não se sabe quais serão as mudanças, mas é certo que, no ato da inscrição, será preciso explicitar se houve uso de IA na confecção da obra. Na ficha catalográfica de “Frankenstein”, consta que as ilustrações e o projeto gráfico são de autoria de “Vicente Pessôa e Midjourney”. Ele concorria com ilustradores renomados como Daniel Kondo, Odilon Moraes e a gravadora Fayga Ostrower (1920-2001).

A notícia da indicação ao prêmio de uma obra criada com IA e depois a sua desclassificação geraram discussões acaloradas nas redes sociais, com pessoas defendendo uns, criticando outros, discordando de todos. Escritores, ilustradores e profissionais do livro, por exemplo, divulgaram uma carta aberta à CBL exigindo um “posicionamento assertivo” da entidade “contra o uso de ferramentas que exploraram nossa classe”. “A IA generativa é uma ferramenta que utiliza, sem autorização, do trabalho autoral de artistas sem que haja remuneração justa”, diz a carta.

Ao GLOBO, Vicente Pessôa disse que o regulamento do Jabuti não vetava explicitamente obras criadas com o auxílio de IA e que é a “qualidade do trabalho” que deveria estar em pauta. Ele acusou a CBL de tê-lo desclassificado por “medo da pressão pública”.

— A maioria das críticas não se apoiava em questões estéticas. Mas eu já esperava ser desclassificado. Quando surgiu a fotografia, os pintores disseram que era uma arte menor, que iam ficar sem trabalho. Os atrasados sempre reclamam — afirma o designer. — Acho um desperdício meus colegas não usarem IA. Ou será que usam e não assumem?

Na rede social X (ex-Twitter), o cartunista André Dahmer, autor da tirinha “Malvados” e jurado do Jabuti, afirmou que não sabia que as imagens de “Frankenstein” haviam sido criadas por IA. Ele descreveu as ilustrações como “primorosas”, mas acrescentou que “veria e julgaria o livro com outros olhos”. Também disse que “não houve má fé no ato da inscrição”, uma vez que “no livro constava a coautoria de um robô”.

Favorável à desclassificação, Mauricio Negro, ilustrador de títulos como “Caderno de rimas do João” (de Lázaro Ramos, que concorre na categoria Livro Brasileiro Publicado no Exterior”), afirma que a discussão não é se a IA é capaz de produzir arte ou não. A arte não está na técnica, avalia ele, mas “no olhar, na sensibilidade”. No entanto, Negro acrescenta que esta tecnologia impõe “uma questão ética, cuja responsabilidade é coletiva”.

— Não sou contra o uso de qualquer tecnologia para a exploração artística, mas a IA pode resultar na precarização das relações de trabalho entre ilustradores e contratantes. A IA produz imagens por meio de uma varredura na rede e, com filtros e efeitos visuais, produz uma assemblage mais ou menos coerente a partir de trabalhos sem origem identificável. Um grande pastiche que tende à massificação— explica ele. — Veja a questão dos samples na música: ficou sacramentado que até um certo número de acordes não há plágio. Mas isso só foi possível porque as fontes são reconhecíveis.

Professor da UFBA e artista multimídia, Francisco Barretto acredita que episódios como este favoreçam o debate sobre a presença da IA no cotidiano, trazendo mais informações para o público em geral sobre como a tecnologia funciona. Ele destaca que o uso de prompts (“instruções” que o usuário dá a uma IA para atingir o resultado desejado) é muito mais complexo do que se imagina.

— Há uma questão que precisa ser debatida, no direito autoral, no treinamento da IA, que acessa bancos de dados com imagens nem sempre autorizadas para este fim. Mas o algoritmo não faz uma “colagem” desses arquivos para criar um novo. A IA vai gerar uma imagem completamente nova, pixel a pixel, a partir das sentenças determinadas pelo designer — detalha Barretto. — Existe uma competência chamada engenharia de prompt, que é escolher as palavras certas, na ordem certa, usar os modificadores corretos, para construir a sentença que vai produzir a imagem pretendida. Não é só escrever “Frankenstein” que a capa sai pronta.

No ano passado, Vicente Pessôa e o gerente editorial do Clube da Literatura Clássica, José Lima, fizeram uma live da editora no YouTube intitulada “Ilustrando Frankenstein com inteligência artificial”. Ele conta que gerou mais de 1.200 imagens para o livro, mas apenas 50 permaneceram na edição final. Em nota enviada ao GLOBO, o Clube da Literatura Clássica chamou a decisão da CBL de “injusta” e disse que a opção de ilustrar “Frankenstein” com imagens geradas por IA foi “conceitual”, já que o “clássico de Mary Shelley narra o desenvolvimento de uma ‘inteligência artificial’: a monstruosa criatura do Dr. Frankenstein”.

Pesquisador da interseção entre IA e arte computacional, Francisco Barreto destaca o momento de transformação atual, não só tecnológica, mas também de ordem jurídica, ética e filosófica.

— Até a definição de autoria será repensada, uma vez que pode ser dividida entre um humano e a IA — observa Barretto, para quem a sugestão de criar uma categoria específica para a inteligência artificial não seria o ideal. — Não faz sentido, porque em algum momento essas ferramentas vão fazer ainda mais parte do processo criativo dos profissionais da área.

Artista visual e professora da USP, Giselle Beiguelman concorda que o rechaço a imagens criadas por IA “parte do pressuposto de que a tecnologia faz tudo sozinha”, como se não houvesse uma mente humana operando a máquina.

— É uma desqualificação e uma incompreensão do fazer artístico, que é sempre mediado. Não é produzido do nada, mas é uma confluência entre pensamento, conceito e trabalho físico. Desqualificar uma ilustração feita por IA me parece tão absurdo quanto rejeitar uma imagem feita em um programa qualquer da Adobe. — diz ela, que também defende que obras produzidas sem e com o auxílio de IA possam concorrer juntas a premiações. — Recusar a IA é como recusar a fotografia ou achar que um texto manuscrito é superior a um texto escrito no computador.

Professora do Programa Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia da PUC-SP, e autora do livro “Desmistificando a inteligência artificial” (2022) , Dora Kaufman se disse surpresa com o desconhecimento do júri de um prêmio literário importante de ferramentas como o Midjourney.

— Era explícito que o designer utilizou uma ferramenta de IA, ele fez uma live de uma hora e meia falando do processo de ilustração do livro. A IA é uma realidade, ela já está mediando a nossa sociabilidade e comunicação há anos, não dá para o mercado editorial simplesmente dar as costas para isso — comenta Dora.

Em meio à polêmica, Pessôa diz que a exclusão do Jabuti é “a melhor coisa que podia acontecer”:

— Para mim, é um prêmio. O novo é sempre recebido com ódio e crítica. Se inventarem um troféu para ilustrações feitas por IA, o que eu acho que seria muito esquisito, poderia se chamar Prêmio Frankenstein, em homenagem ao nosso projeto.

No lugar de Pessôa, concorrerá ao Jabuti a designer a ilustradora Bruna Lubambo, autora das imagens de “O centauro e a sereia”, da editora Elo.

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