October 6, 2022

A ser pente está viva

 

 

Alvo de constantes ataques nos últimos sete anos, a ex-deputada decidiu não disputar as eleições deste ano, mas não por causa das ameaças. “Essa narrativa dá vitória a eles. Não tiveram e não têm” - Imagem: Clauber Cléber Caetano/PR e Redes Sociais

 

RADICALIZADOS E FORJADOS NA MILITÂNCIA
DAS RUAS, OS BOLSONARISTAS FARÃO OPOSIÇÃO
NA OFENSIVA, PREVÊ MANUELA D'AVILA

 a  F A B Í O L A M E N D O N Ç A

 Ex-deputada, candida-
ta a vice-presidente
em 2018 e a prefeita de
Porto Alegre em 2020,
Manuela D’Ávila, do
PCdoB, optou por não
disputar a eleição des-
te ano. Vítima de violência política e do
discurso de ódio propagado pela extrema-
-direita, ela nega ter desistido de concor-
rer ao Senado pelo Rio Grande do Sul, co-
mo estava cotada, devido às ameaças que
recebe há pelo menos sete anos, informa-
ção que classifica como factoide. “Que in-
fantilidade eu teria de achar que deixando
de concorrer eu deixaria de ser alvo des-
sa gentalha”, diz. Na entrevista a seguir, a
comunista fala da violência nas eleições,
do futuro do bolsonarismo e do que espe-
rar de Lula em um terceiro mandato. “Te-
nho a convicção de que será um governo
de disputa de projetos e nós, da esquerda,
temos de estar prontos. Precisamos acu-
mular força social para que reformas mais
profundas sejam feitas.”

 
CartaCapital: O Brasil vive uma es-
calada da violência política, com cida-
dãos sendo agredidos ou assassinados
por conta de suas preferências. A se-
nhora e sua família são vítimas de ata-
ques há muito tempo. A decisão de não
disputar o Senado neste ano tem rela-
ção com esse clima de ódio?

 
Manuela D’Ávila: Alguns de nós têm si-
do vítimas dessa violência há bem mais de
quatro anos. Isso não começou em 2018.
Esse ódio vem sendo disseminado por
grupos de extrema-direita, de forma or-
ganizada e robotizada na internet, desde
2015. Eu me lembro bem disso, porque es-
tava gestante. São pelo menos sete anos e
outros de nós, como o ex-deputado Jean
Wyllys, foram vítimas ainda antes. Mui-
tos foram pegos de surpresa nas últimas
eleições, continuam agora, porque não
atribuíram a real seriedade daquilo que
denunciávamos. A violência começa com
a não aceitação do resultado eleitoral pe-
lo PSDB e com os discursos radicalizados
por grupos como o MBL. Em 2015, ganha
o caráter misógino, porque o golpe é anti-
nacional, antipopular e antidemocrático,
mas o que legitima socialmente é a miso-
ginia, é o discurso da incompetência fe-
minina de Dilma Rousseff. Eu e a minha
família sofremos com isso desde então.

 
Não fui pega de surpresa nas eleições. Na
minha gravidez, inventaram que eu tinha
feito enxoval em Miami. Passei a dar en-
trevista sobre o direito de fazer ou não o
enxoval em Miami, mas eu nunca estive
lá. Quando um factoide é criado, as pes-
soas passam a falar sobre ele, e não sobre
a verdade. Nunca fui candidata ao Sena-
do. Logo, não desisti de candidatura algu-
ma. Disputei dois segundos turnos con-
tra o bolsonarismo. Estive na linha de
frente em 2018 e 2020, como candidata
a vice-presidente e a prefeita. Ao térmi-
no das eleições municipais, antecipei que

ossivelmente não concorreria em 2022.

 
CC: Então, sua decisão não tem rela-
ção com a violência política?

 
MD: Ao contrário. Todas as decisões da
minha vida nos últimos sete anos foram
tomadas pensando na violência política.
Não fui ao supermercado durante anos,
por causa desse clima de ódio. Fui candi-
data duas vezes, mesmo sofrendo ataques
constantes. Vivo pensando nisso. “Devo ir
a um restaurante para comemorar o meu
aniversário?” “Qual é o tamanho da dis-
posição que tenho para enfrentar alguém
dizendo que eu liguei para o Adélio Bis-
po 180 vezes no dia da facada”? Sobre as
questões que me fizeram não ser candida-
ta, eu já fui deputada federal e estadual e a
minha obrigação é usar esse prestígio pa-
ra as ideias que defendo. Por essa razão, te-
nho como candidatas duas outras mulhe-
res que não ocuparam esses espaços e que
podem ser deputadas de luta, de esquer-
da, negras do meu estado, que nunca ele-
geu uma deputada negra. Que infantilida-
de eu teria de achar que deixando de con-
correr eu deixaria de ser alvo dessa gen-
talha. Eles me seguem há sete anos. En-
tão, esse discurso é uma narrativa que dá
a vitória a eles. Não tiveram e não têm.

 
CC: Os disparos em massa de notí-
cias falsas, como aconteceu em 2018,
parecem não surtir o mesmo efeito e o
maior exemplo disso é Bolsonaro estag-
nado nas pesquisas. Estamos ficando
vacinados para as fake news?

 
MD: Nos últimos quatro anos, as insti-
tuições brasileiras e parcelas importan-
tes da sociedade reconheceram a exis-
tência da desinformação. Isso faz com
que o problema esteja iluminado. Em
2018, ele estava escondido. A gente fala-
va sobre isso e era uma caixa vazia, não
encontrava eco. Colocar luz no problema
sempre é um dos caminhos mais efica-
zes para enfrentá-lo. Segundo, tivemos
um conjunto de medidas que impacta-
ram em certa escala no sistema de pro-
dução e distribuição da desinformação
no Brasil. Algumas pessoas foram deti-
das. É uma quadrilha financiada para es-
sa finalidade. Uma parte dela, digamos
assim, está sendo vigiada, acompanhada
mais de perto. De outro lado, acho que te-
mos instituições e partidos mais atentos.

 
CC: Caso Bolsonaro seja mesmo der-
rotado no próximo domingo, como apon-
tam algumas pesquisas, seus apoiado-
res aceitarão o resultado? Qual será o
futuro do bolsonarismo?

 
MD: A violência faz parte do bolsonaris-
mo, é algo intrínseco. Desde o seu início,
está no seu DNA, o centro da sua identi-
dade é o ódio. O ódio ao PT, à esquerda, às
mulheres, aos negros e negras, aos LGBTs,
aos indígenas, o ódio ao Brasil travestido
de um falso nacionalismo. O bolsonaris-
mo é violento e não mudará o seu compor-
tamento com a nossa vitória. Ele mante-
rá o padrão. Fisicamente, minha filha apa-
nhou pela primeira vez de um bolsonaris-
ta. Como que vou imaginar que esse pen-
samento vai ficar dócil depois do resulta-
do da eleição? Não vai. Temos de estar pre-
parados para essa tentativa de desestabili-
zação social, porque eles funcionam a par-
tir da ativação de lobos solitários e, assim,
eles nunca assumem a responsabilidade
pelos ataques, até por ser uma contribui-
ção indireta. Mas o discurso de ódio sem-
pre traz consequências reais, não fica no
plano da imaginação. Eles serão uma for-
ça de oposição relevante, diferente das que
lidamos no passado. Será uma oposição na
ofensiva. É uma direita forjada na rua, al-
go incomum para o Brasil. É preciso de-
volver ao Brasil a ideia de que existem re-
gras no jogo. Nós defendemos o direito de
os bolsonaristas serem oposição até as
últimas consequências, porque defende-
mos a democracia. Só que eles devem fa-
zer oposição no marco da Constituição Fe-
deral. Ponto.

 
CC: Como evitar um retorno da ex-
trema-direita ao poder?

 
MD: São várias questões. Uma é com a lu-
ta social em torno da consciência do povo.
Somos um país forjado em quase quatro
séculos de escravidão, que não debateu a
ditadura abertamente com a sociedade. O
Brasil precisa, primeiro, se perceber en-
quanto nação e reconhecer seu processo
de construção histórica para poder ser um
país de verdade, o grande sonho realizado.
O país é sempre essa espécie de sonho a se
realizar. Precisaremos construir um go-
verno à altura das expectativas da socie-
dade, ou seja, o governo que aponte cami-
nhos de enfrentamento a essa desigualda-
de que estrutura as relações sociais. Pre-
cisamos enfrentar os problemas concre-
tos e ao mesmo tempo apontar esperan-
ça no tratamento do racismo, no tema da
sustentabilidade, no enfrentamento à fo-
me, à miséria, assegurando trabalho, ren-
da e dignidade a quem trabalha.

 
CC: Como a senhora avalia o avanço
da extrema-direita na Europa e o risco
dessa expansão para o resto do mundo?

 
MD: O mundo vive uma grande crise, que
é econômica, social, ambiental, huma-
nitária. Vivemos uma crise que por ve-
zes somos incapazes de dimensionar. O
mundo não é mais o mesmo de 20 anos
atrás. A disputa entre EUA e China, o que
significa? Esse é o papel que teremos de
cumprir com o restabelecimento pleno,
digamos, das condições democráticas.

 
CC: O que esperar de um terceiro go-
verno Lula?

 
MD: Que seja melhor que os outros, co-
nectado com o tempo presente. Gosto
muito de um poema do Drummond que
diz: “O tempo é minha matéria”. O tempo

presente, a vida presente, os homens pre-
sentes. Tem um poema do Neruda, igual-
mente belo, que acrescenta: “Nós, os de
então, já não somos os mesmos”. Lula não
é o mesmo, o Brasil não é o mesmo. Espe-
ro que esse reencontro esteja à altura dos
desafios do nosso povo. Tenho a convic-
ção de que Lula está preparado para is-
so. O mais importante ele tem: compro-
misso com o povo pobre e trabalhador do
Brasil. Isso fará com que Lula construa
um governo à altura dos desafios, que são
realmente muito grandes.

 
CC: Faz sentido Lula insistir numa po-
lítica conciliatória?

 
MD: A gente precisa entender o tama-
nho do buraco em que se meteu. Bolso-
naro tem mais de 30 pontos em qualquer
pesquisa. A política é feita a partir da aná-
lise da realidade concreta. E a realidade
concreta que vivo é a de um país gover-
nado por Bolsonaro e no qual minha filha
é ameaçada de morte e de estupro. E ela
não é a única, não brilha no escuro. Pes-
soas foram mortas por usarem adesivos.
Não fazemos alianças só com quem dese-
jamos. Lula faz esforço para preservar a
democracia, porque o buraco que a gente
está metida é esse. Governar é outro desa-
fio. Tenho a convicção de que será um go-
verno de disputa de projetos, e nós, da es-
querda, temos de estar prontos. Precisa-
mos acumular força social para que refor-
mas mais profundas sejam feitas.

 
CC: A agenda dos direitos humanos,
do meio ambiente e da inclusão social
terá espaço em um governo composto
de tantas forças conservadoras?

 
MD: Lula foi presidente duas vezes e foi
um homem muito comprometido com
os direitos humanos. Basta lembrar que
foi ele quem garantiu duas políticas que
emanciparam milhares de brasileiras: o
Minha Casa Minha Vida, com a chave da
casa na mão da mulher, e o Bolsa Famí-
lia, com o cartão na mão da mulher. Inde-
pendência econômica e teto. O Congres-
so terá um peso nisso. Nós tivemos uma
bancada amplamente minoritária, mas
ainda assim garantimos o auxílio emer-
gencial. O ambiente do governo Lula é
democrático, vamos ter conferências,
voltar a ter participação popular. Estou
pronta para as disputas que tivermos de
fazer nesse ambiente democrático.

 
CC: Como Lula deve lidar com o
Centrão no Congresso?

 
MD: Nas eleições municipais, tivemos
a grata surpresa de uma renovação com
muita qualidade na esquerda, com a elei-
ção de muitas mulheres, negros e negras
vinculados à periferia, às lutas sociais.
Minha expectativa é de que tenhamos
uma bancada mais numerosa, puxada
pela força da nossa coligação, com mais
mulheres, jovens, trabalhadores das pe-
riferias, negros e negras, indígenas. A re-
lação tem de ser feita programaticamen-
te. Quais são as mudanças que queremos
promover no Brasil? A partir disso é pac-
tuar politicamente, como já fizemos. As
políticas que saudamos passaram por um
Congresso que também era conservador.

 
CC: E qual será o papel de Manuela
D’Ávila no governo Lula?

 
MD: Não tenho papel, não tenho essa
expectativa. Sou uma militante social e
política. Quando decidi não concorrer,
as pessoas me perguntaram se eu esta-
va saindo da política, por ter decidido tra-
balhar, fazer um doutorado, tocar a mi-
nha vida profissional numa outra esfe-
ra, que não a parlamentar. Eu sou mili-
tante antes de ter mandatos e continuei
militante depois de tê-los. Decidi muito
jovem, aos 17 anos, que a minha vida só
tem sentido coletivamente. Como diz a
frase de um filme, “a felicidade só é real
quando ela é compartilhada”. E aqui a fe-
licidade tem um sentido político, não um
sentido individual, mas de que a gente é
feliz quando tem comida, quando o filho
está seguro, quando a filha está na cre-
che, quando tem trabalho, quando não
falta consulta no SUS. A felicidade é pal-
pável por direitos políticos e sociais.

carta capital  

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