Enquanto a polícia brinca de gato e rato com os frequentadores da cracolândia, os crimes disparam na região e atiçam os milicianos
Por Mariana Serafini e Rodrigo Martins .
N o rescaldo das violentas in-
tervenções das forças de
segurança para dispersar
os frequentadores da Cra-
colândia, os dependentes
químicos passaram, nas
últimas semanas, a reta-
liar com arrastões em co-
mércios e depredação de veículos, até mes-
mo de viaturas policiais. A prefeitura e o
governo do estado, sócios na cruzada re-
pressiva, atribuem os ataques ao alegado
êxito no combate ao narcotráfico, um in-
cômodo para os líderes do crime organi-
zado. Já os usuários de drogas, protago-
nistas dos saques, dizem estar cansados
de apanhar à toa, sem reação. Não impor-
ta quem tem razão. Esse conflito perma-
nente só aumenta a sensação de insegu-
rança da população, acuada por uma on-
da de violência jamais vista naquela área.
Enquanto a polícia brinca de gato e ra-
to com os dependentes químicos, os cri-
mes aumentaram de forma assustadora
nos dois distritos policiais que cobrem a
região. Desde a deflagração da Operação
Caronte, em junho de 2021, os roubos tri-
plicaram e os furtos cresceram 244% no
perímetro do 3º DP, de Campos Elísios.
Na área aos cuidados do 77º DP, de San-
ta Cecília, os roubos tiveram alta de 89%
e os furtos, 41,5%, segundo dados da Se-
cretaria de Segurança Pública do estado,
que divulga as ocorrências mensais de ca-
da delegacia (gráficos às págs. 12 e 13).
Quem acompanha o problema de perto
garante: a onda de assaltos não é obra dos
frequentadores da Cracolândia, mas de
quadrilhas especializadas em tomar ce-
lulares e raspar as contas bancárias das
vítimas pelos aplicativos do aparelho. Há
tempos os moradores se queixam da atu-
ação da temida gangue da bicicleta. A po-
lícia paulista parece, porém, ocupada de-
mais com a urgente tarefa de conduzir a
procissão de dependentes envoltos em co-
bertores de uma rua para outra. Não bas-
tasse, milicianos passaram a assediar os
comerciantes da região com a cobrança
de uma “taxa de proteção”.
A prova cabal do fracasso da política
de dispersão dos usuários, inaugurada
por Gilberto Kassab em 2012 e replicada
por sucessivos governos, foi a confissão
feita pelo governador Tarcísio de Freitas,
do Republicanos, na terça-feira 18. Ele ad-
mitiu o que a prefeitura cogita há tempos,
permitir a reconcentração dos usuários
sob a ponte Governador Orestes Quércia,
conhecida como Estaiadinha, no Bom Re-
tiro. “Lá, eu consigo deixá-los um pouco
mais afastados da área residencial e da
área comercial. Vamos ver se a estratégia
vai dar certo.” Após a repercussão negati-
va, o prefeito Ricardo Nunes, do MDB, dis-
se que houve um “mal-entendido”. O aten-
dimento aos usuários será direcionado ao
Bom Retiro, mas o fluxo “tem dinâmica
própria”, não há como transferi-lo.
Trata-se de mais uma iniciativa fada-
da ao fracasso, avalia Raquel Rolnik, pro-
fessora da Faculdade de Arquitetura e Ur-
banismo da USP. Desde os anos 1980, re-
memora a urbanista, existem iniciativas
do governo do estado e da prefeitura para
abrir uma nova frente de expansão imo-
biliária na região da Luz, o que não ocor-
reu por uma série de fatores, a começar
pela estrutura fundiária do local, bastan-
te fragmentada. A presença de dependen-
tes químicos, de pessoas em situação de
rua e de trabalhadores empobrecidos,
que viviam em pensões e cortiços, sem-
pre foi vista como empecilho para o pro-
jeto. Emerge, então, o conveniente discur-
so da “guerra às drogas”, espécie de car-
ta braca para a polícia agir à margem da
lei na expulsão dos indesejáveis. “Mesmo
com todo o aparato repressivo, a política
de dispersão fracassou, só fragmentou os
grupos de usuários, que depois voltam a se
reagrupar”, observa Rolnik. “Agora, o go-
vernador fala em levar essas pessoas pa-
ra outro lugar, mas não com o objetivo de
tratá-las. A ideia é varrer o problema para
debaixo da ponte, literalmente.”
Quem circula pela região espanta-se
com a quantidade de comércios fechados.
Até mesmo as lojas da Rua Santa Ifigênia,
tradicional ponto de comércio de eletrôni-
cos, estão sucumbindo. “Quando os usuá-
rios estavam concentrados, todo mundo
sabia onde estavam, eventualmente sur-
gia algum problema, mas nada compara-
do com o que vivemos hoje. Essa horda de
gente sendo levada para lá e para cá assusta
as pessoas”, desabafa José RobertoCheda,
dono de lojas de equipamentos de som des-
de 1975. Segundo ele, o policiamento au-
mentou, mas não intimida mais os bandi-
dos. “Fui o primeiro lojista a contratar se-
gurança particular, há mais de 30 anos.”
Aproveitando-se do clima de
insegurança, milicianos pas-
saram a competir com os
serviços privados de segu-
rança. Após uma denúncia
da Controladoria-Geral do
Município, o Ministério Público paulis-
ta abriu uma investigação para apurar a
conduta do guarda civil metropolitano
Elisson Assis, apontado como chefe de
uma milícia que vendia proteção a comer-
ciantes. Outros seis agentes da corporação
foram afastados de suas funções por sus-
peita de envolvimento. Com a condição
de ter a identidade preservada, um segu-
rança particular confirmou a atuação dos
concorrentes fardados. “Outro dia, quan-
do aquele GCM caiu em flagrante, arman-
do esquema de extorsão, a turma dele veio
para cima de mim”, conta. “Tentaram me
levar preso para dar um apavoro.”
Em um ponto do fluxo mais afastado,
com poucos usuários, um deles aproxi-
ma-se da repórter de CartaCapital por-
que havia sido alertado sobre a presen-
ça de “gente estranha”. “Aqui é perigoso,
você está na elite do crack, onde estão as
maiores pedras, os traficantes mais res-
peitados, é melhor dar o fora”, ameaçou.
Depois do primeiro contato conturbado,
topou uma conversa, longe da vista dos de-
mais. Durante a caminhada pela Rua dos
Gusmões, o rapaz cumprimentou vários
funcionários de lojas. “Aquele ali é segu-
rança, aquele lá é da polícia, ganha por fo-
ra”, entrega um a um. “Esta guerra é inte-
ressante para as polícias, cada qual quer
dominar uma área e faturar”. Segundo
ele, a “limpeza” custa caro aos proprie-
tários, mas para o tráfico nada mudou.
“Agora, os traficantes só têm mais mulas.”
Foi numa dessas aventuras que Letícia
de Souza da Silva “caiu”. “Fui presa pas-
sando dez pedras, mas a polícia queria
mesmo era a traficante, que se safou”, ex-
plica. Levada para o Centro de Detenção
Provisória Feminino de Franco da Rocha,
dois dias depois foi liberada via pagamento
de fiança, e voltou para a Cracolândia, on-
de vive há quase oito anos. Diferentemen-
te de outros usuários, ela é avessa à con-
vivência com o grupo. Prefere manter-se
afastada, em ruas próximas das maiores
concentrações. “Se estou sozinha, é sua-
ve. Mas se tem mais dois ou três comigo, a
polícia já vem dar enquadro. Como se eles
não soubessem quem são os traficantes.”
Enquanto Freitas silencia diante do
fracasso da gestão da segurança pública
no Centro de São Paulo, o prefeito Nunes
parece redobrar a aposta na repressão.
Após ser rebaixado de posto na admi-
nistração municipal, Alexis Vargas, en-
ão secretário de Projetos Estratégicos
da prefeitura e responsável pela coorde-
nação dos trabalhos na Cracolândia, pe-
diu demissão. Em seu lugar, Nunes esca-
lou o linha-dura Edsom Ortega, que che-
gou a proibir a distribuição de marmitas
a pessoas em situação de rua quando co-
mandou a pasta de Segurança Urbana na
gestão de Kassab.
Um ano atrás, Vargas defendia com
afinco a dispersão dos usuários da Cra-
colândia para favorecer o “tratamento
humanitário prestado pela prefeitura”.
O crime organizado, argumentou em ar-
tigo publicado na Folha de S.Paulo, não co-
mandava apenas a distribuição de drogas
na região, também estava por trás de estu-
pros e homicídios cometidos no fluxo. Se-
gundo o secretário, a abordagem em gru-
pos menores seria mais segura para pro-
fissionais da saúde e da assistência social.
Por outro lado, para dispersar os usu-
ários, policiais e agentes da GCM sempre
primaram pelo uso excessivo da força, ob-
serva o psiquiatra Leon Garcia, que atua
no Centro de Atenção Psicossocial da Sé,
com um público semelhante ao da Cra-
colândia. “No ano passado, um homem foi
baleado e morto em meio às ações de dis-
persão. Há muitos relatos e registros em
vídeo de ações violentas da polícia, inclu-
sive contra ativistas que atuam com pro-
gramas de redução de danos”, lembra.
“Essa atuação repressiva esgarça todos
os vínculos que aqueles indivíduos pode-
riam ter com políticas públicas do Estado.
Eles ficam desconfiados, arredios. É um
contrassenso. Essas operações ocorrem
há mais de dez anos e nunca deram certo.”
De fato, a Operação Caronte
– nome emprestado do bar-
queiro de Hades, que segun-
do a mitologia grega carrega-
va a alma dos mortos – é niti-
damente inspirada na fracas-
sada Operação Sufoco, levada a cabo por
Kassab em 2012. Para forçar os frequen-
tadores da Cracolândia a aceitarem a in-
ternação, era necessário impor “dor e so-
frimento”, dizia o então prefeito, sedu-
zido com a ideia de “revitalizar” o bair-
ro da Luz. À época, a Cracolândia esta-
va circunscrita ao quarteirão compreen-
dido entre a Rua Helvétia e as alamedas
Dino Bueno e Cleveland. Somente a pri-
meira parte da promessa foi cumprida:
a Defensoria Pública colecionou denún-
cias de abusos cometidos pelos policiais.
Mas as violentas operações só espalha-
ram o “fluxo” pela região central da cida-
de, e depois os usuários se reagruparam.
Ao assumir a prefeitura dois anos de-
pois, o petista Fernando Haddad lançou
o programa De Braços Abertos, com uma
perspectiva radicalmente distinta. Inspi-
rada em exitosas experiências internacio-
nais do housing first, política pública que
prevê a oferta de moradia digna em primei-
ro lugar, a iniciativa alocou os dependen-
tes químicos em quartos de hotéis e pen-
sões no Centro, além de ofertar vagas de
trabalho em serviços de zeladoria, como
varrição de ruas. Durou pouco. Haddad
não conseguiu se reeleger e, em 2017, o tu-
cano João Doria retomou a política de dis-
persão dos usuários, com a demolição d
ca, o prefeito chegou a celebrar o “fim da
Cracolândia”, que ao cabo se reagrupou na
Praça Princesa Isabel e voltou a aglomerar
milhares de dependentes químicos.
“Os críticos dizem: ‘Ah, mas o De Bra-
ços Abertos também não resolveu nada’.
Na verdade, ele não teve tempo de resol-
ver. Para implantar um programa desses,
você demora sete, oito anos”, pondera o
psiquiatra Dartiu Xavier, professor e pes-
quisador da Unifesp, que trabalha há mais
de 40 anos com dependentes químicos. “À
época, vi pessoas interromperem o uso de
crack ou reduzirem muito o consumo só
por ter uma vaga em pensão e uma ativi-
dade laboral. Imagine a força disso: um
dependente abandonar o vício sem pas-
sar por uma consulta médica.”
Mas nem tudo eram flores
no programa de Haddad.
Parte das vagas em ho-
téis e pensões, descobriu-
-se mais tarde, foi subloca-
da pelos dependentes quí-
micos. Além disso, constatou-se a pre-
sença do tráfico de drogas e da prostitui-
ção em algumas unidades, lembra Clarice
Madruga, pesquisadora da Unifesp e co-
ordenadora do Levantamento das Cenas
de Uso das Capitais, o Lecuca. “O housing
first, como qualquer outro programa de
moradia para dependentes, tem como
contrapartida a adesão ao tratamento. Em
vários países são realizados testes toxico-
lógicos para identificar eventuais recaí-
das e pensar em estratégias para evitá-las.
Esse monitoramento é importante para
orientar o trabalho terapêutico e moti-
vacional. Já o De Braços Abertos não exi-
gia qualquer compromisso dos usuários.”
Garcia, que à época chefiava a Secre-
taria de Políticas sobre Drogas do Minis-
tério da Justiça, observa que houve uma
evolução dos hotéis sociais ao longo da
gestão de Haddad. “No último ano, todos
eles tinham uma equipe técnica. Um de-
les, o de maior número de vagas, conta-
va até com um GCM à paisana na porta-
ria para impedir a entrada do tráfico e da
prostituição”, diz. “A única condição colo-
cada aos moradores era a visita periódica
de um agente de saúde e um agente social.”
Diante do cenário de guerra no Cen-
tro da cidade, Nunes passou a vender as
“internações compulsórias” como solu-
ção. Pura bravata, não compete a políti-
cos definir quem deve ou não ser interna-
do. Tanto a internação involuntária, a pe-
dido de um familiar, quanto a internação
compulsória, por determinação judicial,
dependem do aval de um médico, a quem
cabe avaliar a real necessidade da medi-
da. Além disso, a própria prefeitura infor-
mou, em resposta aos questionamentos de
CartaCapital, que foram feitos 910 enca-
minhamentos para internação voluntária
nos últimos 12 meses. Ou seja, a política de
impor “dor e sofrimento” aos frequenta-
dores da Cracolândia parece ter dado al-
gum resultado, com dependentes procu-
rando tratamento por decisão própria.
A administração municipal não soube,
porém, informar quantos desses pacien-
tes receberam alta, quantos voltaram a
viver nas ruas e, mais importante, quan-
tos retornaram ao vício. A razão é simples:
ninguém monitora isso. Segundo espe-
cialistas, nem sequer é possível rastrear
os prontuários, pois muitos pacientes es-
tão indocumentados e usam nomes falsos.
O cerne da questão é que as internações
são pouco efetivas, observa Xavier. “Exis-
tem vários estudos sobre esse tema, em lu-
gares diferentes, com populações diferen-
tes, é até difícil compará-los. Mas todos
indicam um porcentual de recaída altís-
simo, superior a 90%, em até três meses
após a alta. Em algumas pesquisas, essa
taxa chegou a 95%. No caso do crack, não
há sequer uma diferença significativa do
êxito de internações voluntárias ou força-
das”, observa. “Por que isso ocorre? O indi-
víduo é retirado do ambiente dele, coloca-
do numa clínica ou hospital psiquiátrico.
Enquanto estiver lá, não fará uso da dro-
ga, até por estar em cárcere médico. Mas,
ao receber alta, se retornar para a situa-
ção de miséria e exclusão social em que vi-
via, dificilmente ele vai se manter sóbrio.”
Madruga acrescenta que o acolhimen-
to em comunidades terapêuticas não pode
ser confundido com internação, até por-
que elas não são reconhecidas como equi-
pamentos de saúde, e sim de acolhimento
social, que oferece um local de moradia de
longa permanência, com foco na reinser-
ção social após a fase inicial de tratamen-
to, que seria a desintoxicação. “A política
atual de regulação exige que esses equi-
pamentos recebam pacientes sem condi-
ções clínicas de saúde que exijam monito-
ramento médico, e sugere a manutenção
do acompanhamento pela unidade básica
de saúde ou Caps do seu território.”
Essas instituições continuam, porém,
malvistas por parte dos profissionais da
saúde após fiscalizações do Conselho Fe-
deral de Psicologia apontarem toda a sorte
de abusos, incluindo trabalhos forçados,
privação de liberdade, contenção química
dos internos e agressões físicas. “Uma re-
solução da Anvisa, a RDC 29, de 2011, esta-
beleceu parâmetros para a atuação dess
quipamentos. No estado de São Paulo, a
maior parte deles segue rigorosamente a
lei, a ponto de reivindicar a definição de
‘Comunidades Terapêuticas Legalmente
Constituídas’, para se distinguir daquelas
que promovem esses horrores. Parece-me
uma alternativa interessante, desde que
o Poder Público as fiscalize com rigor.”
Oenrosco é que boa parte de-
sas comunidades terapêuti-
cas está em bairros afasta-
dos ou em cidades do interior.
“Felizmente, agora, a prefeitu-
ra passou a investir em hotéis
sociais na região central. Não faz mesmo
sentido empurrar essas pessoas para a pe-
riferia. Elas relutam em sair para longe, já
estão vinculados ao território”, diz Garcia.
Enquanto Nunes celebra o fim das
grandes aglomerações da Cracolândia,
indicador que flutua ao sabor das opera-
ções policiais na região, Madruga diz ser
mais conveniente analisar a taxa de in-
fluxo, isto é, de novos frequentadores da
cena de uso. “Em 2017, após aquela mega-
operação do Doria, o número de usuários
despencou de cerca de 2 mil para 200. À
época, especulou-se que aquele seria o nú-
cleo duro, que jamais iria abandonar a re-
gião, mas fomos a campo e constatamos
que a maioria deles era de novos frequen-
tadores.” De acordo com o Lecuca, a ta-
xa de influxo, que chegou a 46% em 2016,
caiu para 20% no ano passado. “Ainda as-
sim, é um porcentual altíssimo. Se o fluxo,
hoje, tem cerca de mil usuários, pode ga-
nhar 200 novos frequentadores até o fim
do ano. Precisamos reforçar o trabalho de
prevenção em todos os níveis, tanto para
evitar o consumo de adolescentes, que au-
menta as chances que a pessoa desenvol-
va transtornos aditivos mais graves, quan-
to prevenção secundária, que seria a in-
tervenção precoce em casos em que já se
identifica o abuso ou a dependência den-
tro das UBSs e evita que agrave a ponto de
levar uma pessoa a mudar para uma cena
de uso. Não faz sentido esperar o agrava-
mento do quadro clínico para intervir.” •
CARTA CAPITAL
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