August 1, 2023

Assange: Esqueceram de mim

 

À exceção de Lula e de alguns líderes latinos, o mundo silencia diante da extradição de Julian Assange

 
P O R  S E R G I O L I R I O

 A advogada Stella Assange
gasta as últimas energias
em uma batalha perdida.
Na segunda-feira, a mu-
lher de Julian Assange,
fundador do Wikileaks, esteve em Gene-
bra em mais um evento destinado a des-
pertar a atenção global para o drama do
marido – e por pouco não passou desper-
cebida. Há cerca de um mês, a Justiça bri-
tânica negou o último recurso apresen-
tado pela defesa do jornalista e a extradi-
ção para os Estados Unidos, que o acusa
de conspiração e espionagem, tornou-se
iminente. “O padrão é qualificar o jorna-
lismo como espionagem e o público como
inimigo. Se isso for mantido, então todos
os jornalistas serão vistos como inimi-
gos”, alertou. Na reunião, a ativista agra-
deceu ao presidente Lula por suas críti-
cas à perseguição de Assange. Quando o
brasileiro fala, afirmou, “o mundo ouve”.

 
Lula, de fato, tem sido uma rara voz de
apoio ao australiano. O presidente tem
feito questão de criticar a perseguição ao
jornalista, seja nas redes sociais, seja em
viagens pelo Brasil ou ao exterior. “Vejo
com preocupação a possibilidade iminen-
te de extradição. Assange fez um impor-
tante trabalho de denúncia de ações ilegí-
timas de um Estado contra outro”, publi-
cou o petista em sua conta no Twitter. “A
prisão vai contra a defesa da democracia
e da liberdade de imprensa. É importan-
te que todos nos mobilizemos em sua de-
fesa.” As declarações de Lula levaram um
grupo de ativistas dos direitos humanos
a sugerir a concessão pelo Brasil de asilo
a Assange, mas esta é, no momento, uma
hipótese fora de cogitação.

 
O papa Francisco também se uniu à
campanha pela libertação ao receber no
Vaticano, no fim de junho, Stella, os fi-
lhos e os pais do jornalista. “Se Assange
não tivesse denunciado crimes de guer-
ra dos Estados Unidos, mas da China ou
da Rússia, já teria um monumento pa-
ra ele em Washington”, declarou ao jor-
nal Brasil de Fato Rafael Corrêa, ex-pre-
sidente do Equador, outro raro líder po-
lítico a defender em público o fundador
do Wikileaks. Corrêa foi fundamental
na proteção de Assange. Durante sete
anos, por sua determinação, o jornalista

viveu asilado na Embaixada do Equador
em Londres. Nesse período, ele e a futu-
ra mulher, então chamada Stella Morris,
advogada de origem sul-africana, inicia-
ram um romance. O casal tem dois fi-
lhos, Gabriel e Max, presenças constan-
tes nas manifestações pela libertação do
pai. Assange acabaria traído por Lenin
Moreno, pupilo e sucessor de Corrêa na
Presidência do Equador, que, em um tí-
pico gesto de oportunismo, afastou-se do
mentor acusado de corrupção e rendeu-
-se aos encantos de Washington. Em 11
de abril de 2019, Moreno, no episódio que
marcará para sempre seu mandato medí-
ocre, expulsou o jornalista da embaixada.
Policiais britânicos o esperavam na porta.

 
O destino do australiano, após quatro
anos de disputa judicial, aparentemente
foi selado em 9 de junho. Em um despa-
cho de três páginas, Jonathan Swift, juiz
do tribunal superior do Reino Unido, re-
jeitou os oitos pontos da apelação contra a
ordem de extradição assinada um ano an-
tes pelo então ministro do Interior, Priti
Patel. Nos tribunais britânicos, as possi-
bilidades de recursos se esgotaram. Res-
ta à defesa buscar as cortes europeias de
direitos humanos, embora sejam míni-
mas as chances de reversão do processo
ou de uma decisão em tempo hábil. En-
viar o jornalista de 52 anos para os EUA
equivale à decretação da pena de morte.

 
As sentenças, calculam os especialistas,
de quase duas dezenas de acusações po-
dem somar 175 anos. Washington cobiça
o pescoço de Assange desde a revelação,
em 2010, de documentos secretos e víde-
os sobre a atuação das tropas norte-ame-
ricanas no Iraque e no Afeganistão, arqui-
vos vazados pelo analista de segurança
Bradley Manning, que mais tarde assumi-
ria a identidade de Chelsea. Manning che-
gou a ser condenada a 35 anos de prisão
por traição, mas acabou libertada em 2017
por decisão do presidente Barack Obama.

Diretora de campanhas da ONG Re-
pórteres Sem Fronteiras, Rebecca
Vincent externou ao jornal britânico
The Guardian as preocupações da entida-
de em relação aos efeitos do despacho de
Swift. “É absurdo que um único juiz pos-
sa emitir uma decisão de três páginas que
poderia colocar Julian Assange na prisão
pelo resto de sua vida e impactar perma-
nentemente o clima do jornalismo em to-
do o mundo”, lamentou. “O peso histó-
rico do que acontece a seguir não pode
ser exagerado. É hora de acabar com es-
se ataque implacável a Assange e agir pa-
ra proteger o jornalismo e a liberdade de
imprensa. Nosso apelo ao presidente Joe
Biden agora é mais urgente do que nun-
ca: retire essas acusações, encerre o caso
e permita a sua libertação sem demora.”

 
Fundado em 2006 por Assange,

 hacker de origem, o Wikileaks mudou
os parâmetros do jornalismo investiga-
tivo ao optar por expor ao público o ma-
terial bruto coletado sem necessaria-
mente depender da mediação de profis-
sionais da imprensa. O modelo provocou
debates acalorados a respeito da plata-
forma – trata-se ou não de um veículo
jornalístico – e do papel dos jornalistas
no mundo contemporâneo.

 
O modo arredio e misterioso e a com-
pulsão (ou prudência) em viver escondi-
do transformaram o australiano em uma
personagem ao mesmo tempo endeusada
e demonizada. Os documentos ultrasse-
cretos que escancararam, sobretudo, os
crimes de guerra cometidos pelos EUA no
Oriente Médio colaram um alvo nas suas
costas. Antes de ser acusado de espiona-

gem por Washington, Assange enfrentou
uma denúncia por estupro na Suécia. O
processo acabaria arquivado – segundo
o jornalista, tudo não passou de armação
para colocar em xeque a credibilidade do
Wikileaks. A despeito da pressão dos go-
vernos ocidentais, a plataforma viveu um
período áureo no início da década passa-
da e firmou parcerias com meios de co-
municação tradicionais, entre eles New
York Times, Der Spiegel, The Guardian
e Le Monde. Sem o Wikileaks, o mundo
nunca saberia que os norte-americanos
espionavam seus aliados. Caído em des-
graça, o australiano viu-se abandonado
pelos parceiros dos tempos de glória. Não
se leem editoriais a favor de sua liberta-
ção, tampouco campanhas abertas da
mídia. A cobertura oscila entre um tom
burocrático e o descaso quase absoluto.

carta capital    

 

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