October 7, 2022

A República dos Bárbaros

 

Os ares da casa-grande escravocrata ainda circulam nas camadas mais profundas da sociedade brasileira - Imagem: Jean-Baptiste Debret/Acervo Itaú Cultural

 p o r L U I Z G O N Z A G A B E L L U Z ZO

No livro Futuro Passado,

 Reinhart Koselleck busca
desvendar os enigmas do
tempo histórico. Convo-
co suas considerações pa-
ra inaugurar minhas inda-
gações a respeito do Brasil
desvendado pelas eleições.
Aí vai: Quem busca encontrar o cotidiano
do tempo histórico deve contemplar as ru-
gas no rosto de um homem, ou então as ci-
catrizes nas quais se delineiam as marcas
de um destino já vivido. Pois o tempo histó-
rico, caso o conceito tenha mesmo um sen-
tido próprio, está associado à ação social
e política, a homens concretos que agem e
sofrem as consequências de ações, às suas
instituições e organizações. Todos eles, ho-
mens e instituições, têm formas próprias de
ação e consecução que lhes são imanentes
e que possuem um ritmo temporal próprio.

 
As rugas e cicatrizes vincadas no ros-
to dos brasileiros conservadores revelam
as heranças da casa-grande. A metafísica
antissocial do “homem de bem” está escul-
pida na figura do Senhor de Escravos, in-
cumbido pela Natureza de discernir entre
o justo e o injusto, o certo e o errado. Como
bem diz meu amigo Mino Carta, os ares da
casa-grande escravocrata ainda circulam
nas camadas mais profundas da socieda-
de brasileira. As cicatrizes da história es-
tão riscadas nas faces dos ricaços, de mui-
tos remediados e até mesmo dos desfavo-
recidos que aspiram o amparo na crença.
Não são outros os fundamentos da ideo-
logia da direita brasileira, como revela o
discurso de Bolsonaro e de seus asseclas.
Atolados no pântano da grana ou do res-
sentimento, esses fiéis, ricos, remediados
ou pobres, estão convencidos das virtudes
de suas crenças. No universo do conserva-
dorismo brazuca, as instituições construí-
das ao longo da história das sociedades, so-
bretudo o Estado Moderno, com as garan-
tias jurídicas e instâncias de controle da
violência, são consideradas negacionistas
das liberdades. Suas leis e seus métodos
de punição são considerados insuficien-
temente rigorosos pelos fanáticos da vir-
tude autoalegada.

 
Para eles, o formalismo da lei trans-
forma a Justiça numa farsa, num proce-
dimento burocrático e ineficaz. Não por
acaso, está bem esculpida nos corações
e nas mentes dos “homens bons e virtu-
osos” a figura do vingador, aquele deste-
mido que se desembaraça das limitações
dessas instituições corruptas e corrup-
toras para se dedicar à limpeza do País.
A sociedade está suja, contaminada pe-
o vírus da tolerância. Só o herói solitá-
rio pode salvá-la, consultando sua cons-
ciência, recuperando, portanto, a força
da moral “natural”, aquela que Deus in-
funde no coração de cada homem.
É esse Totalitarismo da Boa Consci-
ência que reivindica o fechamento do Su-
premo Tribunal Federal. Não podemos
colher outro ensinamento das impreca-
ções agressivas de Jair Bolsonaro contra
os ministros do STF. Ao apontar sua gar-
rucha velha e enferrujada para Alexandre
de Moraes ou Luís Roberto Barroso, Bol-
sonaro não pretende atingir as pessoas dos
ministros, mas, sim, a instituição STF. No
mesmo diapasão, seus fanáticos, ignaros
e ressentidos apoiadores pretendem des-
truir as instituições que acompanharam a
formação do Estado Moderno ao longo de
séculos, no propósito de substituí-lo pelas
regras das sociedades das cavernas.
A civilização ocidental, disse Gandhi,
teria sido uma boa ideia. Imaginei, san-
ta ingenuidade, que as batalhas do século
XX, além do avanço dos direitos sociais e
econômicos, tivessem finalmente esten-
dido os direitos civis e políticos, conquis-
tas das “democracias burguesas”, a todos
os cidadãos. Talvez estejamos numa em-
preitada verdadeiramente subversiva em
seu paradoxo: a construção da República
dos Bárbaros. Uma novidade política en-
gendrada nos porões da inventividade de
um passado que não passa. Nessa passa-
gem permanente para o Passado Futuro,
as liberdades e garantias republicanas re-
cuam diante da “liberdade” que reivindica
a opressão dos outros. Essa é a “liberdade”
movida pelo narcisismo dos ressentidos.
Nos últimos anos, os “homens
bons” não se cansaram de dis-
seminar, em seus tuítes e con-
gêneres, as consignas que mo-
veram homenzinhos que se
exibem na Avenida Paulista:
“direitos humanos só para os humanos di-
reitos”. Nas manifestações dos moralis-
tas transcendentais vejo a autoconvoca-
ção dos soi-disant iluminados para substi-
tuir a onisciência divina e, nessa condição,
desferir sentenças irrecorríveis, como as
desferidas pelos juízes do Juízo Final, em
contraposição aos humanos, os pobres-
-diabos que se debatem para sobreviver
aos ditames da falibilidade e da incerteza.
No estágio atual da sociedade de mas-
sa, o controle social despótico dispensa a
obviedade dos dólmãs, dos co-
turnos ou da cadeira do dragão.

 
O totalitarismo do Terceiro Mi-
lênio não usa coturnos nem câ-
maras de gás. Usa a “informa-
ção” que não pensa em si mes-
ma. O propósito da manipula-
ção e da espetacularização dis-
paradas nas redes sociais é tor-
nar os indivíduos incapazes de
compreender a natureza per-
versa da frenética guerra de fa-
tos e versões “construídas” sob
o acicate da concorrência para
alcançar o “fundo do poço”.

 
As redes sociais, onde as
ideias e as opiniões deveriam
trafegar livremente, se transformaram
num espaço policialesco em que a crítica
é substituída pela vigilância. A vigilância
exige convicções esféricas, maciças, im-
penetráveis, perfeitas. Ela deve adquirir
aquela solidez própria da turba enfureci-
da, disposta ao linchamento.

 
Seria uma descortesia dizer aos con-
servadores de passeata que desperdiço
vela com defunto de segunda. Para não
descumprir regras de civilidade, teimo
em repetir aos ouvidos de quem quiser
escutar: a sociabilidade moderna move-
-se entre a inevitável pertinência a uma
cultura produzida pela história e a plura-
lidade dos indivíduos “livres”. A história
dessas sociedades “produziu” o mercado,
a sociedade civil, o Estado Moderno, suas
liberdades e seus interesses.

 
Essa forma de sociabilidade, reivindi-
cada pelo liberalismo político, rejeita a
submissão dos indivíduos livres a trans-
cendências religiosas, moralistas e mi-
diáticas. É assustadora a indigência cul-
tural dos que pretendem se colocar “fo-
ra” das misérias do mundo da vida, aci-
ma do penoso exercício de compartilhar
a razão com os demais cidadãos livres e
iguais em sua diversidade.

 

CARTA CAPITAL 

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