October 10, 2023

Antígona Gaucha

 

 

 BOATE KISS O CNJ analisa atuação de juiz
que conduziu júri anulado, enquanto os
culpados pela tragédia seguem impunes
 

P O R  R E N É  R U S C H E L

 Passados mais de dez anos, os familiares dos 242 mortos e 636 feridos no incêndio da Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, estão fartos de esperar por justiça. Em 2021, os proprietários da casa noturna, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, assim como o músico e o auxiliar que tiveram a irresponsável e desastrosa ideia de usar artefatos pirotécnicos em um show em ambiente fechado, foram condenados a cumprir penas entre 18 e 22 anos de prisão. Mas o alívio pela punição dos responsáveis pela tragédia durou pouco. Em agosto do ano seguinte, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu anular o resultado do julgamento – decisão confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça no início deste mês.

Os desembargadores do TJ apontaram vícios insanáveis na condução do julgamento. Responsável pela instrução do processo na primeira instância, o juiz Orlando Faccini Neto reuniu-se em particular com os jurados, sem a presença de representantes do Ministério Público ou da defesa. O magistrado também foi censurado por ter questionado os jurados sobre questões que não constam no processo. No mesmo dia em que o júri foi anulado, o TJ gaúcho expediu um mandado de soltura e todos os réus foram libertados – para espanto das vítimas e familiares, inconformados com as idas e vindas processuais.

Na terça-feira 26, foi a vez de Faccini
Neto ocupar o “banco dos réus”. Em uma
sessão do Conselho Nacional de Justiça
destinada a avaliar a sua conduta, o rela-
tor Luiz Felipe Salomão votou pela aber-
tura de um Processo Administrativo Dis-
ciplinar para apurar possíveis desvios do
magistrado. Defensor dos acusados pela
tragédia da Kiss, o advogado Jader Mar-
ques também acusa Faccini Neto de ter
antecipado o juízo em manifestações à
mídia e nas redes sociais. O julgamento foi
suspenso após pedido de vista do conse-
lheiro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho.

 
O novo júri dos quatro réus da Boa-
te Kiss será realizado em
26 de fevereiro de 2024,
passados mais de 11 anos
do incêndio. O advogado
Lenio Streck, professor de
Direito Constitucional da
Unisinos e pós-doutor pe-
la Universidade de Lisboa,
reconhece que o primei-
ro julgamento apresenta-
va vícios, mas considera
injustificável a demora
do Judiciário brasileiro,
um dos mais caros do
mundo, para dar uma
resposta satisfatória às
vítimas e seus familiares

"Sei que a anulação foi dolorosa, mas o STJ
assim decidiu. O caso da Boate Kiss deve-
ria servir para que fizéssemos uma refle-
xão acerca do comportamento do Esta-
do brasileiro”, propõe o jurista. “Desde a
aurora da civilização, não se pode negar
enterro aos mortos e, no caso da Kiss, há
um enterro simbólico negado há mais de
dez anos. Além de prolongar o desfecho
dessa história, essa demora está seques-
trando as almas dos mortos e dos vivos. Na
tragédia grega de Sófocles, Antígona mor-
reu enfrentando Creonte, o rei, para ter o
direito de enterrar seu irmão.”

 
De fato, a população de Santa Maria
só deseja enterrar seus mortos com a cer-
teza de que os responsáveis pelo incêndio
não ficarão impunes. Desde aquela fatídi-
ca madrugada de 27 de janeiro de 2013, o
matemático Paulo Tadeu Nunes de Car-
valho sente-se em dívida com o filho Ra-
fael, que morreu nas chamas aos 32 anos.

 
“Foi uma tragédia anunciada”, lamenta,
ao elencar uma série de falhas e omissões
decisivas para o desfecho fatal. Em 2009,
o arquiteto Rafael Escobar apresentou, a
pedido da prefeitura, um relatório no qual
indicava 29 irregularidades jamais sana-
das na edificação. Mesmo assim, em 2011,
o Ministério Público Esta-
dual assinou um Termo de
Ajustamento de Conduta
que autorizou o funciona-
mento da casa noturna.

 
O inquérito da Polícia
Civil resultou no indicia-
mento de 35 pessoas, en-
tre elas o prefeito Cezar
Schirmer, secretários
municipais, fiscais da
prefeitura e integrantes
do Corpo de Bombeiros.
Apenas quatro foram efe-
tivamente denunciados
pelo Ministério Públi-
co: os dois sócios da boate,

o músico que acendeu o artefato piro-
técnico e o produtor da banda Gurizada
Fandangueira, que trouxe o material in-
flamável para animar a noitada. Poupa-
do pela promotoria, o prefeito Schirmer
depois foi nomeado secretário de Segu-
rança Pública do governador Ivo Sartori.

 
O julgamento realizado em Porto Ale-
gre, em 2021, demorou dez dias. Após o
júri confirmar a condenação dos réus,
familiares das vítimas desataram a cho-
rar, com a sensação de que, finalmente, a
Justiça havia atendido suas súplicas. Oito
meses depois, tudo voltaria à estaca zero.

 
O juiz Faccini Neto nega qualquer condu-
ta irregular ou imprópria. Ele reconhece
ter se encontrado com os jurados, inclu-
sive em almoços “na presença de colegas
da Corregedoria de Justiça”, mas garante
que jamais tratou de qualquer tema que
pudesse influenciar na decisão dele

Embora a decisão do CNJ não inter-
fira diretamente no processo que se ar-
rasta há dez anos e oito meses, ver o juiz
Faccini Neto responder a uma sindicân-
cia, enquanto os responsáveis pelo incên-
dio seguem impunes, reaviva as piores
lembranças de quem vivenciou a tragé-
dia. À época com 20 anos, Bharbara Alves
Agnoletto recorda-se do momento em que
precisou reconhecer o corpo de um ami-
go, a pedido de sua família. “Nunca vou es-
quecer o que vi naquele ginásio. O cheiro
da fumaça impregnado na carteira e 

 celular dele. O semblante de pânico das
pessoas, o meu próprio desespero.”

 
O presidente da Associação dos
Familiares de Vítimas e Sobreviven-
tes da Tragédia de Santa Maria, Gabriel
Rovadoschi Barros, teme que o processo
movido no CNJ contra o juiz Faccini Neto
possa influir no novo júri. “É uma forma de
desmoralizar a conduta do doutor Orlando,
a fim de intimidar não só os jurados, mas
também o magistrado que vier a assumir o
caso.” Em recente entrevista à Rádio Gaú-
cha, o desembargador Antonio Vinícius
Amaro da Silveira, segundo vice-presiden-
te do TJ gaúcho, prometeu redobrar os cui-
dados para evitar outra anulação do júri.
É o mínimo que se espera para aplacar a
sede de Justiça das vítimas e familia

CARTA CAPITAL      

 

 

 

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