January 2, 2023

Rei Pelé é reverenciado até pelo mais humano dos lances

 

 

TOPO

Por Rory Smith, The New York Times 

 

 

De toda a miríade de coisas que Pelé fez, dos mais de mil gols que marcou, da larga lista de recordes que cravou e dos inumeráveis, imensuráveis momentos encantadores que conjurou em campo, a mais famosa, mais familiar, pode ter sido a mais comum, mundana.

A glória que o coroou foi um passe, feito com simplicidade, com ar de indiferença, nos minutos finais da final da Copa do Mundo de 1970. Um momento de simplicidade acústica, gloriosa, de um jogador cujo nome e lendas foram polidas por seu domínio do que era impossivelmente complexo.

O passe não foi facilitado pela mente rápida e brilhante de Pelé ou por sua técnica infalível. Nem por sua economia de movimentos. Não foi um passe que ele fez parecer fácil. Nos padrões de quem já respirou o ar rarefeito de uma final de Copa do Mundo, foi um passe fácil. 

A alguns metros da grande área italiana, Pelé recebe a bola de Jairzinho, certeiro da esquerda. Com um toque, ele controla. Um segundo é necessário para confirmar que recebeu. Dá o terceiro sem proposta, enquanto pondera sobre seu próximo movimento. Em nenhum momento do lance faz parecer que está com pressa. Está essencialmente em um momento estacionário durante a jogada.

A partir daí, do canto de seu olho, vê Carlos Alberto, seu capitão, correndo pela direita, uma pequena explosão de movimento num mundo ainda parado. Ele aguarda um momento. Então dá o passe, quase encolhendo os ombros, guiando gentilmente a bola ao espaço perfeito no qual Carlos Alberto precisava que ela estivesse para encontrá-la em alta velocidade, sem quebrar seu ritmo.


  • Episódio: A partida em que Pelé foi expulso, mas voltou após pressão da torcida e surra no árbitro 
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  • Aquele gol fez mais do que selar a vitória brasileira sobre a Itália no ar quente e fino da Cidade do México. Fez mais do que tornar Pelé o único jogador na história a ganhar três Copas. Foi a expressão definitiva do "jogo bonito", o "beautiful game", o futebol não apenas como esporte, mas como arte. Foi o gol que fez do Brasil o Brasil para sempre.

    Ainda assim, além de seu equilíbrio e sua visão, o passe não mostra nenhuma das características que fez de Pelé o Pelé. Não mostra o que o jornal "The Times of London" já descreveu como seu movimento "felino". Não prova a explicação do capitão e campeão do mundo pela Inglaterra Bobby Moore de que Pelé "tinha dois pés bons, era magia no ar, rápido, forte, se livrava dos adversários na base da habilidade ou ganhava na corrida". Não explica por que Franz Beckenbauer o coloca como "o jogador mais completo" que já viu ou por que Michel Platini se convenceu de que "jogar como Pelé é jogar como Deus". 

    Aquele passe ficou tão inalteravelmente associado a Pelé, é claro, em parte por conta do que representaria — sua maior obra, a maior obra do Brasil, o maior time de todos os tempos marcando o gol que foi considerado na época (e pode muito bem ser considerado até hoje) como o maior gol de todos os tempos — e em parte por quando foi marcado.

    Como o jornalista Andrew Donnie observou, é notável a quantidade das imagens que restaram de Pelé que vêm daquela Copa do Mundo. Além dos seus gols em sua primeira final, como um estreante de 17 anos em 1958, o Mundial de 1970 é a pedra fundamental de evidência da majestade de Pelé: a cabeçada elástica defendida por Gordon Banks, o corta-luz sem pudor contra o Uruguai, o chute da intermediária contra a Tchecoslováquia.

     

    Aquele torneio, no entanto, já acontecia na parte final da era Pelé. Quando chegou ao México, ele já tinha se aposentado da seleção, desanimado e abatido por seu tratamento em campo na Copa de 1966, na Inglaterra, quando foi alvo de brutalidade sem remorso ou punição por parte de defensores adversários. Já tinha feito mais de mil jogos e estava condenado a fazer parte de um desfile infindável de jogos de exibição que o Santos, seu clube, buscava para monetizar sua fama e pagar seu salário.

    Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, retratado, em maio de 1968, com a camisa do Santos, clube onde começou a jogar ainda com 15 anos e despontou como o maior craque do futebol mundial de sua época – e de todos os tempos. — Foto: Arquivo / Agência O Globo

    Pode ser que aquela versão de Pelé seja mais lembrada prontamente não porque representou seu pináculo, mas porque foi a mais facilmente acessível: 1970 foi a primeira Copa do Mundo transmitida em Technicolor (a cores). Aquelas camisas amarelas brilhantes em ricos gramados esverdeados invadiram diretamente milhões de casas ao redor do globo.

    Antes disso, para a vasta maioria dos torcedores, em especial aqueles fora do Brasil, Pelé só existia em preto e branco. As atuações virtuosas que iluminaram a Copa de 1958, os gols que o anunciaram ao mundo, foram consumidos em imagens granuladas de notícias transmitidas antes de filmes. A associação pode ter acelerado a percepção de Pelé como uma estrela por si só. Mas melhores momentos soltos e em baixa resolução dificilmente capturariam seu talento de alta definição. 

    Mas até esse cenário era melhor que a outra opção. Em 1966, Pelé afirmou a Pete Axthelm, da revista "Sports Illustrated", num perfil do "atleta mais famoso do mundo" que era, até aquele momento "quase desconhecido nos Estados Unidos", que seu gol mais bonito da carreira, do ponto de vista técnico, foi em jogo no Brasil, do Santos contra a Juventus (SP) em 1959, um ano antes dele virar uma estrela.

    O gol não foi filmado. "Cerca de 60 mil pessoas viram", escreveu Axthlem. "Cerca de um milhão vão dizer que viram se você perguntar". Hoje, existe apenas numa estranha simulação virtual. Se é precisa, fica a questão.

    Precisamente, é por vários momentos de Pelé serem similarmente inacreditáveis que uma tendência de quantificar suas conquistas cresceu nos últimos anos. As inigualáveis três Copas do Mundo, assim como a mais controversa, e às vezes descartada, marca de 1.281 gols na carreira.

    Pelé jogou no Cosmos de 1975 até 1977 — Foto: Divulgação/New York Cosmos 

     Fazer isso, no entanto, dá ao processo de entendimento um resultado raso. Reduz um atleta que definiu uma classe inteira de jogadores — antes de Pelé, como Neymar disse, "10 era apenas um número"— , assim como uma cultura de futebol inteira, a um artilheiro de alta produtividade. Não dá espaço à inventividade, à expertise ou ao encantamento puro que eram as marcas de um jogador exaltado tanto por como fazia as coisas quanto pelo que fez.

    Uma medida melhor do legado de Pelé seria não por esses números rasos e crus, mas por algo menos tangível: o alcance e a extensão de sua fama. Em 1970, quando deu aquele passe, Pelé já era considerado o melhor jogador do planeta — talvez o melhor que já existiu — há mais de uma década.

    Ele ganhou e manteve esse status apesar de, fora do Brasil, as menções serem curtas, quadrienais, ocasionais nos boletins de notícias antes das imagens. Venceu a Copa de 1962, mas estava machucado nas partidas decisivas. Foi "chutado" para fora da Copa de 1966 na Inglaterra.

    Ainda assim, seu nome permaneceu. Era famoso o suficiente para que a "Sports Illustrated" publicasse um perfil de alguém que a própria revista acreditava que os leitores não reconheceriam. Era famoso o suficiente para que os jogos de exibição do Santos ao redor do mundo esgotassem na Europa, na Ásia e na África. Axthelm escreveu sobre uma multidão de 15 mil pessoas esperando para o ver em Abidjan, na Costa do Marfim.

    Ele era famoso, precioso o suficiente que o governo militar do Brasil o declarou um tesouro nacional para evitar que o Santos o vendesse para fora do país. Uma década depois, um clube (o New York Cosmos) e uma liga (a North American Soccer League) foram construídos ao seu redor. Sua proeminência só era comparável, na época, à de Muhammad Ali.

    Pelé jogando pela seleção brasileira — Foto: Editoria de Artes 

    Tostão, seu antigo companheiro de time, já disse que os jogadores brasileiros aprendem a se separar de suas identidades. Os apelidos pelos quais muito ganham dinheiro e fama se tornam uma espécie de barreira para separar o indivíduo da repercussão que o envolve. Pelé adicionou uma terceira camada a essa dinâmica: seu apelido, marca registrada, se tornou um sinônimo não apenas de grandeza e excelência, mas também de uma incontestável e dificilmente atingível forma de perfeição.

    Tudo isso foi construído não apenas no que as pessoas vêem — além daqueles instáveis vídeos de melhores momentos —, mas também no que ouvem, no que leem, no que foi passado a elas boca a boca. Foi o suficiente para fazer adversários temerem enfrentá-lo e para levar fãs, milhares e milhares deles, para seus jogos, fossem eles importantes ou não. 

    Esse pode ser um padrão inalcançável. É dizer, contando sobre Pelé, que ele foi capaz, de forma consistente, de atingir essas expectativas tão altas.

    "Nós disputamos pelo alto para cabecear uma bola", contou o zagueiro Giacinto Facchetti depois de enfrentá-lo. "Eu era mais alto, pulei melhor. Quando voltei ao chão, olhei para o alto assustado. Pelé ainda estava lá, no ar, cabeceando a bola. Era como se ele pudesse ficar suspenso lá o quanto quisesse". Tarcisio Burgnich, companheiro de time de Facchetti, foi mais sério. "Eu disse a mim mesmo que ele era feito de pele e osso, como todo mundo", relatou ele. "Eu estava errado".

    O goleiro do Benfica Costa Pereira enfrentou Pelé na Copa Intercontinental de 1962, uma antecessora do Mundial de Clubes, um duelo entre os campeões da Europa e da América do Sul. "Cheguei pronto para marcar um grande jogador", disse. "Saí convencido de que fui anulado por alguém que não tinha nascido no mesmo planeta que o resto de nós".

     O status já estava estabelecido quando Pelé chegou ao México para a Copa do Mundo de 1970. Ele já tinha feito tudo que poderia ser feito: marcou mil gols, quebrou recordes incontáveis, enriqueceu o jogo com momentos infindáveis de encanto. Era o maior que já tinha existido.

    Mas aquela era a primeira chance que milhões tiveram de assistir a ele propriamente, quase que como uma primeira vez, não apenas num trecho nebuloso, mas em cores totais, super saturadas. Aquele passe, seu ato final antes de ser levantado nos ombros de seus companheiros, com a taça da Copa do Mundo em suas mãos, não foi especialmente espetacular. Não foi particularmente complexo. O que fez dele especial, o que fez ele durar na memória, foi seu timing. O timing de Pelé foi perfeito. 

    NEW YORK TIMES 


    Pelé jogou no Cosmos de 1975 até 1977 — Foto: Divulgação/New York Cosmos

    Fazer isso, no entanto, dá ao processo de entendimento um resultado raso. Reduz um atleta que definiu uma classe inteira de jogadores — antes de Pelé, como Neymar disse, "10 era apenas um número"— , assim como uma cultura de futebol inteira, a um artilheiro de alta produtividade. Não dá espaço à inventividade, à expertise ou ao encantamento puro que eram as marcas de um jogador exaltado tanto por como fazia as coisas quanto pelo que fez.

    Uma medida melhor do legado de Pelé seria não por esses números rasos e crus, mas por algo menos tangível: o alcance e a extensão de sua fama. Em 1970, quando deu aquele passe, Pelé já era considerado o melhor jogador do planeta — talvez o melhor que já existiu — há mais de uma década.

    Ele ganhou e manteve esse status apesar de, fora do Brasil, as menções serem curtas, quadrienais, ocasionais nos boletins de notícias antes das imagens. Venceu a Copa de 1962, mas estava machucado nas partidas decisivas. Foi "chutado" para fora da Copa de 1966 na Inglaterra.

     

     

     
     
     

     

     

 

 

 

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