September 8, 2023

A cartilha de Feder

 

 Controle ideológico
e lucros para sua própria empresa
movem o secretário da Educação

 
P O R  M A R I A N A S E R A F I N I 

"O professor é o coach do
aluno.” Assim o secretá-
rio da Educação do Esta-
do de São Paulo, Renato
Feder, definiu a função
dos docentes em sala de aula durante uma
live com educadores à qual CartaCapital
teve acesso. O empresário do ramo da tec-
nologia, que cresceu e prosperou no Pa-
raná e chegou a ser cotado para ministro
de Bolsonaro, assumiu a pasta no gover-
no de Tarcísio de Freitas neste ano e está
empenhado em acelerar a digitalização da
educação paulista. Em 2024, anunciou o
secretário, serão abolidos os livros físicos
do material distribuído aos ensinos fun-
damental e médio. Para tanto, a secreta-
ria abriu mão da verba de 120 milhões de
reais do Programa Nacional do Livro Di-
dático, do Ministério da Educação, desti-
nada à compra de impressos, e pretende
gastar 211 milhões na aquisição de 24 mi-
lhões de exemplares digitais próprios sem
licitação. Não só: após a grita de especia-
listas, governador e secretário optaram
por uma emenda pior que o soneto. As car-
tilhas digitais, apartadas do plano fede-
ral e criadas exclusivamente para os alu-
nos paulistas, serão impressas. Ou seja,
mais custos aos cofres públicos, sem ne-
nhum ganho de eficiência.

 
Para sorte de professores, estudantes
e contribuintes paulistas, a marca regis-
trada de Freitas é a tibieza. Na noite da
quarta-feira 16, após a Justiça conceder
uma liminar que proíbe a Secretaria da
Educação de rejeitar o Programa Nacional
de Livro Didático, o governador recuou da
decisão de produzir o próprio material e
informou a adesão ao plano federal. Não
é a primeira vez que Freitas, cotado para
ser o novo Bolsonaro, volta atrás de uma
decisão antes dada como definitiva.

 
Ainda assim, os professores continuam
a se sentir desvalorizados no modelo ado-
tado por São Paulo, que coloca o educador
em segundo plano, enquanto tablets, tele-
visores e celulares são alçados à posição
de estrelas da alfabetização.

 
Feder chegou do Paraná em dezem-
bro, onde exercia a mesma função no go-
verno de Ratinho Jr.. Depois de ter sido
anunciado como futuro secretário em
São Paulo, a pasta que estaria em breve
sob seu controle não viu conflito em assi-
nar três contratos de compra de notebooks
e smartphones com a empresa do futuro
dirigente, a Multilaser, no valor de 200

 milhões de reais. Neste ano, foram sela-
dos mais três contratos, com outras secre-
tarias, também para a compra de equipa-
mentos eletrônicos. O governador alegou
que a negociação foi feita “dentro do jogo”
(uma variação do termo “dentro das qua-
tro linhas” exaustivamente repetido por
Bolsonaro), mas anunciou, após o caso ser
divulgado pela mídia, que daqui em diante
as portas estão fechadas para a Multilaser.
Segundo professores da rede pública,
os contratos suspeitos são o menor dos
problemas. A precarização da carreira,
a falta de opção de material didático im-
presso e a estrutura deteriorada das esco-
las incomodam mais a categoria. O pro-
fessor de Sociologia da rede estadual Al-
cir José Gonçalves não hesita em definir
Feder como inimigo da categoria. “A di-
gitalização vinha do governo João Doria.

 
E imprimir materiais didáticos por conta
própria é uma prática que afeta os profes-
sores há muito tempo. A gente precisa im-
primir apostilas e outros materiais com
os nossos próprios recursos, com o nosso
salário, as nossas impressoras. Mas, ago-
ra, imprimir apostilas para os alunos vai
ser impossível, isso torna o trabalho em
sala de aula totalmente inviável.” Gon-
çalves, efetivado na rede pública em 2011,
afirma que, nos últimos anos, “o plano de
carreira foi jogado pelo ralo”. “Essa estra-
tégia de dividir os professores em muitas
categorias serve para evitar que a gente se
organize, os professores mais novos estão
no fio da navalha, não se sentem seguros
para questionar as iniciativas do gover-
no.” O maior problema da digitalização,
prossegue, é não ter sido discutida com a
base. Se o governo assim o fizesse, desco-
briria a falta de estrutura das unidades de
ensino. “Quando há muitos aparelhos co-
nectados no wi-fi, a internet simplesmen-
te não funciona e os professores precisam
rotear o próprio sinal para os alunos. Esse
é só um dos problemas do dia a dia.”
Segundo Gonçalves, as novas apostilas
têm cada vez menos conteúdo e obrigam o
aluno a recorrer ao celular com frequên-
cia. Alguns materiais se limitam a exibir
o título do texto a ser trabalhado em sala
de aula e oferecer um QR Code com aces-
so ao conteúdo completo. “Um aluno de
escola pública não tem um celular bom.
A maioria ganhou o telefone de segunda
mão dos pais, que já estava velho. As ba-
terias não duram, é comum ver aquela te-
la toda trincada, os aparelhos não supor-
tam muitas vezes os aplicativos. É uma
realidade muito dura.”

 
Além dos celulares e tablets, foram
instalados televisores de 32 polegadas em
todas as salas, de dimensão insuficiente.

 
“Dou aula para alunos de 14 a 17 anos. Ima-
gine uma sala com 40 estudantes e uma te-
levisão pequena lá no canto, não dá para
passar muitos conteúdos que a gente pre-
cisa.” O novo projeto estabelece ainda um
roteiro em slides, que impede o professor
de buscar alternativas. CartaCapital teve
acesso a esse material. O tempo é crono-
metrado para cada tópico, cujo máximo
de explanação não passa de três minutos.
Os professores não são tolhidos somen-
te pelo material didático limitado. No co-
meço de agosto, o governo estadual pu-
blicou uma portaria que obriga diretores
a assistir ao menos duas aulas por sema-
na de cada professor, e enviar um relató-
rio aos superiores. “Isso acontecia antes
também, mas agora se intensificou. É o
que a gente chama de ‘presenciômetro’. É
uma situação muito constrangedora pa-
ra todo mundo, porque o diretor também
é observado e acaba tendo mais essa atri-
buição, além de todas as demais respon-
sabilidades na escola”, afirma Gonçalves.

 
A vigilância extrapola os limites da es-
cola. Há poucos dias, a secretaria instalou
um aplicativo nos smartphones de profes-
sores, alunos e familiares sem autoriza-
ção. “Eu li uma reportagem e pensei ‘não
é possível’, aí fui ver e o aplicativo estava
no meu celular, não sei como ele foi parar
lá. Eu desinstalei”, conta Gonçalves. A ins-
talação, justifica a secretaria, aconteceu
por causa de um erro técnico durante um
teste do aplicativo “Minha Escola”. Quan-
do a falha veio a público, o governo avisou
os atingidos e sugeriu a desinstalação do
aplicativo. Não se sabe, no entanto, quais
dados e que tipo de monitoramento o app
permite. Dará acesso a câmeras e microfo-
nes? Vai captar a geolocalização dos apa-
relhos? Todas essas possibilidades ferem
a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais,
aprovada pelo Congresso em 2018.

 
Doutor em Ciências pela USP e profes-
sor da Universidade Federal do ABC, Fer-
nando Cássio acompanha as mudanças da
rede pública há anos e declara-se preocu-
pado com o que tem visto: “É um desmon-
te sem precedentes”. Integrante da Rede
Escola Pública e Universidade e do comitê
diretivo da Campanha Nacional pelo Di-
reito à Educação, Cássio afirma que o pro-
jeto de Feder demonstra total desconhe-
cimento da realidade dos estabelecimen-
tos de ensino. “A função não é imprimir
material didático. Não tem nem estrutu-
ra para isso, não tem impressoras de alta

erformance, cartuchos, nem pessoal pa-
ra desempenhar esse trabalho”, resume.
“A Secretaria de Educação está abaixan-
do muito o nível. Está tratando a educa-
ção destinada aos filhos dos trabalhado-
res como algo menor, simplório.” O atual
controle em sala de aula, prossegue, é ta-
manho que o professor virou “um passa-
dor de slides”. “Não se leva em conta que os
alunos podem ter dúvidas, podem querer
debater mais um tópico que outro. O pro-
fessor tem um roteiro e precisa cumprir,
mas se não o fizer perde pontos.”

 
Os recursos digitais são bem-vindos

dmite Cássio, desde que usados como
complemento ao material impresso. Lon-
ge de ser contra a digitalização, o profes-
sor vê com preocupação a dependência
dos equipamentos eletrônicos que, a longo
prazo, não se sustenta. “Celulares e tablets
quebram, ficam obsoletos. A Secretaria da
Educação vai ficar refém desses contra-
tos milionários porque, uma vez feita es-
sa mudança, é impossível recuar”, alerta.
Os slides são recomendados para alunos
de 6 a 17 anos. “A impressão que eu tenho
é de uma escola que desistiu de ensinar.”

 
Há quem tente resistir. O deputado
estadual Emídio de Souza, do PT, pediu o
afastamento do secretário devido ao con-
flito de interesses nos contratos assinados
pela Multilaser. O Ministério Público Es-
tadual investiga o caso. “Juntando tu-
do que o Feder fez nesses primeiros me-
ses, não há outro caminho que não seja o
afastamento. O próprio governador deve-
ria afastá-lo, porque está evidente que esse
cidadão não tem condições de continuar à
frente da secretaria.” A deputada estadual
Mônica Seixas e a federal Sâmia Bonfim,
ambas do PSOL, também encaminharam
denúncias contra o secretário. “O resulta-
do desse desmonte é que vamos ter uma
geração de estudantes paulistas prejudi-
cados no Enem e nos vestibulares, porque
eles simplesmente não têm condições de
ter acesso ao conhecimento. É gravíssimo
o que está acontecendo, e por isso o afasta-
mento do secretário é urgente”, diz Seixas.

 
A Secretaria da Educação paulista in-
formou que “nenhum aluno ficará sem
livro”. A adesão do estado ao Programa
Nacional do Livro Didático será, no en-
tanto, restrita ao material literário, para
ampliar o acervo de clássicos nas biblio-
tecas. O conteúdo didático ficará dispo-
nível, em sua maioria, no formato digi-
tal. “Serão compostos por livros físicos e
material digital em sala de aula, compar-
tilhado pelo professor por telas (televi-
sores, lousas digitais ou projetores)”, se-
gundo um texto da secretaria.

CARTA CAPITAL  

 

 

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