April 12, 2023

Coaches de misoginia

 

 

O Judiciário ainda não sabe como
lidar com os chamados red pills, a semear
o ódio contra as mulheres nas redes sociais

 
P O R M A R I A N A S E R A F INI

Há poucos dias, um autointi-
tulado “coach de masculini-
dade” viralizou nas redes
sociais com um vídeo, no
qual ensina os homens a se
portar diante de uma mulher. O influen-
ciador Thiago Schutz, responsável pelos
canais do “Movimento Red Pill Brasil”,
conta que estava “tomando um Campari”
e uma moça ofereceu-lhe uma cerveja. Ele
prontamente recusou a oferta, porque, se
aceitasse, estaria “se curvando” diante da
mulher. Eis a primeira dica para manter
a postura de macho alfa: recusar todo con-
vite que soe como uma forma de a mulher
tentar “colocar o homem abaixo dela”.

 
O episódio ganhou repercussão quan-
do a atriz e produtora Lívia La Gatto fez

um vídeo para ironizar o “ensinamen-
to” e foi ameaçada de morte pelo “Cal-
vo do Campari”, como ficou conhecido
na internet, devido ao ridículo compor-
tamento. Se ela não apagasse em 24 ho-
ras o conteúdo, que nem sequer citava o
nome dele, a solução seria “processo ou
bala”, advertiu Schutz em mensagem pri-
vada. O episódio serviu para expor uma
crescente e preocupante tendência: a for-
mação de clubes do Bolinha que usam fó-
runs online para propagar a misoginia e
a violência contra as mulheres.

 
A turma identifica-se como red pill.
A expressão é uma referência ao fil-
me Matrix (1999), dirigido pelas irmãs
Lana e Lilly Wachowsky, duas mulhe-
res transexuais. Em certo momento da
trama, o protagonista Neo, interpretado
pelo ator Keanu Reeves, precisa escolher
entre uma pílula azul, que o manteria em
um mundo de ilusão, ou uma pílula ver-
melha, que o despertaria para a realida-
de. Grupos misóginos passaram a usar o
termo para se referir a quem “caiu na re-
al”, um homem “redpillado”. São os mas-
culinistas, homens que veem as mulhe-
res como inimigas porque estas pode-
riam, a qualquer momento, rebaixá-los
à condição de inferioridade.

 
Lola Aranovich, professora de Litera-
tura em Língua Inglesa da Universidade
Federal do Ceará, investiga esses mascu-
linistas há anos, e expõe esse comporta-
mento no blog Escreva, Lola, Escreva. Ela
explica que o red pill sempre foi um movi-
mento de ódio às mulheres e “conta com a
adesão de milhões de homens frustrados
e fracassados no mundo inteiro”. Nesse
universo, observa Aranovich, alguns se
destacam e encontram maneiras de lu-
crar com a oferta de cursos e treinamen-
tos. O termo coach seria um mero desdo-
bramento do colonialismo cultural, tão
presente no mundo corporativo. “O mo-
vimento PUA (Pick-up Artist, ou ‘artista
da sedução’) é um dos grupos misóginos
que fazem parte do movimento red pill e
ganha dinheiro ensinando homens que
têm dificuldade de relacionamento com
as mulheres a conquistá-las sexualmen-
te. E a tática principal é tratar mal as mu-
lheres, porque um dos princípios do red
pill é que a mulher não gosta de homem
bonzinho e não sabe escolher.”

 
O discurso começa com uma roupa-
gem de autoajuda, mas escala para a in-
citação à violência. “Quando falamos em
red pill, não estamos nos referindo a um
machista genérico. São grupos organi-
zados que agem, muitas vezes, para des-
truir vidas de mulheres. Eles espalham
todo tipo de preconceito, principalmen-
te contra mães solo, gordas e mulheres
negras”, denuncia a blogueira feminista,
que muitas vezes foi alvo desses grupos.

 
Para a psicanalista e escritora Maria
Rita Kehl, o fenômeno pode ser analisa-
do pelas lentes da psicanálise com o que
Freud chama de “angústia da castração”.
“É uma ideia mais ou menos assim: ‘Te-
nho uma coisa muito preciosa que as mu-
lheres não têm e que eu não posso per-
der’. A base real do corpo é o pênis, e os

homens começam a ter muita angústia
de que eles possam perder qualquer ou-
tro signo de masculinidade, e um desses
signos é o poder.” O movimento masculi-
nista ganha fôlego à medida que o debate
feminista também avança, pois a igual-
dade de direitos e o empoderamento fe-
minino são vistos como formas de agres-
são à masculinidade.

 
Sem desmerecer qualquer conceito da
Teoria Queer, pois os gêneros fluidos não
são foco desse debate, e tratando apenas
da questão de gênero mais básica, que se-
ria a relação homem e mulher, a psica-
nalista observa: “Os verdadeiros machos
são aqueles que não temem a mulher. São
aqueles que se orgulham quando a mu-
lher recebe um prêmio, quando a mu-
lher deles começa a ganhar mais dinhei-
ro. Esses são machos no bom sentido da
palavra. Quer dizer, eles estão tranquilos
com a masculinidade deles. Os homens
que estão tranquilos com a sua masculi-
nidade podem admirar as mulheres, po-
dem eventualmente ganhar menos que
uma mulher, que a própria mulher deles,
reconhecer as suas qualidades e os seus
valores. Os inseguros são justamente es-
ses que viram os chamados ‘machos al-
fa’. Ou seja, acham que ser homem basta
para eles serem superiores”.

 
Bruna Camilo de Souza Lima e Silva,
doutora em Ciências Sociais pela Ponti-
fícia Universidade Católica de Minas Ge-
rais, estudou em sua tese o fenômeno do
masculinismo no Brasil. Para isso, che-
gou a se infiltrar em alguns grupos no
Telegram. O relato da pesquisadora é as-
sustador: “Eles veem alguns assassinos
como heróis. O caso Eloá, que aconteceu
há muitos anos, quando o namorado se-
questrou a ex-companheira e a assassi-
nou, é tido como um ‘case de sucesso’. O
assassino, Lindemberg Alves, é visto como
herói. Na visão desses masculinistas, ela o
desmoralizou ao decidir romper o relacio-
namento. Quando o discurso de um gru-
po legitima esse tipo de violência, dá for-
ça a um homem para ele fazer o que quiser
com uma mulher. Reforça o feminicídio,
a violência doméstica e várias outras for-
mas de violência, inclusive a psicológica”.

 

O comportamento
dos red pills pode
ser decifrado com o
que Freud chamava
de “angústia da
castração”, sustenta
Maria Rita Kehl

 
A pesquisadora observa, ainda, que os
masculinistas e a extrema-direita estão
intrinsecamente ligados. “A extrema-di-
reita vem sendo o grande guarda-chuva
que acolhe todos esses tipos de violên-
cia, de dominação. Não conseguimos fa-
lar de relações de poder sem falar de gê-
nero, masculinidade, feminilidade etc.
Não por acaso, muitos masculinistas têm

omo mentor o falecido ideólogo Olavo
de Carvalho. Isso foi uma surpresa para
mim, quando me infiltrei nesses grupos.”

 
A Justiça ainda tem dificuldade para
tipificar o discurso de ódio de gênero co-
mo crime, mas algumas medidas come-
çaram a ser tomadas. No Rio de Janeiro, a
procuradora Patrícia Carvão explica que
o Ministério Público tinha um núcleo de
gênero dedicado exclusivamente ao com-
bate da violência doméstica, como ocorre
na maioria das promotorias, mas o gru-
po está sendo reformulado. Chegou-se à
conclusão de que era necessário abarcar
outras formas de violência para ampliar
a proteção às mulheres.

 
Mesmo sem um núcleo especializa-
do, as mulheres vítimas de discurso de
ódio podem contar com o respaldo do
Ministério Público, explica a procura-
dora. “Uma vítima desse tipo de práti-
ca pode nos procurar e receberá o enca-
minhamento adequado. Primeiro, a gen-
te presta um serviço de acolhimento, di-
recionando a mulher para atendimento
psicológico, se for necessário. Aqui, es-
sa pessoa será informada sobre todos os
seus direitos e pode ser orientada a pro-
curar uma delegacia especializada.”

 
Doutora em Direito Constitucional
pela PUC de São Paulo e professora da
Faculdade de Direito da Universida-
de Federal do Paraná, Melina Girardi
Fachin avalia que os juristas precisam
se preparar melhor para enfrentar o dis-
curso de ódio nas plataformas digitais.
“Esse tipo de conteúdo é visto por mui-
tos como uma autorização para compor-
tamentos violentos contra as mulheres”,
alerta a advogada, uma das coordenado-
ras do livro Mulheres, Direitos Humanos e
Empresas (Editora Almedina). “Precisa-
mos repensar a autorregulação privada
das plataformas digitais. Até que ponto
as empresas de tecnologia devem assu-
mir a responsabilidade por esses discur-
sos de ódio que são veiculados em suas

plataformas  "?

CARTA CAPITAL



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