September 20, 2023

Jabuticaba milionária

 

 

Beneficiados pelos juros
de capital próprio resistem à taxação,
em meio a manobras contábeis

 
P O R  C A R LO S  D R U M M O N D

 
Privilégio exorbitante de um
grupo minúsculo, a isen-
ção de tributação de juros
sobre capital próprio, as-
sim como aquela de fundos
fechados e offshore, é apontada pelos
seus beneficiários, bem instalados no
topo da pirâmide da desigualdade de
renda, como um direito. Acabar com es-
sa benesse consistiria, segundo esse pú-
blico, um risco para a economia, com a
fuga de investimentos para outros paí-
ses. As lamúrias eram esperadas, mas
as justificativas não param em pé e mal
conseguem disfarçar o fato de que be-
nefícios como esses resultam de leni-
ência tributária injustificável da qual
muitas empresas fazem mau uso, se-
gundo o Ministério da Fazenda.

 
Um Projeto de Lei encaminhado pe-
lo governo extingue a figura dos juros
sobre capital próprio e enterra, portan-
to, a respectiva isenção tributária. Para
entrar em vigor em 2024, a medida pre-
cisa, entretanto, ser aprovada pelo Con-
gresso até o fim do ano. O governo cal-
cula que a isenção de tributos sobre ju-
ros de capital próprio resulta em perda
anual de arrecadação de 10,5 bilhões de
reais. Um valor abaixo dos 13,3 bilhões
de outra erosão fiscal resultante de con-
descendência tributária, a não tributa-
ção de fundos fechados pertencentes,
na maior parte, a um punhado de famí-
lias de milionários, mas superior aos 7
bilhões que o Fisco também deixa de
arrecadar sobre os recursos mantidos
por 0,04% dos brasileiros em paraísos
fiscais. No total, uma bolada de 39 bi-
lhões de reais. Os dados são oficiais e
constam da apresentação sobre o Proje-
to de Lei Orçamentária Anual de 2024.
São beneficiadas com isenção de ju-
ros sobre capital próprio empresas obri-
gadas a declarar o Imposto de Renda com
base no lucro real, entre as quais se des-
tacam aquelas com faturamento anual
acima de 78 milhões de reais e todas as
instituições financeiras, além de outro

subgrupos. Os JCP, destacam os técnicos
do Ministério da Fazenda, são pagos aos
detentores dos maiores rendimentos do
País. Entre 2016 e 2020, em torno de 2,8
milhões de pessoas físicas receberam es-
sa remuneração, o equivalente a menos
de 2% da população brasileira. O valor
anual total recebido por esses benefici-
ários foi ao redor de 30,6 bilhões de reais.

 
Os juros sobre capital próprio impli-
cam a redução de carga tributária por-
que existe um jogo, explicam advoga-
dos especializados. Trata-se de uma de-
dução sobre uma base que paga 34% no
total, formada por 15% do Imposto de
Renda, mais 10% do adicional para fir-
mas que faturam acima de 20 mil reais
por mês e 9% da contribuição social.
Quando a empresa deduz os juros so-
bre capital próprio, ela ganha, ou deixa
de tributar, o equivalente a 34%. Já o só-
cio que recebe o JCP tem de pagar 15%.

 
A empresa deduz 34%, o sócio paga 15%
e, no fim, para o governo, restaria uma
diferença de cerca de 19%. Em outras
palavras, se o governo extinguir o JCP,
arrecadará os 19%, que correspondem
ao valor distribuído hoje aos acionistas.

 
A isenção dos juros sobre capital pró-
prio é, segundo o Ministério da Fazen-
da, um instrumento contábil de redu-
ção do Imposto de Renda da Pessoa Ju-
rídica e da CSLL que não existe em ne-
nhum outro país, com distribuição aos
sócios e sem necessidade de aporte de
recursos na empresa. Outro efeito no-
civo da existência dos juros sobre capi-
tal próprio é a redução da base de cálcu-
lo da arrecadação, o que fragiliza a ale-
gação empresarial de que o Brasil tem a
maior carga tributária do mundo, com
34% do PIB. Esta é apenas a taxa nomi-
nal, enquanto a efetiva encolhe ainda
mais quando se levam em conta, além
dos JCP, as várias isenções que bene-
ficiam as companhias. “Na prática, os
JCP são uma via de mão dupla: os inves-
tidores saem felizes por receberem uma
remuneração extra de acordo com o de-
sempenho do seu investimento e as em-
presas os utilizam como artifício con-
tábil para pagar menos impostos. Isso
porque os pagamentos dos juros sobre
capital próprio, na linguagem contábil,
são considerados como despesa, por se-
rem realizados antes do lucro líquido”,
diz a plataforma de investimentos Toro,
em comunicado dirigido a investidores.

 
Entidades empresariais publica-
ram comunicados enfáticos em defesa
daquilo que a Toro denomina “artifício
contábil”. A extinção dos juros sobre ca-
pital próprio é prejudicial aos investi-
mentos no Brasil, reclamou a Confede-
ração Nacional da Indústria. O fim dos
JCP deveria ter contrapartidas, defen-
deu a Febraban, a federação dos bancos.
Sem uma medida alternativa, o custo
de capital deverá aumentar, alertou a
Associação Brasileira das Empresas de
Capital Aberto. Segundo o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, o meca-
nismo foi criado para atrair investido-
res no mercado de ações e facilitar au-
tofinanciamentos com recursos dos só-
cios, ao estimular a distribuição de lu-
cros pelas empresas, mas diversas com-
panhias zeram os lucros artificialmen-
te para transformá-los em juros sobre
capital próprio.

 
Haddad detalhou, em declaração à
imprensa, autênticas acrobacias contá-
beis. “Há empresas que não estão ten-
do mais lucro. Empresas muito rentá-
veis, mas que não declaram lucro e, por-
tanto, não pagam Imposto de Renda de
Pessoa Jurídica. O que elas fizeram?

Transformaram lucro artificialmente
em juros sobre capital próprio. Não pa-
gam nem como pessoa jurídica nem co-
mo pessoa física.”

 
A exposição de motivos do projeto
que veda a dedução do lucro real e da
base de cálculo da CSLL enumera mo-
tivos abundantes para a adoção da me-
dida. Após 25 anos da sua introdução,
diz o texto, não há evidências de que a
adoção dos JCP reduza o endividamen-
to e aumente investimentos, conforme
argumentaram à época seus defenso-
res. A introdução do dispositivo funcio-
na, na prática, como um sistema de di-
videndos dedutíveis, além de estimular
as empresas a buscarem financiamen-
to externo para remunerar os acionis-
tas. Há ainda uma elevação na razão dí-
vida-capital, em vez da redução espe-
rada, sublinha a exposição de motivos.

 
As críticas prosseguem. Os JCP não
induzem o reinvestimento, pois con-
sistem em forma de remuneração aos
acionistas que concorre com o reinves-
timento de lucros na empresa e com sua
disponibilidade financeira para quita-
ção de dívidas, uma vez que ela deve
dispor de seu patrimônio para pagar
os acionistas ou, de forma ainda mais
prejudicial, contratar empréstimo pa-
ra pagá-los, caso as taxas de juro e de
retorno sejam vantajosas. “Além dis-
so, constatou-se que a regulamenta-
ção vigente relativa à determinação de
sua base de cálculo permite o aumen-
to irregular do valor do benefício por
meio de artifícios contábeis”, ressaltam
os autores da análise. Outro aspecto re-
levante, cabe acrescentar, é que a hete-
rogeneidade de condições e de disposi-
tivos, no País e no exterior, inviabiliza
as comparações de alguns advogados e
entidades empresariais que afirmam
ser comum, em países europeus, a ado-
ção de normas semelhantes àquela dos
juros sobre capital próprio no Brasil.

 
Na tentativa de manter viva a possibi-
lidade de praticar o artifício contábil,
os endinheirados resistem, e os emba-
tes no Congresso em torno do assunto
tendem a ser intensos. João Camargo,
presidente do Grupo Esfera Brasil, fez
publicar artigo com críticas às medidas
governamentais para aumentar a tribu-
tação dos super-ricos. Camargo enume-
ra insucessos de alguns países que au-
mentaram as alíquotas para esse grupo
e diz que os empresários deveriam ser
admirados pelo seu sacrifício em prol
do crescimento econômico. Segundo
esse raciocínio, é injusto pedir mais a
quem contribuiu tanto, mesmo sendo
o Brasil um dos países mais desiguais
do mundo e dos pouquíssimos que isen-
tam dividendos.

 
A solidariedade dos ricos, que
Camargo parece expressar, está na con-
tramão do enorme esforço feito pelos go-
vernos para restringir a fuga de receitas
tributárias para outros países. Em julho,
representantes de mais de 130 nações
reuniram-se em Paris para avançar na
aplicação de parte de um acordo tribu-
tário inovador coordenado pela OCDE.
O objetivo das mudanças é atualizar as
regras internacionais para que as cem
maiores companhias do mundo paguem
mais impostos onde fazem negócios.

CARTA CAPITAL 

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