November 6, 2023

Debelar a crise da segurança demanda combater a banda podre

 

 
DANIEL CERQUEIRA
 
O País assistiu atôni-
to a mais um capí-
tulo da crise de se-
gurança pública
no Rio de Janeiro.
Desta vez, um gru-
po miliciano, em
resposta à morte de um dos seus asseclas,
perpetrou o terror na Zona Oeste da cida-
de, incendiando 35 ônibus. Há algo novo
no episódio ou trata-se apenas de mais um
capítulo de um enredo conhecido? Há so-
lução para o Rio de Janeiro?
 
Ainda que as narcomilícias, no centro
da crise atual, constituam um fenômeno
relativamente novo, já que apenas de al-
guns anos para cá milicianos e trafican-
tes de drogas estão juntos e misturados,
a aliança da banda podre da polícia com a
banda podre da política é uma novela an-
tiga, que se adapta aos tempos e é a fon-
te dos principais problemas de seguran-
ça pública no estado. Desde fins dos anos
1960 tivemos como exemplo os chama-
dos esquadrões da morte, grupos de ex-
termínio, polícia mineira e, mais recen-
temente, a partir dos anos 2000, as milí-
cias. Nem os atos terroristas são novida-
de, como nos lembra a Chacina da Baixa-
da, quando policiais militares cometeram
aleatoriamente 29 assassinatos nas ruas
de Nova Iguaçu e Queimados, em 2005.
 
A milícia é baseada em um modelo de
negócio sustentado por um tripé: 1. Do-
mínio territorial armado. 2. Uso da vio-
lência para exploração econômica do ter-
ritório. 3. Monopólio político local. Ex-
plora-se desde transporte público irregu-
lar, gatonet, grilagem de terras, constru-
ção irregular de imóveis, até qualquer ati-
vidade legal exercida por empresários lo-
cais, obrigados a pagar taxas mensais para
os criminosos. Os eleitores são coagidos a
votar apenas nos nomes indicados pelos
milicianos. Campanhas eleitorais de ou-
tros candidatos são proibidas no territó-
rio. A relação entre a milícia, a banda po-
dre da polícia e a banda podre da políti-
ca garante a sustentabilidade do negócio.
 
Não há, portanto, como pensar seria-
mente em segurança pública efetiva no
estado do Rio de Janeiro sem enfrentar
essa coalizão espúria e sem levar a cabo
uma reforma radical das polícias, com o
expurgo dos maus policiais. Devido ao ní-
vel de degradação das instituições flumi-
nenses, não é, porém, crível pensar que al-
guma solução duradoura possa ser ofere-
cida pelos poderes públicos locais.
 
Um exemplo que ilustra o ponto ocor-
reu uma semana antes dos incêndios ao
ônibus, que ficou conhecido como “o no-
vo cangaço da Assembleia Legislativa do
estado do Rio de Janeiro”, em que a clas-
se política temerosa com a indicação de
um novo delegado superintendente pa-
ra a Polícia Federal, que poderia mudar
o curso de investigações locais e avançar
para a solução do caso do assassinato da
vereadora Marielle Franco, exigiu do go-
vernador a mudança do secretário da Po-
lícia Civil (sim leitor, pasme!, no Rio de
Janeiro não há secretário de Segurança,
mas secretário de Polícia Civil e Secre-
tário de Polícia Militar, cada um no seu
quadrado). Segundo consta nos jornais,
a indicação do novo secretário, Marcus
Amin, foi feita pelo deputado estadual
Márcio Canella, que abriga em seu gabi-
nete a esposa de um cidadão condenado
por homicídios e por chefiar uma milícia
que opera, curiosamente, no mesmo ter-
ritório eleitoral do deputado.
 
Com as ações milicianas da última se-
mana, como um pato manco, sem qual-
quer condição de esboçar alguma reação
minimamente qualificada, o governador
Cláudio Castro apelou para o proselitismo
das bravatas vazias: “O crime organizado
que não ouse desafiar o poder do Estado”.
 
Já as autoridades do Ministério da Jus-
tiça acertadamente disseram que iriam
enviar uma força-tarefa, com a participa-
ção da Polícia Federal e do Conselho de
Controle de Atividades Financeiras (Co-
af), com foco em ações de inteligência e
asfixia financeira dos grupos crimino-
sos. O conjunto das declarações revelou,
no entanto, que no afã de mostrar traba-
lho, tais autoridades continuam a tatear
no escuro sem saber para qual direção se-
guir. No repertório falou-se em uma for-
ça-tarefa das organizações federais com
a Polícia Civil fluminense, a fim de com-
bater as milícias e as facções. Falou-se em
enviar, além da Força Nacional, o Exérci-
to, a Marinha e a Aeronáutica, que iriam
monitorar as fronteiras, portos e aero-
portos, com o uso, inclusive, de drones.
 
Não se sabe como essas forças contribui-
rão para enfrentar as milícias. O espetá-
culo midiático com a solução milagrosa
está armado. Na sequência, alguns crimi-
nosos serão presos, as milícias voltarão a
trabalhar no sapatinho e a crise será es-
quecida até a próxima rodada.
 
Ainda que o desafio seja enorme, exis-
te solução para a segurança pública do
Rio. Para tanto, o foco tem de ser total na
maior organização criminosa, formada
por milicianos e a banda podre das polí-
cias e da política. A refundação das polí-
cias fluminenses, com o expurgo dos maus
policiais e a imposição de novos mecanis-
mos de controle com a participação da so-
ciedade civil é um primeiro passo urgente.
 
Para tanto, o governo fede-
ral poderia patrocinar um
modelo de concertação,
chamando para uma câ-
mara de alto nível não ape-
nas o Ministério Público Federal, mas o
Supremo Tribunal Federal, de modo a
garantir a celeridade e assertividade das
ações. A curto prazo, uma força-tarefa
formada pelo MPF, PF, Coaf e outras or-
ganizações federais se ocuparia de iden-
tificar e neutralizar os principais vérti-
ces das redes criminais que envolvem as
milícias, além de estrangular o braço fi-
nanceiro e econômico dessas organiza-
ções. A longo prazo, um trabalho conjun-
to com o governo do estado e prefeituras
estruturaria um plano para a ocupação
do espaço público pelo Estado, onde as
milícias crescem economicamente.
 
Toda crise é também sempre uma opor-
tunidade de mudanças. Ou será que per-
maneceremos nas soluções mágicas “in-
falíveis” que nos legaram o cenário des-
crito nos versos de Fausto Fawcett, Rio 40
graus (...) purgatório da beleza e do caos”?
 
*Pesquisador do Ipea, conselheiro
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
e coordenador do Atlas da Violência.
CARTA CAPITAL 
   
 

 

 

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