October 21, 2023

Neofascismo pop




Seguindo a cartilha de Steve Bannon, o ultradireitista
Javier Milei soube explorar os holofotes e desponta como favorito

GILBERTO MARINGONI

Argentina vive uma guer-
ra  de pesquisas às véspe-
ras do primeiro turno da
eleição presidencial, a con-
trastar com a calmaria
aparente nas ruas de Buenos Aires. Não
há carros de som ou panfletagens, a não
ser espetaculosos atos de encerramento
das principais campanhas na disputa mais
dramática observada desde a queda da di-
tadura militar, há exatos 40 anos. Existem
indicadores para todas as torcidas.
A RDT Consultores aponta a diantei-
ra de Javier Milei, líder da extrema-direi-
ta abrigado na coalizão Libertad Avanza,
com 36% das intenções de voto. Logo
atrás vem Patricia Bullrich, de Juntos
por el Cambio, ex-ministra de segurança
de Mauricio Macri, com 25% e em tercei-
ro, somando 22%, chega o atual ministro
da Economia Sergio Massa, do Unión por
la Patria, aliança peronista. Já a consulto-
ria Atlas Intel apresenta outros números:
Massa tem 30,6%, Milei 25,2% e Bullrich
25%. A DC Consultores, por sua vez, per-
fila Milei chegando a 35,6%, Bullrich com
28,9% e Massa estacionado em 26,2%.
Mesmo metodologias distintas não
conseguem explicar a disparidade das
porcentagens. Todas convergem, porém,
em dois pontos. O primeiro é que nenhum
dos candidatos atingirá 45%, ou 10 pontos,
adiante do segundo, o que liquidaria a fatu
qualquer situação, Milei estará na disputa
final, marcada para 19 de novembro.

O candidato extremista, economista e
deputado eleito pela província de Buenos
Aires em 2021, irrompeu na cena nacio-
nal a partir das Paso (eleições Primárias,
Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), re-
alizadas em 13 de agosto. A partir daí to-
mou gosto por declarações feitas sob me-
dida para chocar o eleitorado, colocar ad-
versários na defensiva e lacrar nas redes
sociais e na mídia. À dolarização da eco-
nomia, à demolição do Banco Central e à
extinção da maioria dos ministérios, entre
outras bizarrices, somaram-se petardos
ao papa Francisco: “Imbecil que defende
a justiça social”, “representante maligno”
e “apoiador de ditaduras sanguinárias”.

A figura de Milei, sempre cuidadosa-
mente despenteada, como o ex-primeiro-
-ministro britânico Boris Johnson, segue
a cartilha de Steve Bannon, o ultradirei-
tista ex-assessor de Donald Trump. Como
observou Jeffrey Alexander, professor de
Sociologia da Cultura na Universidade de
Yale, não existe espaço para cortesia ou
boas maneiras na cartilha de Bannon, que
se especializou em dizer o indizível sobre
minorias e populações vulneráveis, sem-
pre em busca de holofotes. A lição é segui-
da por gente como Bolsonaro e Milei que,
mais que lideranças, exercem o papel de
ídolos pop do neofascismo.

O candidato argentino gaba-se de vi-
ver sozinho e de conversar em noites so-
litárias com seu falecido mastim Conan, o
bárbaro dos gibis e dos filmes da Marvel. O
figurino de candidato de multidões de de-
sesperados pela pobreza, pelo desemprego
e pela falta de perspectivas estava pronto.

Diferentemente de Bolsonaro, que sem-
pre exaltou a própria ignorância, Milei
foi professor de Economia e exibe uma
carreira de ponta no mercado financeiro.
Se a persona extravagante de Milei e
suas propostas simples para problemas
complexos, como no velho bordão, ser-
viram para alavancar a popularidade de
um candidato sem máquina partidária,
exageros precisaram ser contidos quan-
do o mundo dos negócios começou a levar
a sério um possível governo do interlocu-
tor de Conan. Há sérias hesitações empre-
sariais sobre suas vantagens numa situa-
ção econômica altamente instável. A per-
cepção expressou-se em quedas nas pes-
quisas em setembro.

Nos dois debates de campanha, ao con-
trário de Bolsonaro, Milei, em impecável
terno azul-cobalto, tentou apresentar-se
como um candidato normal. Não gritou,
pediu desculpas ao papa e moderou o tom
após aparecer em comícios exibindo uma
serra elétrica ligada, em alusão aos cortes
e privatizações que pretende fazer.

Milei é produto legítimo do caos pro-
duzido pela crise inflacionária e descon-
trole cambial, aliado à impotência oficial
para realizar intervenções em uma econo-
mia endividada em dólar e com sérias di-
ficuldades de acesso ao mercado interna-
cional de crédito. Em 12 de outubro, o Ban-
co Central elevou a taxa de juros de 118%
para 133% ao ano. Com inflação anual de
138,3%, a taxa real permanece, por en-
quanto, pouco acima de 5%. Na raiz da
crise, entre outras causas, estão as condi-
ções draconianas impostas pelo FMI para
conceder um empréstimo de 57 bilhões de
dólares, o maior da história da instituição,
em 2018, penúltimo ano da gestão Macri.

Diante do desastre que derrete a moe-
da nacional, eleva o desemprego e provo-
ca empobrecimento generalizado, em es-
pecial nas províncias, Milei e Bullrich en-
contram discurso fácil, seguido de apelos
ao endurecimento da repressão à violên-
cia crescente. Sergio Massa consegue um
tento ao mostrar-se competitivo, exercen-
do a um só tempo o papel de comandan-
te e crítico da situação. Com certa licen-
ça poética, pode-se comparar seu papel ao
de José Serra em 2002. Nas eleições pre-
sidenciais daquele ano, vencidas por Lula,
ele teve a árdua tarefa de apontar o dedo
contra a elevação do desemprego e da in-
flação numa administração que integra-
ra até as vésperas da campanha.

Nas eleições de domingo estarão
também em disputa os governos de 21
das 23 províncias e da Cidade Autônoma
de Buenos Aires. Na província de mes-
mo nome vivem 40% dos argentinos e, ao
que tudo indica, o peronismo deve ven-
cer tanto as eleições regionais quanto a
nacional. As coligações de Massa e Bull-
rich têm mais chances de eleger governos
provinciais, apesar da dianteira de Milei
na maioria delas. Serão também renova-
das 130 cadeiras da Câmara dos Deputa-
dos e 24 do Senado.

Qualquer que seja o resultado deste
primeiro turno, o certo é que as inten-
ções de voto mostram que a Argentina
se inclina para a direita. Se Massa passar
para o segundo turno, a construção de
uma ampla frente democrática, a exem-
plo do que fez Lula, será sua tarefa prin-
cipal a ser cumprida a partir da próxima
segunda-feira, 23 de outubro.

CARTA CAPITAL 

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