September 19, 2023

Veias abertas

 



Cinquenta anos depois do golpe contra
Allende, o Chile ainda luta para punir os crimes da ditadura

 
P O R J U L I A N B O R G E R , D E WA S H I N GTO N
Cinquenta anos depois, as fe-
ridas deixadas na socieda-
de chilena pelo golpe de 11
de setembro de 1973 ainda
estão abertas. A justiça es-
tá longe de ser feita, segredos permane-
cem por revelar e os corpos de muitas ví-
timas ainda não foram encontrados. Na
quarta-feira 30, o governo do Chile anun-
ciou uma nova iniciativa nacional para en-
contrar os restos mortais de 1.162 cida-
dãos que desapareceram sob a ditadura
de Augusto Pinochet e continuam sumi-
dos. Na maioria dos casos, o melhor que
suas famílias podem esperar são frag-
mentos ou vestígios de DNA.

 
Depois de destituir Salvador Allende,
socialista democraticamente eleito,
Pinochet prendeu opositores, ativistas so-
ciais e estudantes no Estádio Nacional de
Santiago e outros centros de detenção im-
provisados, onde cerca de 30 mil oposi-
tores foram torturados e mais de 2,2 mil,
executados. O corpo de Allende foi reti-
rado dos destroços bombardeados do pa-
lácio presidencial de La Moneda. Geral-
mente, se pensa que ele se matou para não
ser capturado por soldados leais a Pino-
chet, o comandante das forças armadas
que ele nomeara algumas semanas antes.


O regime Pinochet
destruiu muitas provas,
mas os processos
contra torturadores
prosseguem

 
Quase 1,5 mil outros chilenos simples-
mente desapareceram e, desde o fim da
junta militar, em 1990, apenas 307 fo-
ram identificados e seus restos mortais
devolvidos às famílias. Prevendo o acer-
to de contas que viria, Pinochet ordenou
que os corpos dos executados fossem de-
senterrados e jogados no mar ou na crate-
ra de um vulcão. Os investigadores espe-
ram agora que a tecnologia moderna ajude
a identificar locais de massacres e cemité-
rios temporários que ainda possam con-
ter vestígios dos mortos. Ariel Dorfman
trabalhava como assessor cultural e de
imprensa no La Moneda e teve sorte de
sobreviver. A maior parte do pessoal de
Allende foi executada nos primeiros dias
após o golpe. “Foi uma tragédia para o Chi-
le, para a América Latina e para o mundo,
porque estávamos tentando abrir um ca-
minho para uma sociedade mais justa, ra-
dical e sem violência”, disse Dorfman, ro-
mancista, dramaturgo e acadêmico.

 
Há julgamentos em curso, num últi-
mo esforço de prestação de contas an-
tes da morte por velhice dos perpetrado-
res. Na segunda-feira 28, sete ex-soldados
com idades entre 73 e 85 anos foram final-
mente presos depois de a câmara criminal
do Supremo Tribunal chileno ter manti-
do suas condenações pelo assassinato de
Victor Jara, célebre compositor e cantor
popular apoiador de Allende que foi tor-
turado e, depois, baleado 44 vezes.
Muitos detalhes do golpe de 1973 e da
ditadura que se seguiu permanecem des-
conhecidos. Pinochet e a junta foram efi-
cientes quando se tratou de destruir pro-
vas, e os Estados Unidos têm relutado em
desclassificar seus próprios registros, que
surgiram aos poucos ao longo dos anos.

 
Sob pressão do atual presidente do Chile,
Gabriel Boric, ex-ativista estudantil de 37
anos, e de democratas progressistas em
Washington, como Alexandria Ocasio-
-Cortez, os EUA desclassificaram dois no-
vos documentos: briefings de inteligência
presidenciais dados a Richard Nixon no
dia do golpe e três dias antes. Era difícil
entender por que eles foram retidos por
tanto tempo. Confirmavam o que tinha
sido geralmente estabelecido: que a CIA
não tinha encenado diretamente o golpe
de 11 de setembro. O relatório diário pre-
sidencial de 8 de setembro inclui relatos

e uma conspiração levada a cabo por ofi-
ciais da Marinha, mas acrescenta: “Não
há provas de um plano de golpe das três
forças. Se os cabeças quentes da Marinha
agirem na crença de que receberão auto-
maticamente apoio de outras forças, po-
derão ficar isolados”, disse o responsável
pela inteligência a Nixon

.
No próprio dia do golpe, Nixon foi in-
formado de que, embora algumas uni-
dades do Exército parecessem ter ade-
rido ao esforço, “ainda podem não ter
um plano eficazmente coordenado que
capitalize a oposição civil generalizada”.
Jack Devine, que trabalhava como oficial
clandestino da CIA no Chile em 1973, es-
tava almoçando num restaurante italia-
no, em Santiago, no dia 9 de setembro,
quando recebeu uma mensagem para li-
gar para casa. Foi sua mulher quem lhe
disse que haveria um golpe.

 
Uma das fontes de Devine, um empre-
sário e ex-oficial da Marinha, estava dei-
xando o país e não conseguiu encontrar
o homem da CIA, por isso foi à sua casa e
disse à mulher dele para transmitir sua
denúncia: “Os militares decidiram agir.
Isso vai acontecer no dia 11 de setembro”.
Devine disse a The Observer: “Esse é o pri-
meiro sinal claro de que um golpe estava
por vir, apenas alguns dias antes do pre-
visto. Fomos pegos de surpresa. Essa é a
primeira evidência de que algo iria acon-
tecer. E muitos ainda não acreditavam
nisso em Washington e na CIA”.

 
Não há dúvida, contudo, de que os EUA
ajudaram a preparar o terreno para a to-
mada militar. Desde a eleição de Allende,
em 4 de setembro de 1970, à frente da
aliança Unidade Popular, a Casa Branca,
liderada pelo conselheiro de segurança
nacional de Nixon, Henry Kissinger, co-
meçou a conspirar para se livrar dele. A
CIA planejou um golpe de Estado no mês
seguinte, antes mesmo de Allende tomar
posse. Os espiões dos Estados Unidos en-
contraram oficiais dispostos a isso e lhes
forneceram armas, dinheiro e garantias
de apoio a um governo militar. A conspi-
ração levou ao assassinato do comandan-
te-em-chefe, René Schneider, que apoia-
va o novo presidente, mas não conseguiu
derrubar Allende quando os conspirado-
res militares se retiraram.

 
Numa conversa telefônica em 23 de
outubro, Kissinger disse a Nixon que ti-
nha havido “uma virada para pior”. “O
próximo passo deveria ter sido uma to-
mada do governo, mas isso não aconte-
ceu”, disse ele, descrevendo os militares
chilenos como “um grupo bastante in-
competente”. “Eles estão sem prática”,
respondeu Nixon.

 
Após o fracasso do golpe de 1970,
Devine disse: “Nixon enviou instruções
específicas à CIA para que não houves-
se mais conspirações golpistas”. A admi-
nistração dos EUA concentrou-se, em vez
disso, em minar o governo Allende, que
tinha sido eleito por uma pequena mar-
gem e enfrentava uma oposição interna
substancial. Washington se coordenou
com seus aliados na América Latina pa-
ra bloquear o acesso do Chile ao financia-
mento internacional, persuadiu empre-
sas americanas a abandonar o Chile, ma-
nipulou o preço global do cobre, seu prin-
cipal produto de exportação, e ajudou a
fomentar greves dentro do país.

 
A administração Nixon também foi
rápida em apoiar a junta. Quando diplo-
matas norte-americanos, chocados, en-
viaram relatórios sobre o massacre que
se seguiu ao golpe, Kissinger disse a seus
assessores: “Penso que deveríamos com-
preender a nossa política. Por mais desa-
gradável que ele seja, este governo é me-
lhor para nós do que Allende”.

 
Pinochet encontrou outro amigo po-
deroso no cenário mundial, quando
Margaret Thatcher foi eleita na Grã-Bre-
tanha em 1979. Ela restaurou os créditos
à exportação do Chile e retirou o embar-
go de armas ao regime, vendendo-lhe ca-
ças e treinando suas tropas. Uma série de
ministros conservadores visitou o Chi-
le, admirando a elevada taxa de cresci-
mento econômico e a adoção sincera da
política monetária absolutista exaltada
por Milton Friedman na Universidade de
Chicago. Um grupo de economistas chi-
lenos que estudaram lá, conhecidos co-
mo Chicago Boys, assumiram altos car-
gos no governo Pinochet, e o país tornou-
-se um teste para as políticas de privati-
zação, desregulamentação e controle da
oferta monetária. Fatores sociais com-
plicadores, como os sindicatos e a resis-
tência popular, foram retirados de cena.

 
“O golpe chileno foi um triunfo do mo-
vimento anticomunista nos Estados Uni-
dos e na América Latina. Não se pode ig-
norar o fato de que ele levou à derrota de  

governos democráticos e progressistas
em toda a região”, disse John Dinges, que
viveu os primeiros anos violentos da era
Pinochet como um dos poucos jornalis-
tas norte-americanos a permanecer no
país após o golpe.

 
O regime de Pinochet coordenou-se
com outros governos militares na Argen-
tina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Brasil
para eliminar esquerdistas e ativistas so-
ciais na Operação Condor, um massacre
concertado em toda a região. Teve ajuda
dos Estados Unidos, na área de apoio téc-
nico, formação e ajuda militar, das admi-
nistrações Ford, Carter e Reagan, tudo em
nome da luta contra o comunismo.

 
O legado duradouro do golpe em to-
do o mundo foi definido principalmen-
te pela reação internacional à sua cho-
cante crueldade. Galvanizou o movimen-
to pelos direitos humanos na Europa e
nos Estados Unidos. Em Washington,
o envolvimento dos EUA chocou políti-
cos como o senador Frank Church, que
supervisionou as primeiras audiências
no Congresso sobre as atividades secre-

as da CIA, o que acabou por conduzir a
restrições nas suas futuras operações.

 
O martírio de Allende e a sua experi-
ência no socialismo democrático inspi-
raram uma geração de ativistas políticos
de esquerda em todo o mundo. Dorfman
argumenta que o governo Allende e sua
destituição mudaram o curso da políti-
ca progressista. “Havia lições a aprender,
e elas perduraram: a necessidade de vas-
tas coligações para efetuar essa mudan-
ça estrutural e a forma como o sofrimen-
to do Chile criou uma consciência sobre
as violações dos direitos humanos”, dis-
se o ativista, que escreveu uma avaliação
do legado de Allende na New York Review
of Books e um romance sobre a morte de
Allende, The Suicide Museum.

 
No Chile, o legado do golpe ainda está
em discussão. Uma recente sondagem re-
velou que apenas 42% dos chilenos pensa-
vam que a ditadura tinha destruído a de-
mocracia, em comparação com 36% que
afirmavam que o programa tinha salvado
o país do marxismo. Peter Kornbluh, ana-
lista sênior do Arquivo de Segurança Na-
cional em Washington, um dos cabeças na

 pressão sobre o governo para desclassifi-
car seus documentos a respeito do golpe,
alertou que o negacionismo sobre as atro-
cidades da era Pinochet estava se forta-
lecendo, juntamente com a ascensão da
extrema-direita. “É uma Pedra da Rose-
ta para a discussão sobre a ameaça do au-
toritarismo versus a santidade da demo-
cracia”, disse Kornbluh, autor de um livro
baseado nos documentos desclassifica-
dos até agora, The Pinochet File. “E o Chi-
le está tendo esse debate sobre o seu pas-
sado porque vem lidando com essa ame-
aça neste momento. E vários outros paí-
ses, incluindo os Estados Unidos e nações
da Europa, estão enfrentando o mesmo
problema. O golpe no Chile foi realmen-
te a repressão de muitas esperanças e so-
nhos em todo o mundo, e acho que essa di-
nâmica ainda ressoa e é relevante hoje.


CARTA CAPITAL

    

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