August 6, 2023

O agro não poupa ninguém

 


 

FABIOLA MENDONÇA

Anviaacaboude sair da adolescên- cia, tem apenas 19 anos, mas já é con- siderada um fenô- meno da música pop no Brasil, che- gando a ter sete músicas entre as 50 mais tocadas no Spotify, muitas vezes ocupan- do o primeiro lugar no ranking da platafor- ma. A fazendeira patricinha do sul-mato- -grossense agora reivindica a alcunha de boiadeira, deixando para trás o nome Flá- via e se assumindo como Ana Castela, Prê- mio Revelação Multishow de 2022. Prin- cipal artista do “agronejo”, uma variação da música sertaneja, Castela é uma espé- cie de embaixadora do mundo rural, porta- -voz do agronegócio, uma voz feminina que fura a bolha do campo e dialoga com muita facilidade com o mundo urbano. Além da jovialidade e estilo descontraído, a canto- ra agrega à suas canções ritmos consagra- dos nas grandes cidades como o funk, o rap e o batidão da música eletrônica, além do arrocha e ritmos latinos como oreggaeton. Mas a inovação não para por aí. Entre uma música romântica e outra, a artista traz em suas letras uma verdadeira ode ao Brasil profundo, ao orgulho de ser do interior, à ostentação dos ricaços da roça e ao estilo de vida dos jovens herdeiros do agronegó- cio. Tudo isso sem deixar de desejar o lu- xo dos grandes centros urbanos.

 Não é porque eu sou da roça que eu não rodo no asfalto/ eu posso até andar de car- ro, mas prefiro o meu cavalo/ não é por- que eu gosto de bota que eu não posso an- dar de salto/ eu gosto do cantar do galo, mas prefiro som no talo/ DJ, essa batida tá espetacular, canta Castela, em um trecho da música Néon.A boiadeira é o carro-che- fe da Agroplay, produtora do Paraná que a descobriu e a lançou no mercado da mú- sica. A empresa desenvolve seu trabalho com um claro direcionamento ideológico na sua produção artística. Os jovens can- tores patrocinados emprestam sua voz e carisma para vocalizar uma “realidade” que tende a conquistar mentes e corações em prol do campo. Os próprios sócios da Agroplay, Raphael Soares e Rodolfo Alessi, são cantores sertanejos e autores de músi- cas ufanistas em relação ao agronegócio. Canções como Hino Agro ou A Roça Venceu mostram não apenas um cam- po promissor, mas rivalizam com a cida- de grande, tentando se mostrar superio- res aos grandes centros, uma guerra cul- tural entre agroboys e playboys. 

A pesqui- sadora Ana Manoela Chã, autora do livro Agronegócio e Indústria Cultural – Estra- tégias das Empresas Para a Construção da Hegemonia, explica que a modernização do campo foi transportada para a comu- nicação, seja na publicidade, seja nos pro- gramas televisivos ou na música. “As raí- zes caipiras que tinham inspiração num interior bucólico e atrasado foram perden- do espaço para um campo que se tecnifi- cou. Se a gente pode olhar para a agricul- tura como um grande show, com maqui- nários, grandes extensões de plantações da mesma cor, com desenhos que podem ser vistos de avião e que têm formas geo- métricas curiosas, o sertanejo trouxe is- so também para a música, essa coisa ele- trificada do grande show que hoje se faz dentro da plantação de milho transgêni- co. Do ponto de vista cultural, o agronejo se apresenta como um porta-voz do agro.” 

A historiadora Heloísa Starling, profes- sora da UFMG e coautora do livro Brasil: Uma Biografia, diz que a música sertane- ja expressa um conjunto de imaginação e valores do interior, mas que produz tam- bém caldo ideológico reacionário vincula- do ao mundo do agronegócio. Ela lembra que muitos dos compositores ou são ou se tornaram proprietários de terra. “É como se a gente tivesse um novo recorte na mú- sica sertaneja, que não trata mais as dores de amor, nem o caipira, nem o trabalhador. Expressa um caldo ideológico. O agrone- gócio não está preocupado com o bem co- mum, quer viabilizar o seu interesse. Está organizado politicamente e precisa tam- bém se organizar no campo cultural. Por isso a canção é tão importante como veí- culo de transmissão de pensamento e de ideias”, avalia. “Existe uma necessidade de limpar a imagem daquilo que era o latifúndio

iatrasado e trazer o moderno represen-
tado pelo agronegócio”, completa Ana Chã.
Sobre o quanto o agro tem influencia-
do o estilo de vida social, a socióloga Ma-
ria Eduarda da Mota Rocha, pesquisado-
ra da Universidade Federal de Pernam-
buco, diz ser preciso considerar uma re-
lação de consumo hierarquizada por clas-
se. “Se eu fosse fazer um estudo desse es-
tilo de vida, começaria com o lugar do au-
tomóvel. Qual o lugar da caminhonete no
ideário dessas pessoas e como é que isso
vai se configurando ao longo do tempo?”,
questiona. De fato, dentro do discurso en-
tusiasta do agro, as letras do agronejo re-
tratam uma ostentação vivida pelas cama-
das mais abastadas e movimentam o mer-
cado de luxo. Um exemplo é o aquecimento
da comercialização da picape DodgeRAM,
personagem constante das canções. Não
por acaso, as vendas dessas caminhone-
tes cresceram mais de 500% no primei-
ro trimestre deste ano. O modelo top de li-
nha ultrapassa a casa dos 500 mil reais.
“Essas pessoas se situam nas frações ri-
cas em capital econômico e pobres em ca-
pital cultural.”

NO TOPO DAS
PARADAS
DO SPOTIFY,
O AGRONEJO
CELEBRA A
“VITÓRIA DA ROÇA”
E OSTENTA A
RIQUEZA DOS
AGROBOYS

Esse modo de vida de
ostentação me pare-
ce ser uma tentati-
va de disputar ideo-
logicamente o espa-
ço pela imagem. Na era das redes digi-
tais, da comunicação midiática, a dispu-
ta vai ser nas imagens, a partir do poder
de construir narrativas benéficas sobre
si. O agronejo e o agronegócio têm uma
relação temática e de imagem muito for-
te. As músicas têm clipes que viralizam,
o que também implica uma adesão ideo-
lógica”, analisa Thiago Soares, professor
da Universidade Federal de Pernambuco,
coordenador do grupo de pesquisa em
Comunicação, Música e Cultura Pop. O
agronejo é especialista em explorar o ima-
ginário e não hesita em retratar certa pu-
jança do interior puxada pelo agro. A can-
ção Os Meninos da Pecuária, por exemplo,
cita: Não é à toa que o PIB começa com P
de pecuária. Não fala, porém, dos incenti-
vos que o setor recebe do governo federal.


O PIB do setor agropecuário realmen-
te registrou, no primeiro trimestre deste
ano, o maior crescimento desde 1996, al-
cançando 21,6%, quase 20 pontos acima
do índice nacional, que foi de 1,9%. A ex-
pectativa é de que o PIB do agro em 2023
chegue a 2,65 trilhões de reais, quase 36%
a mais que no ano passado, segundo previ-
são da Confederação da Agricultura e Pe-
cuária do Brasil. “Olhando as áreas lito-
râneas, que outrora eram o centro da ba-
se industrial mais moderna do País, on-
de havia os melhores empregos, os melho-
res centros de ensino, hoje, de maneira ge-
ral, essas faixas litorâneas concentram o
atraso. É aí que está localizado o maior nú-
mero de desempregados, de moradores
de rua, de dependentes de programas so-
ciais. São áreas que padecem com o impac-
to da desindustrialização”, analisa Marcio
Pochmann, economista e professor da
Unicamp. Esse cenário pode até colocar
o interior na vanguarda econômica do
Brasil, mas não o suficiente para conduzir
os ruralistas ao status de burguesia, ainda
concentrada nos grandes centros urbanos.


“O peso do agro na geração da riqueza
é uma coisa, não significa a apropriação
da riqueza. Se a gente for atrás da gran-
de burguesia brasileira, provavelmente
vai ver que ela ainda está na cidade de São
Paulo. Essa grande burguesia se apropria
da geração da riqueza através do mercado
financeiro, não precisa produzir soja, nem
laranja, nem cana. Ela não precisa produ-
zir absolutamente nada. Precisa só do Ro-
berto Campos Neto no Banco Central. Se
for para situar o agronegócio dentro da
burguesia, eu o colocaria na condição de
uma espécie de baixo clero”, opina Rocha.
Marcela Teles, pesquisadora da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais, diz que a

migração econômica da cidade para o in-
terior influenciou a música sertaneja. “A
canção caipira originária de São Paulo vai
acompanhando o movimento de expan-
são dos negócios para o interior do Brasil.
Se você for recuperar essa música serta-
neja, as paisagens que ela narra, canta e
os ritmos que desenha, vai encontrar qua-
se que um mapa da expansão dos empre-
sários paulistas para o interior do Brasil”,
destaca Teles, autora do livro Canção Ser-
taneja e Legislação Agrária Durante a Di-
tadura Militar, que deve ser lançado ainda
neste ano. “Você tem a decadência da cul-
tura brasileira de maneira geral e isso tem
a ver com o sentido que a produção urba-
na vem se reproduzindo no Brasil. Por ou-
tro lado, existe uma tentativa de recupe-
rar valores próprios, porque somos uma
população com alguma identificação com
o campo. Somente após a década de 1970
o Brasil se torna urbano”, diz Pochmann

Essa migração do urbano para o in-
terior está retratada no Censo 2022. No
Centro-Oeste, região onde há a maior con-
centração do agronegócio, o crescimento
populacional foi de 1,23% ao ano, quase
três vezes mais que o índice nacional, de
0,52%. Em Abadia de Goiás, o crescimento
chegou a 178%. O mercado imobiliário no
estado está aquecido e faturou 5,1 bilhões
de reais em 2022, quase 9% a mais do que
no ano anterior. Na capital Goiânia, a pro-
cura por imóveis comerciais deu um salto
e o metro quadrado pode chegar a 15 mil
reais. É também no Centro-Oeste, mais
especificamente em MatoGrosso, que es-
tá o maior produtor agropecuário doPaís,
gerando uma receita de 204 bilhões de re-
ais. Líder mundial na produção de soja, o
Brasil produziu mais de 150 milhões de to-
neladas na safra 2022/2023.

O PLANO SAFRA
PREVÊ O APORTE
DE , BILHÕES
DE REAIS PARA
FINANCIAR O
AGRONEGÓCIO,
QUE CRESCEU
,% NO
PRIMEIRO
TRIMESTRE

 
No fim de junho, o governo
federal anunciou o novo
Plano Safra 2023/2024,
com o aporte de 364,22
bilhões de reais para fi-
nanciar o agronegócio, valor quase 27%
maior que aquele destinado em 2022. Para
a agricultura familiar, o plano vai inves-
tir 77 bilhões de reais, com taxas de juros
menores para o financiamento de peque-
nos agricultores. “Se enganam aqueles que
pensam que o governo vai fazer mais ou fa-
zer menos porque tem problemas ou não
problemas com o agronegócio. A cabeça de
um governo responsável não age assim, a
cabeça de um governo responsável não
tem a pequenez de ficar insultando, insu-

lando o ódio entre as pessoas. Este país
só vai dar certo se todo mundo ganhar”,
ressaltou Lula ao lançar o Plano Safra. O
discurso do presidente é um recado direto
ao agronegócio, majoritariamente bolso-
narista e identificado com a extrema-di-
reita. Uma parcela, inclusive, está envol-
vida com os atos golpistas do 8 de janeiro.


Aforça do agronegócio é
perceptível no Congresso
Nacional. A bancada ru-
ralista é uma das mais
estruturadas, com 57
deputados e 24 senadores. A Frente
Parlamentar da Agricultura, por sua vez,
reúne 300 participantes. “A bancada colo-
ca-se como anti-PT para se justificar jun-
to ao seu eleitorado. É um discurso para as
redes sociais. Os moderados da bancada
dialogam e negociam muito bem com o go-
verno Lula”, explica André Santos, analis-
ta político do Departamento Intersindical
de Assessoria Parlamentar (Diap) e di-
retor da Contatos Assessoria Política.


Santos ressalta a profissionalização da
frente, pensada para atender a um projeto
político e econômico do setor agropecuá-
rio. “A estrutura é tão robusta que um par-
lamentar que faz parte da frente recebe
uma lista de propostas que estão em tra-
mitação em determinadas comissões, e aí
tem lá a indicação de como votar, se é para
retirar de pauta ou emendar. Com essa
profissionalização, a bancada ruralista
ampliou a presença no Legislativo e
ganhou força para pressionar o Executivo.
Isso acaba refletindo em políticas públicas
que geram benefícios para o setor.” Não
por acaso, os parlamentares dessa frente
lideram a agenda antiambientalista e anti-
-indigenista no Congresso Nacional, pau-
tas que vinculam o agro a Bolsonaro. Essa
associação ao ex-presidente está presen-
te ainda nos eventos de entretenimento.


Considerada a maior feira agrícola da

América Latina, a Agrishow deste ano,
realizada no início de maio em Ribeirão
Preto, interior de São Paulo, optou por le-
var Bolsonaro ao evento, em detrimento
de Carlos Fávaro, ministro da Agricultu-
ra de Lula. O mal-estar fez o governo reti-
rar o patrocínio do Banco do Brasil à feira
e o ministro ameaçar não comparecer ao
evento, onde o ex-capitão chegou a ser ova-
cionado pelo público, majoritariamente
bolsonarista. Em um show de AnaCastela
em Santa Fé do Sul, também no interior
paulista, um dia antes do primeiro turno
das eleições do ano passado, um telão su-
geriu ao público uma contagem regressi-
va para a cantora subir ao palco. Ela come-
çava pelo número 22, o mesmo de Bolso-
naro nas urnas. Ao som de música ufanis-
ta, a regressão numérica seguiu e, quando
chegou no 13 (número de Lula nas urnas),
o telão exibiu “12+1”. A cena gerou enor-
me repercussão. Ao cabo, a cantora negou
fazer campanha para o ex-capitão e res-
ponsabilizou os organizadores do evento.
Gustavo Alonso, pesquisador e profes-
sor do curso de comunicação do campus
Agreste da UFPE, é cauteloso ao atrelar a
música sertaneja a Bolsonaro ou à extre-
ma-direita. Segundo ele, a vertente “está
onde o Brasil está”, e a prova está no fato de
ser o ritmo mais tocado no País. Diz ainda
não haver unanimidade entre os artistas
desse estilo. A classe artística está racha-
da ideologicamente, assim como o Brasil
e as famílias. “A direita fica falando que a
música sertaneja a apoia e a esquerda re-
força, dizendo que os cantores estão do la-
do de lá. Os dois lados enxergam isso, mas
não é bem assim. A música sertaneja es-
tá rachada, como o País também está.” O
pesquisador lembra que a cantoraMarília

Mendonça, falecida em 2021, chegou a en-
grossar o cordão do #EleNão em 2018.


Enquanto artistas como Gusttavo
Lima, Leonardo, Zezé Di Camargo,
Chitãozinho e Sula Miranda declararam
apoio a Bolsonaro, outros nomes de peso
preferiram não se posicionar. Alguns fi-
zeram questão de expor o racha dentro
da música sertaneja. Xororó não decla-
rou apoio a Lula, mas disse estar ao lado da
“democracia”. Júnior (da antiga dupla com
Sandy) se posicionou nas redes sociais pelo
“fora Bolsonaro”. João Guilherme, filho de
Leonardo, pediu desculpa pela opção polí-
tica do pai. Em 2002, a própria dupla Zezé
Di Camargo e Luciano emprestou sua voz
para a campanha vitoriosa de Lula, ain-
da que em troca de uma pequena fortuna.


É bom destacar que dentro da música
sertaneja há um movimento que defende
pautas progressistas, sem falar que o
conservadorismo do agronegócio se dá
basicamente no campo da economia. Nas
pautas morais, o rural moderno do agro-
negócio não abraça o radicalismo dos bol-
sonaristas ou evangélicos. Tanto que no
próprio agronejo é possível encontrar can-
ções que defendem a emancipação da mu-
lher, a exemplo da música Dona de Mim, de
Ana Castela: Eu criei filha minha pra ser
boiadeira/ na volta desse mundo, não ficar
por baixo/ Não vai ter frescurinha pra abrir
porteira/ e nunca nessa vida depender de
macho. Inspiradas em Ana Castela, mui-
tas meninas do Brasil profundo se aventu-
ram na música ou no mundo de influencia-
dores digitais, com pautas femininas, mo-
vimento chamado de “feminejo”.


No universo masculino e machista do
interior começa a surgir espaço também
para o movimento agrogay, personifica-
do na figura do influencer e apresentador
Odorico Reis. “Não acho que está tudo do-
minado, está ainda em disputa. Agora, pa-
ra fluir na disputa, precisa ouvir esses ca-
ras com atenção, com empatia, e não os jo-
gar no colo da direita. Se a gente carimba
isso, aí é que eles vão virar mesmo de di-
reita. É preciso estar aberto para dialogar 

com o diferente".

CARTA CAPITAL 




 

 

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