April 8, 2023

O coronel do capital

 

 

 

 

 

 Arthur Lira sacode Brasília com ameaças e chantagem. Seu poder está a serviço do lobby empresarial contra Lula


Por André Barrocal

 

Em 9 de março, Lula
e Arthur Lira come-
ram churrasco e to-
maram cerveja em
um jantar às escon-
didas na casa do mi-
nistro da Comunica-
ção Social, Paulo Pimenta, em Brasília.
Três dias antes, Lira, presidente da Câ-
mara, havia dito na Associação Comer-
cial de São Paulo que o governo não tinha
votos para aprovar leis no Congresso. Até
a noite do churrasco, Lula e Lira haviam
se encontrado em duas ocasiões. A pri-
meira, na residência oficial do deputado,
em 9 de novembro, pouco depois da dura
eleição do petista contra Jair Bolsonaro.
 
A outra, em 18 de dezembro, um domin-
go, no hotel em que Lula morava antes da
posse. No jantar, o presidente da Repúbli-
ca queria entender a cabeça do parlamen-
tar e quebrar o gelo. Até convidou-o pa-
ra a viagem à China, adiada em razão de
uma pneumonia do mandatário.
 
Quando Lula e Lira tiveram o quarto
tête-à-tête, em 24 de março, no Palácio
da Alvorada, a residência oficial da Pre-
sidência, havia fogo no lugar do gelo. E
não exatamente por causa de um entre-
vero específico entre os dois. A chama
espalhava-se por Brasília graças a uma
crise criada pelos pendores imperiais do
deputado. Pendores apontados publica-
mente por Lula em maio do ano passado,
ocasião em que Lira, do PP, reagira as-
sim: “Ele não me conhece, nunca conver-
sou comigo, nunca tomou um café, nunca
bateu um papo, nunca tive o prazer ou o
desprazer de estar com ele”. Com Bolso-
naro, afirma o senador Rogério Carva-
lho, do PT de Sergipe, “não havia gover-
no, e Lira mandava. Agora tem governo,
e ele quer continuar mandando. Não vai”.
Vontade de mandar que tem a “chanta-
gem” como método, segundo outro sena-
dor, o emedebista Renan Calheiros, de-
safeto de Lira em Alagoas.
 
Em uma espantosa entrevista coleti-
va em 23 de março, Lira deixou claro que
não quer seguir a Constituição e que o go-
verno pagará o pato, se sua vontade não
for feita. “A Constituição lá de 2002 não
atende as práticas de evolução do siste-
ma de votação”, disse. O incêndio gerado
por ele tem como ponto de partida o mo-
do de votação das medidas provisórias,
normas que o governo baixa para valer
de imediato, antes do aval parlamentar.
Há 20 anos a Constituição determina
que as MPs sejam examinadas primei-
ro numa comissão com deputados e se-
nadores, em número igual, e depois nos
plenários da Câmara e do Senado. A pan-
demia fez o Congresso abandoná-las, pa-
ra evitar aglomeração. Tudo chancelado
pelo Supremo Tribunal Federal. As MPs
seriam votadas apenas nos plenários: no
da Câmara e em seguida no do Senado.
Lira ganhou poder, pois escolhe o relator
que cuidará da medida até quase o fim do
prazo de validade. O Senado vota, não ra-
ro, na bacia das almas. O deputado quer
que o trâmite continue assim.
 
Um dia antes da entrevista de Lira, o
presidente do Senado e também do Con-
gresso, Rodrigo Pacheco, do PSD de Mi-
nas Gerais, tinha decidido que o rito anti-
go voltaria a valer. Como a pandemia aca-
bou, era o lógico a se fazer. A proposta ti-
nha partido de Calheiros. A decisão, dis-
se Lira, “não vai andar um milímetro na
Câmara dos Deputados, e o prejuízo vai
ser para o governo”. Sem votação de MPs,
estarão em risco o Bolsa Família de 600
reais e o renovado programa de mora-
dias Minha Casa Minha Vida, entre ou-
tros. Quando foi a Lula pela última vez,
Lira queixou-se de Pacheco e do governo.
O senador também foi ao petista, em 28
de março, antes de bater o pé: as comis-
sões das MPs voltarão. Desde fevereiro,
ele tentava convencer o colega a aceitar o
rito antigo. O deputado repete que os líde-
res partidários na Câmara não aceitam
Em uma viagem com Lula à fluminen-
se Itaguaí em 23 de março, Calheiros dis-
se ao presidente que ele precisa conversar
mais, pois, no Congresso, quem é lulista
de verdade nota forças contrárias dispos-
tas a criar dificuldades. De acordo com
o senador, a declaração de Lira de que o
governo não tinha voto para aprovar leis
era uma maneira de enfraquecer o gover-
no, para que o deputado pudesse “achacar
mais”, ou seja, cobrar mais cargos e favo-
res. Na bancada do PT na Câmara, alguns
deputados avaliam como um erro o presi-
dente da República ter lavado as mãos na
reeleição de Lira, apoiada pelo partido.
Calheiros e o senador Davi Alcolumbre,
do União Brasil do Amapá, ambos acusa-
dos pelo presidente da Câmara de serem
os cérebros por trás de Pacheco, topavam
articular um bloco partidário para en-
frentar Lira na eleição. A ideia não pros-
perou à época. Um bloco desse tipo, com
142 deputados, incluídos os parlamen-
tares do Republicanos, sigla que apoiara
Bolsonaro na campanha, acaba de vin-
gar. Derrota de Lira.
 
Os articuladores políticos
do Palácio do Planalto
tentam agir com frieza
diante do poder do ala-
goano. O governo, diz um
deles, irá pouco a pouco disputar com o
deputado para ver quem tem mais as-
cendência na Câmara. Uma guerra fria
que ficará visível quando houver vota-
ções importantes nas próximas sema-
nas. Nesse cenário, serão fundamentais
os ministros nomeados para contemplar
certos partidos, como o União Brasil de
Alcolumbre, à frente de três pastas. “Não
vai ser o Arthur Lira que vai ajudar o go-
verno”, afirma esse articulador.
 
Não é que Lira não vai ajudar. Em al-
guns temas caros ao Palácio do Planal-
to, como Banco Central, Eletrobras e leis
trabalhistas, o parlamentar estará na
trincheira oposta. Idem em um assunto
sensível para o ministro da Fazenda, Fer-
nando Haddad, o “tribunal dos impos-
tos”, o Carf. Lira é um coronel do capi-
tal, da mesma escola de Eduardo Cunha,
algoz de Dilma Rousseff. Cunha ganhou
poder ao encampar no Congresso todo ti-
po de interesse empresarial contrariado
pela petista. Tornou-se, na prática, lobis-
ta do setor privado, em troca de, digamos,
recompensas. Lira é igual. “O Arthur é
um craque. A gente conheceu o Eduardo
Cunha, mas ele é melhor”, comentou no
fundo do plenário da Câmara o deputado
Vanderlei Macris, do PSDB de São Pau-
lo, com o colega paulista Adilson Barro-
so, do PL, às 16h50 de 29 de março, con-
forme testemunhou CartaCapital.
 
Lira é escudeiro do inimigo público n°
1 de Lula, o presidente do Banco Central,
Roberto Campos Neto. Deputado e ban-
queiro são praticamente uma coisa só. A lei
da independência do BC foi um cartão de
visitas de Lira ao “mercado”, modo de fir-
mar uma aliança com a turma. Ele elegeu-
-se para chefiar a Câmara pela primeira
vez em fevereiro de 2021, ao bater o candi-
dato de Rodrigo Maia, à época presidente
da Casa. Maia é egresso da banca, agora es-
tá à frente da Confederação Nacional das
Instituições Financeiras (em 16 de março,
reuniu-se com o chefe de gabinete de Lula).
Nove dias após a vitória de Lira, os depu-
tados aprovavam a independência do BC.
 
O alagoano fala com frequência com
Campos Neto. Quando surgiu na mídia,
em 21 de março, a notícia de que o gover-
no teria escolhido os substitutos de dois
diretores do BC cujos mandatos acaba-
ram em fevereiro, o banqueiro ligou para
o deputado para se queixar de que não ti-
nha sido ouvido. Estava bravo em parti-
cular com o suposto escolhido para a es-
tratégica Diretoria de Política Monetária,
o economista Rodolfo Fróes. Este, aliás,
desagradou gente no PT, por ter doado di-
nheiro ao Partido Novo em 2018 e ter sido
sócio dos bilionários Jorge Paulo Lemann,
Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles,
acionistas majoritários da caloteira Lojas
Americanas. Lira relatou o telefonema de
Campos Neto a um congressista petista.
Depois de Lula lançar a campanha con-
tra o presidente e os juros altos do BC,
aliados do petista ensaiaram convocar
Campos Neto para prestar contas à Câ-
mara. Lira reclamou da iniciativa com o
líder da bancada da legenda, Zeca Dirceu,
a quem pediu para o governo maneirar
nas críticas. Em uma palestra em 15 de fe-
vereiro no banco BTG, condenou a forma
“incisiva” com que o governo tratava o ne-
to de Roberto Campos e deve ter emocio-
nado a plateia ao declarar: “Não vejo ne-
nhuma possibilidade de mudança com re-
lação à independência do Banco Central”.
 
O BTG e um dos sócios do banco, An-
dré Esteves, ilustram as relações de Li-
ra com a Faria Lima. Em 21 de outubro
de 2021, quatro auxiliares do então mi-
nistro da Economia, Paulo Guedes, demi-
tiram-se, Lira ligou para Esteves, a fim
de saber o que o “mercado” achava. Em
maio de 2022, o deputado participou de
um evento do BTG em Nova York. Lá, co-
mentou que a disputa entre Lula e Bol-
sonaro na eleição não mudaria uma coi-
sa: “O Congresso que for eleito em outu-
bro, eu não tenho dúvidas, será um Con-
gresso de centro-direita”. Acertou. Esse
mesmo Parlamento não vai rever a refor-
ma trabalhista, Lira avisou também, ao
contrário da promessa eleitoral de Lula.
 
Um analista político em
Brasília de uma dessas
firmas do “mercado” diz
que o sistema financeiro
gosta de Lira porque ele
é um freio liberal aos planos do lulismo,
embora não confie no deputado. O alago-
ano topa dar rapidez à votação do plano de
controle de gastos preparado por Haddad,
pois a banca quer. E também à reforma
tributária que tratará de impostos cobra-
dos no consumo, outra bandeira do mi-
nistro da Fazenda. O que não significa es-
tar ao lado de Haddad na batalha contra
o “tribunal dos impostos”. Ao contrário:
faz lobby pelo empresariado.
 
O Carf é um paraíso para grandes em-
presas devedoras. As confederações patro-
nais indicam metade dos árbitros, uma ja-
buticaba centenária (a outra metade são
auditores fiscais nomeados pelo governo).
Em 2020, uma lei garantiu que, em caso
de empate nos julgamentos, a vitória au-
tomaticamente é de quem deve. E o gover-
no não pode recorrer à Justiça. Essa regra
fez explodir os litígios de 600 bilhões para
1 trilhão de reais, graças às causas de gente
graúda. O dispositivo teve o dedo de Lira.
Foi na votação de uma medida provisória
do governo Bolsonaro em 18 de março de
2020. Naquele dia, o deputado Hildo Ro-
cha, do MDB do Maranhão, emplacou na
MP a norma que diz que “o empate é do
caloteiro”. Lira era o líder do “Centrão” e
exigiu do governo a promessa de não a ve-
tar. O deputado Major Vitor Hugo, do PL
de Goiás, era o líder de Bolsonaro, ligou pa-
ra o capitão e obteve o compromisso.
Em 12 de janeiro deste ano,
Lula e Haddad assinaram
uma MP para acabar com
a vitória automática do de-
vedor em caso de empate.
 
Um auditor fiscal terá o voto de minerva
nestes casos, conforme a regra pré-2020.
Com isso, o governo espera arrecadar 50
bilhões de reais neste ano e 15 bilhões
anuais a partir de 2024. No dia seguin-
te à publicação da MP, começava o lobby
contrário. Lira foi acionado pelo grupo
empresarial Esfera Brasil, comandado
por João Camargo, hoje à frente da CNN
Brasil. O mesmo grupo ofereceu um jan-
tar ao deputado em Brasília em 3 de feve-
reiro para celebrar sua reeleição à presi-
dência da Casa. No convescote, a filha de
Camargo, Camila, discursou em defesa
do “interesse nacional” e listou o Carf.
Lira abriu as portas da Câmara a gran-
des entidades patronais para que digam
o que quiserem sobre o “tribunal dos im-
postos”. Foi o que comentou duas sema-
nas após o jantar, naquela palestra no
BTG: “O Carf, sim, vai ter uma discussão
própria, o Congresso tem algumas alter-
nativas para que não haja o empate. Tem
algumas associações de grandes empre-
sas que têm tentado subsidiar com as al-
terações legais”. Ele quer ir além e amor-
daçar o “leão” na cobrança de multas.
 
A Eletrobras é outro tema caro a Lula
no qual Lira joga pelo capital. O deputado
espalha em Brasília que o Congresso não
reverterá a privatização. Na campanha,
Lula prometia, se eleito, desfazer a venda,
classificada por ele de “crime de lesa-pá-
tria”. O petista inclina-se pela via judi-
cial. Em 7 de fevereiro, contou em um ca-
fé da manhã com jornalistas que a Advo-
cacia Geral da União “possivelmente” en-
trará na Justiça contra dois pontos da lei
da privatização (“bandidagem”, segundo
o presidente). Um impede o governo de
ter mais de 10% dos votos na empresa,
mesmo com 40% das ações. O outro diz
que se o governo quiser recomprar ações
terá de pagar o triplo do preço. O advo-
gado-geral, Jorge Messias, deve concluir
em abril uma proposta. Foi o que contou
ao deputado Glauber Braga, do PSOL do
Rio de Janeiro, em 2 de março. A propó-
sito: Lira tentou cassar Braga no Conse-
lho de Ética após um bate-boca no ple-
nário no ano passado.
 
Está marcada para 27 de abril uma as-
sembleia de acionistas da Eletrobras. En-
tre estes, há um fundo, o 3G, controlado
por Lemann, Telles e Sicupira. Investido-
res como eles agradecem cada dificulda-
de criada por Lira ao governo. Na assem-
bleia, os acionistas vão votar a propos
de aumento dos ganhos dos diretores e
integrantes do conselho de administra-
ção da companhia. Uma farra, segundo
documento obtido pela reportagem. Um
diretor embolsou no ano passado, entre
salários, bônus e quejandos, 363 mil re-
ais por mês, seis vezes mais do que antes
da privatização. Poderá ganhar 570 mil
se os acionistas deixarem. Um conselhei-
ro recebeu 33 mil, agora levará 187 mil.
Na “bandidagem” citada
por Lula na Eletrobras,
digitais de Lira.
 
Quem cuidou da lei da
privatização na Câmara
foi um neo-aliado, o deputado baiano
Elmar Nascimento, líder do União Brasil,
por designação, aliás, do presidente da
Câmara, em março de 2021. Lira elegera-
-se um mês antes para comandar a Casa,
e Nascimento havia sido útil na campa-
nha. O baiano era filiado ao finado DEM
(hoje União Brasil), sigla que apoiava o
oponente de Lira, Baleia Rossi, do MDB.
Rossi havia sido lançado por Maia, en-
tão no DEM. Nascimento puxou a fila
de traição do partido a Maia. Desde en-
tão, Lira escala-o para missões especiais.
 
Em dezembro passado, o baiano relatou
a mudança na Constituição que permi-
tiu a Lula dispor de alguns bilhões ex-
tras para o Bolsa Família, saúde e educa-
ção, mas cortou pela metade o prazo das
d espesas. Não vale em 2024. Só se hou-
ver nova votação, com todos os “custos”
que a negociação envolve.
 
Em outubro, entre o primeiro e o se-
gundo turno da eleição, Nascimento con-
cedeu uma entrevista ao diário O Estado
de S. Paulo para ameaçar o Supremo, ca-
so a corte acabasse com o famigerado
orçamento secreto, uma das fontes de
poder de Lira. “E quem faz o orçamen-
to do STF? Aí ele vai tirar o orçamento
da gente e a gente vai aceitar? Se tirar o
nosso, a gente tira o deles.” A corte der-
rotou Lira e o segredo em dezembro, por
6 a 5. O voto decisivo partiu de Ricardo
Lewandowski, magistrado afinado com
Lula e prestes a se aposentar. O deputa-
do ficou furioso, por achar que o julga-
mento era obra do petista (era da presi-
dente do Supremo, Rosa Weber, na ver-
dade). Em um papo por telefone com o
deputado Aguinaldo Ribeiro, que é do PP,
mas se dá bem com o PT (foi ministro de
Dilma), esbravejou. E ouviu: “Aceita. Eles
são profissionais”. O telefonema foi rela-
tado pelo paraibano Ribeiro, relator da
reforma tributária, a interlocutores.
 
Lira não tem, porém, muita razão
para se queixar dos tribunais. Está pa-
ra ser convertido em réu por corrup-
ção no Supremo desde novembro de
2020, mas um pedido de vistas do mi-
nistro José Dias Toffoli o mantém a sal-
vo. É um processo nascido após um en-
tão assessor parlamentar ter sido pego
com 106 mil reais cash em um aeropor-
to em 2012. Se virar réu, o deputado res-
ponderá a uma ação penal e não poderá
assumir a Presidência da República na
ausência de Lula e Geraldo Alckmin do
País. Mais: Lira concorreu a deputado fe-
deral por Alagoas nas duas últimas elei-
ções graças a uma liminar que suspendeu
sua condição de ficha suja. Ele foi conde-
nado em 2016 pela Justiça de Alagoas por
ter, como deputado estadual, pagado des-
pesas pessoais com verba da Assembleia
Legislativa. O caso está desde 2020 para-
do no Superior Tribunal de Justiça.
O coronel e o capital agradecem.
CARTA CAÍTAL   
 

 


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