July 25, 2023

Renato Freitas, racismo escancarado

 

 Mais uma vez o deputado Renato Freitas precisa reagir à tentativa de cassarem seu mandato por banalidades

Por Maurício Thuswohl e Rodrigo Martins

Jovem negro e periférico, o
deputado estadual Renato
Freitas, do PT, é alvo de novo
processo disciplinar na As-
sembleia Legislativa do Para-
ná que pode abreviar a sua carreira po-
lítica. Quando foi vereador de Curitiba,
Freitas foi cassado duas vezes por ter
participado de um protesto, dentro da
Igreja do Rosário, em repúdio aos assas-
sinatos do congolês Moïse Kabagambe
no Rio de Janeiro e do repositor de esto-
ques Durval Teófilo Filho em São Gon-
çalo – esse último executado por um sar-
gento da Marinha que alega ter confun-
dido o vizinho com um assaltante. À
época, a Arquidiocese de Curitiba saiu
em defesa do parlamentar, ponderando
que a manifestação era justa e ocorreu
somente após a realização de uma mis-
sa. Ainda assim, seus colegas o destituí-
ram. Freitas só conseguiu concluir o
mandato após obter duas liminares do
ministro Luís Roberto Barroso, do Su-
premo Tribunal Federal, para quem é
“impossível dissociar o ato da Câmara
do pano de fundo do racismo estrutural
da sociedade brasileira”.

 
Agora, o parlamentar é alvo de uma re-
clamação no Comitê de Ética da Assem-
bleia por declarações feitas na tribuna da
Casa. Críticas e comentários banais, pró-
prios da atividade legislativa. Nada que se
aproxime das ofensas proferidas por um
colega bolsonarista que chegou a acusá-
-lo, sem provas, de envolvimento com o
PCC, a facção criminosa que controla os
presídios paulistas e paranaenses. “É ra-
cismo, uma clara tentativa de me censu-
rar”, reage Freitas. Confira, a seguir, os
principais trechos da entrevista concedi-
da a CartaCapital na segunda-feira 10. A
íntegra, em vídeo, está disponível no ca-
nal da publicação no YouTube.

 
CartaCapital: Qual é a desculpa
da vez para pedirem a cassação de um
parlamentar negro, eleito com os votos
de quase 58 mil paranaenses?

 
Renato Freitas: Há uma sucessão de
tentativas de cassar meu mandato já na
Assembleia Legislativa. A primeira de-
las teve como propositor o secretário de
Segurança Pública do Paraná, o coronel
Hudson Leôncio Teixeira, que ficou co-
nhecido na mídia pela leniência no trato
com os bolsonaristas que bloqueavam as
rodovias após as eleições de 2022. Quan-
do critiquei na tribuna os elevados núme-
ros de letalidade policial no estado, 483
mortes provocadas pela polícia no ano
passado, um dado divulgado pelo pró-
prio Gaeco, o grupo de combate ao cri-
me organizado do Ministério Público Es-
tadual, ele disse que eu estava ofendendo
toda a categoria dos policiais e represen-
tou contra mim na Comissão de Ética.

 
CC: Que fim levou essa acusação?

 
RF: Não prosperou, mas logo depois o
deputado bolsonarista Ricardo Arruda, do
PL, apresentou nova queixa contra mim,
após eu ter desmentido as fake news que
ele costuma falar na tribuna, entre elas a
absurda acusação de que o vandalismo nas
sedes dos Três Poderes, em Brasília, du-
rante os atos de 8 de janeiro, foi obra de
“petistas infiltrados”. À época, eu disse a
ele, um missionário, que o Pai da Menti-
ra é o mesmo que deseja a morte dos se-
res humanos, não é o Deus da Vida. Então
Arruda alegou que, por eu ter menciona-
do o nome dele junto com a palavra morte
na mesma frase, eu estava, em tese, ame-
açando a vida dele. Uma maluquice. Che-
gou a registrar um boletim de ocorrência
na delegacia, dizendo que eu era de comu-
nidade, envolvido com o crime organiza-
do, um drogado, e usou esse BO para pedir
a cassação do meu mandato, sob a alega-
ção de que meu comportamento era inde-
coroso. Esse pedido também não vingou.

 
CC: E agora, quais são os fatos
imputados ao senhor?

 
RF: Agora, há um processo que passou pe-
lo juízo prévio de admissibilidade. Em re-
sumo, eles alegam que tive postura inde-
corosa por comentários feitos na tribuna.
Dizem, por exemplo, que ofendi o governa-
dor do Paraná. De vez em quando, eu me
refiro ao Ratinho Júnior e ao seu pai, o
apresentador de tevê Ratinho, como “Ra-
to Filho” e “Rato Pai”, mas esses são ape-
lidos que eles próprios se apregoaram, não
são obras da minha criatividade. Também
incluíram declarações minhas apontando
as recorrentes mentiras de Ricardo Arru-
da. O curioso é que esses debates menores
justificaram o pedido de cassação do meu
mandato não pelo parlamentar suposta-
mente ofendido, até porque eu não disse
nada demais. Quem falou barbaridades foi
o deputado Arruda. Ele já me chamou, co-
mo se isso fosse demérito, de funkeiro e fa-
velado. Mas também já me chamou de dro-
gado, disse que tenho envolvimento com
o crime, que eu era incapaz e o meu lugar
não era aquele. Então o deputado Ademar
Traiano, atual presidente da Assembleia
Legislativa, em vez de encaminhá-lo à Co-
missão de Ética, preferiu mandar os dois,
como se meus comentários fossem equi-
valentes, com sinal trocado, aos de Ricar-
do Arruda. Só que o processo contra mim
é absolutamente inconsistente, caracteri-
za um abuso de poder do atual presidente.
O objetivo é claro: me censurar.

 
CC: Arruda o retrata como bandido
por conta de 17 anotações criminais
contra o senhor, mas a quase totalida-
de delas é por desacato ou desobedi-
ência à autoridade policial. Alguma vez
o senhor foi condenado?

 
RF: Não apenas não sofri condenação al-
guma como essas anotações escancaram
o racismo institucional nas forças de se-
gurança do Paraná. Certa vez, a polícia
abordou 16 pessoas numa praça, um úni-
co jovem carregava um cigarro de maco-
nha, mas fui detido com ele. À época, eu
não era vereador nem deputado, ficava
à mercê dessas abordagens. Já tinha um

lvo nas costas, por ser militante de cau-
sas sociais. Em outro episódio, resisti à
violenta repressão a uma manifestação
e carrego até hoje a marca do disparo de
bala de borracha que um guarda muni-
cipal efetuou à queima-roupa (neste mo-
mento, Freitas mostra a cicatriz na mão
esquerda). Já tomei tiro nas costas, fui
diversas vezes agredido por policiais. E,
claro, por ser advogado e mestre em Di-
reito Penal, eu faço valer os meus direi-
tos fundamentais, como o direito de ir e
vir, e de permanecer em locais públicos.
Por isso, tenho tantas anotações por de-
sacato e desobediência.

 
CC: O senhor não sofreu qualquer
condenação, mas o deputado Arruda
o acusa de ter envolvimento com o
crime organizado, com o PCC. É uma
acusação grave. Como seus colegas
na Assembleia se portam diante des-
se tipo de infâmia?

 
RF: Vivo num ambiente de hostilidade
generalizada. Os deputados, de modo ge-
ral, se incomodam com a minha presen-
ça, porque sou voto vencido, mas não me

abalo. Fui um dos poucos parlamentares
que resistiram, por exemplo, ao escân-
dalo da venda da Copel, uma privatiza-
ção repleta de irregularidades, e a outros
conchavos políticos que acobertam casos
de corrupção. Vim da Câmara Municipal
já com essa fama, de quem incomoda os
que estão no poder. E estes, por sinal, se
satisfazem com as acusações levianas
de Arruda. É uma forma de me deslegiti-
marem, atribuindo rótulos e estereótipos
para me diminuir perante a sociedade.

 
CC: Em maio, o senhor foi o único
passageiro retirado de uma aerona-
ve no aeroporto de Foz do Iguaçu, pa-
ra ser revistado pela Polícia Federal. O
que motivou essa abordagem?

 
RF: Esse episódio foi de um racismo gri-
tante. Faltavam poucos minutos para o
meu embarque e passei rapidamente pe-
la fila do raio X, mas reparei que uma fun-
cionária do aeroporto ficou desconfiado e

me olhou de cima a baixo. Ela pediu para
eu passar novamente e a máquina não api-
tou. Então, ela me deixou passar, mas não
tirou os olhos de mim. Deve ter achado que
eu era traficante, sei lá. Quem é negro sabe
muito bem o que significa aquele olhar. En-
trei no avião, guardei minha mochila e já
estava acomodado, quando um comissário
me informou que havia policiais federais
na porta do avião. Fui até eles, preocupado
em perder meu voo. Só fiz questão de regis-
trar a abordagem em vídeo com meu celu-
lar. Os agentes fizeram uma revista com-
pleta, eu com as mãos na nuca, as pernas
abertas. Quem é preto como eu sabe como
é, temos pós-graduação em tomar geral.
Quando um deles viu os meus documen-
tos, se espantou: “O senhor é deputado?”
Depois disso, repetiu umas cinco ve-
zes que a abordagem era “aleatória”.

 
CC: No voo do senhor, havia muitas
pessoas negras?

 
RF: Só tinha pessoas brancas. Coinci-
dentemente, a amostra aleatória pegou
o único passageiro negro. Essas coinci-
dências acontecem muito no Brasil.

CARTA CAPITAL   

  

 

 

 

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