April 10, 2023

Crescer ou crescer

 



O governo coleciona iniciativas positivas,
mas o nó górdio do seu sucesso ou fracasso
será definido pelo incerto rumo da economia
 
P O R A L D O F O R N A Z I E R I 
Embora cem dias não seja
um número cabalístico,
parece que para os gover-
nos assumiu essa dimen-
são. Trata-se de um mar-
co temporal arbitrário
sem que se saiba bem a origem. Pode ter
se originado no “governo dos cem dias” de
Napoleão Bonaparte, de 20 de março a 8
de julho de 1815, quando ele fugiu de Elba
e retomou o governo. Então foi derruba-
do por uma coalizão de países e confina-
do até a morte na ilha de Santa Helena.
Quando Franklin D. Roosevelt lançou, no
centésimo dia de sua gestão, um pacote de
medidas para combater a Grande Depres-
são nos EUA, nos anos 1930, a efeméride
entrou de vez no calendário político.
 
Lula chega aos cem dias de seu terceiro
mandato com avaliações de dois institutos
de pesquisa, o Ipec e o Datafolha. Pela or-
dem, o governo obtém 41% e 38% de bom e
ótimo; 32% e 30% de regular: e 32% e 29%
de ruim ou péssimo. São números aquém
dos dois mandatos lulistas anteriores e do
primeiro mandato de Dilma, mas superio-
res aos de Bolsonaro no mesmo período
de 2019. Os dados apontam para uma con-
clusão ambivalente: não são satisfatórios,
mas também não são desastrosos.

Da mesma forma, refletem duas rea-
lidades igualmente ambivalentes. A pri-
meira é caracterizada pela série de even-
tos negativos que marcam esse período,
quase todos fora da capacidade de inter-
venção do governo: o golpe frustrado de 8
de janeiro, a tragédia dos Yanomâmis, o
desastre em São Sebastião, a violência do
crime organizado em Natal, a revelação
das práticas de trabalho escravo em di-
versas regiões do País, com destaque pa-
ra o caso da Serra Gaúcha, e o assassina-
to da professora em uma escola paulista.
 
Esses eventos carregaram as pautas do
noticiário negativamente, contaminan-
do a percepção da sociedade. O governo
também contribuiu na atração de elemen-
tos de ambiente negativo sobre si. Desta-
cam-se as declarações de Lula sobre Ser-
gio Moro e as investidas de natureza pes-
soal que ele e Gleisi Hoffmann travaram
contra o presidente do Banco Central.
 
O próprio BC, ao manter uma elevada
e injustificável taxa de juros, contribui
para azedar o humor dos brasileiros. So-
ma-se a isto a inflação alta, o desempre-
go persistente, a fome e a miséria, retra-
tadas principalmente pelos moradores de
rua que chegam aos 50 mil na capital pau-
lista. Ruídos causados por decisões equi-
vocadas de alguns ministros acresceram
esses desgastes. Ainda no plano da econo-
mia, somente aos 90 dias de governo hou-
ve uma sinalização clara do que se vai fa-
zer nessa área. A apresentação das linhas
gerais da política fiscal de Haddad abre a
porta para uma virada positiva.
 
O governo contrabalançou os aspec-
tos negativos com uma série de medidas e
iniciativas que geram repercussão posi-
tiva. Destacam-se a decretação da Emer-
gência em Saúde e as medidas de socor-
ro para os Yanomâmis, a união dos Três
Poderes, com a participação dos gover-
nadores, em repúdio à tentativa de gol-
pe de 8 de janeiro, a recomposição de po-
líticas sociais destruídas por Bolsonaro,
como o Bolsa Família, o Minha Casa Mi-
nha Vida, o incentivo à cultura, a valori-
zação do salário mínimo etc.
 
As iniciativas de política externa, com
as viagens aos EUA, Argentina, Uruguai e
China, também produziram saldos posi-
tivos. Lula, com sua diplomacia presiden-
cial, está conseguindo debelar a imagem
negativa e desastrosa, de pária, que o Bra-
sil havia assumido no governo Bolsonaro.
Positivo também é o movimento de su-
peração do mal-estar do governo com os
militares por conta do 8 de janeiro. Para
que esse processo se conclua, é preciso ins-
titucionalizar ordenamentos que coíbam
a participação política dos militares, que
estabeleçam a passagem automática para
a reserva e com quarentena para aqueles
que pretendem seguir a carreira política.
Do mesmo modo, é preciso afastar de vez
a interpretação do artigo 142 da Constitui-
ção como autorizativo da tutela das Forças
Armadas sobre a República.
 O nó górdio do sucesso ou do fracas-
so do governo será definido, porém, pelo
desempenho da economia. O governo, até
agora, não conseguiu criar um ambiente
positivo e de confiança junto aos agentes
econômicos, capaz de mobilizá-los nas
decisões de novos investimentos. Inves-
timentos necessários para a retomada do
crescimento e geração de emprego e renda.
 
O governo demorou excessivamente
para apresentar a sua política econômica.
Essa falta de virada de chave para o am-
biente de confiança indica que Lula deve-
ria ter escolhido seu ministro da Fazenda
logo após a vitória eleitoral, autorizando-o
a formar sua equipe e definir o programa
econômico. Se o programa tivesse sido
apresentado no início do governo, o am-
biente econômico já seria outro neste mo-
mento. Agora é necessário acelerar as de-
finições para superar as incertezas. As ba-
ses lançadas por Haddad em 30 de março
são o começo do caminho da estabilidade,
da mobilização de investimentos e da re-
dução dos juros e da inflação.
 
Outra conclusão que se impõe é a de que
o governo precisa melhorar sua comuni-
cação. Ela depende, contudo, dos objetivos
claros que o governo pretende alcançar e
da capacidade de direção política para con-
duzir o conjunto dos ministérios e a base
de apoio, no Congresso e na sociedade, na
direção desses objetivos. Comunicação
e política são interdependentes. Mas em
comunicação política, a política deve co-
mandar o processo, dar a última palavra.
 
Lula também deve calibrar melhor o
modelo de presidente que quer seguir. Não
pode seguir o exemplo de Bolsonaro, um
presidente faccioso, que agiu para favore-
cer sua facção. Convém resgatar o mode-
lo de estadista que imprimiu seus manda-
tos anteriores. Lula deve ser o símbolo da
unidade do País, da representação do povo
como chefe de governo e chefe de Estado.
 
Como símbolo da unidade do povo,'
não significa que Lula governará sem
prioridades, tampouco que não haverá
luta política. Mas os palcos principais de-
la serão as casas legislativas e os espaços
públicos da sociedade e de expressão da
opinião pública. O palco dos espaços das
ruas e das mobilizações políticas e so-
ciais deve ocupar um lugar de destaque.
 
*Cientista político, professor da Escola de
Sociologia e Política e autor, entre outros, de
Liderança e Poder (Editora Contracorrente).

No comments:

Post a Comment