May 28, 2023

A historia dos vencidos

 

  

 Procurei um velho amigo
na Avenida Paulista e ele não estava
mais lá. Registro aqui a sua existencia. 

 P O R  M A R I A  R I TA  K E H L

Recentemente, fui visitar
meu amigo na Avenida
Paulista e ele não estava lá.
Ninguém, ao redor de seu
endereço, sabia seu para-
deiro. Tinha desaparecido da minha pai-
sagem tão familiar.

Acontece que seu endereço não era o
de um prédio ou de uma loja. Era uma
barraca na calçada, dessas que uma ONG
teve a excelente ideia de distribuir para
moradores de rua. Meu amigo, cujo nome
nunca me ocorreu perguntar, não mora-
va só. Como também acontece com mo-
radores de rua, vivia com seus cachorros.
Cinco. Só me lembro do nome de uma de-
las: Vaquinha. Hoje, percebo, consterna-
da, que também nunca perguntei o nome
do próprio dono dos cãezinhos! Quando
eu passava por ali, pedia dinheiro ape-
nas para comprar comida para os bichos.
Mas, além de ajudá-lo com a ração barata
dos seus bichinhos, eu também compra-
va, no bar atrás de sua barraca, um pas-
tel de carne e um de frango. A exclama-
ção de prazer com que ele recebia o lan-
che – ôôô dona! – evidenciava que, ape-
sar de pedir ajuda apenas para alimentar
seus cachorros, ele também tinha fome.
Na triste ocasião em que não o encon-
trei, perguntei do seu paradeiro ao dono
do bar. Me disse que a polícia tirou a bar-
raca e levou os cachorros para um abri-
go da prefeitura, porque o rapaz os tinha
deixado três dias trancados na barraca,
sozinhos. Por alguns dias, sumiu.

 
Não acredito que fosse descaso. Para
mim, era óbvio o apego aos cachorros.
Pode ter adoecido e ido parar em um hos-
pital público – onde, talvez, tenha ficado
alguns dias num corredor à espera de as-
sistência, não por desleixo dos médicos,
mas por falta de leitos disponíveis. Po-
de ter sido preso, por puro preconceito
da polícia. Imaginei a desolação de vol-
tar para “casa” e não achar nem a barra-
ca nem sua família canina.

 
Não subestimemos o apego dos mora-
dores de rua por seus cães. São sua com-
panhia, seus defensores e, nas noites de
inverno, também são capazes de aque-
cê-los. Entendo que seu pedido de aju-
da para comprar comida para eles fosse
sincero, não apenas um truque para pe-
dir esmolas. “O estômago roncava, mas
não deixou de dividir o pastel com aque-
le cachorro que era a desgraça de sua vi-
da”, diz um lambe-lambe fixado em um
poste da Vila Madalena. Assim é.


Não perdoo a
insensibilidade,
com cheiro de
eugenia, do prefeito
Ricardo Nunes

 
Tomei um táxi e passei bem devagar,
na ida e na volta, debaixo do viaduto que
liga a Doutor Arnaldo à Paulista. As cal-
çadas ali estão todas ocupadas pelos mo-
radores de rua que se protegem do frio e
da chuva. Ele não estava lá. Fiquei triste
como se tivesse perdido contato com um
parente próximo, com um velho amigo.
Faz pouco soube que o desmonte das
barracas dos moradores de rua tornou-se
uma política oficial imposta pelo prefei-
to-coxinha Ricardo Nunes. Uma cruel-
dade gratuita. Que mal fazem eles? Os
moradores de rua não são bandidos. Por
que o prefeito filiado ao MDB optou por
uma “limpeza étnica” na cidade?

 
Étnica, sim, pois a maioria dos muito
pobres costuma ser de negros, descenden-
tes dos escravos que, no Brasil, foram jo-
gados nas ruas sem nenhum recurso pa-
ra refazer suas vidas, depois da abolição.
Os Estados Unidos têm uma conside-
rável parcela da população composta de
negros de classe média – um deles che-
gou a presidente da república – por con-
ta da política que, em alguns estados do
Sul, concedeu um pedaço de terra e um
animal de tração para as famílias liber-
tas. Aqui, foram simplesmente jogados
nas ruas. O senhor de escravos que man-
tinha, sob uma dieta de fome, cem afri-
canos trabalhando para ele sob açoite, ao
ser obrigado a contratá-los escolheu os
mais fortes e despejou o “resto” na rua.
Não por acaso, a maior parte da popula-
ção pobre é composta de descendentes
de africanos. Não são vagabundos. São os
órfãos da abolição.

 
Volto ao prefeito. Será que pensa que
roubando – esse é o termo – as barracas

legitimamente concedidas aos morado-
res de rua, eles desaparecerão das calça-
das? Para onde iriam? Continuarão nas
calçadas, evidentemente. Só que com
frio. Debaixo da chuva, que, quando vem
forte, não tem marquise que proteja.
Por que me valho deste espaço pa-
ra contar a história de um morador de
rua anônimo? Bem, como escreveu o fi-
lósofo judeu-alemão Walter Benjamin
em suas Teses Sobre o Conceito de Histó-
ria, a história oficial refere-se, invaria-
velmente, aos fatos e bravuras cometi-
dos pelos vencedores. Os reis, os vence-
dores de batalhas, os heróis. É com es-
tes que os historiadores, que ele chama
de “historicistas”, se identificam. “Os
que num dado momento dominam”,
escreveu, “são os herdeiros de todos os
que venceram antes. A empatia com o
vencedor beneficia, sempre, portanto.
esses dominadores. Isso diz tudo para
o materialista histórico. Todos os que
até hoje venceram participam do cor-
tejo triunfal, em que os dominadores de
hoje espezinham os corpos dos que es-
tão prostrados no chão.”

 
Quem contaria a história dos vencidos?
É necessário contar a história deles, pois
a dos vencedores está nos livros, nas te-
ses, nas homenagens, nas salas de aula. Se
meu amigo sumiu – talvez eu nunca mais
o veja –, que ao menos sua existência anô-
nima fique registrada aqui. Uma vida anô-
nima e injustiçada. Imagino como esta-
rá triste longe de seus cachorros. Imagino
como os cãezinhos estarão tristes longe
dele. E não perdoo, como espero que os lei-
tores desta coluna também não perdoem,
a insensibilidade “limpinha”, cheirando
a eugenia, do prefeito Ricardo Nunes.
CARTA CAPITAL  

 

 

 

 

 

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