October 11, 2022

A insurreição permanente


 Miguel Lago

Em outros tempos, já estaríamos reclamando do Tite por não ter definido a escalação dos onze, pois faltam menos de dois meses para a Copa do Mundo. Neste ano, porém, a política ocupou tanto a consciência dos brasileiros que eles parecem mais interessados na corrida eleitoral que na Seleção canarinho. Até a camiseta do time é usada agora não para homenagear a equipe, mas como traje de comícios. “Seremos campeões do mundo?” Essa deveria ser a questão principal em 2022. Mas não é. Ou, por se tratar de ano de eleições, a pergunta dominante seria: “Quem ganhará a eleição para presidente?” Mas também não é. Neste momento tão atípico a questão definidora passou a ser: “Conseguirá Bolsonaro se manter no poder?”

O desfecho do primeiro turno deu-se
depois do fechamento desta edição da
piauí, razão pela qual escrevo sem saber
o resultado. Mesmo assim, é possível
dizer que, para a pergunta sobre a per-
manência de Bolsonaro no poder, exis-
tem três respostas possíveis. Uma vitória
de Bolsonaro dará continuidade ao seu
governo desastroso. Uma derrota pode
ser o início de uma espécie de insurrei-
ção, em que ele convoca o apoio de
seus seguidores para, contra as institui-
ções, manter-se no poder. Por fim, se
ele perder, mas desistir da insurreição,
talvez faça pronunciamentos e perfor-
mances públicos rejeitando as eleições,
mas sem grandes consequências práti-
cas, exceto a de fidelizar ainda mais
seus eleitores e pavimentar o caminho
para seu retorno em 2026.

 
O primeiro cenário tem sido longa-
mente discutido por analistas políticos
e, às vésperas da eleição, havia mesmo
quem acreditasse que Bolsonaro tinha
chances de vitória no pleito. Seu piso
eleitoral nunca foi baixo. Mesmo nos
piores momentos do governo, sua aprova-
ção jamais ficou abaixo dos 20%. É uma
resiliência admirável. Além disso, a eco-
nomia, após dois anos catastróficos, apre-
senta agora uma leve melhora, o que,
no entanto, não foi capaz de reduzir a
rejeição ao candidato. Em terceiro lu-
gar, como incumbente, teve a máquina
estatal na mão e mostrou disposição
para usá-la – até mesmo inconstitucio-
nalmente, como no caso da PEC Kami-
kaze – para ganhar votos. Finalmente,
vale destacar que as oposições até hoje
não conseguem enxergar direito Bolso-
naro. E quem não o enxerga não con-
segue combatê-lo.

 
A reação dos antibolsonaristas ao que
ocorreu no Sete de Setembro não pode-
ria ter sido mais exemplar. Na comemo-
ração dos 200 anos da Independência,
transformada em comício nacional, Bol-
sonaro colocou milhares de pessoas nas
ruas. Em vez de encarar a realidade de
que ele é muito forte, as oposições fize-
ram de tudo para desdenhar das manifes-
tações, dizendo que não tinham reunido
muita gente ou que os presentes eram
todos brancos e não havia trabalhadores
entre eles (o que está longe de ser verda-
de). Outros salientaram que Bolsonaro
estava isolado politicamente, pois nem
os líderes dos poderes Legislativo e Judi-
ciário compareceram à cerimônia oficial
em Brasília. Como é possível ele estar
“isolado”, em meio ao mar de seguido-
res? A ilusão das oposições chega às raias
da irresponsabilidade.

 
No segundo cenário, com Lula elei-
to, Bolsonaro promove uma insur-
reição para se manter no poder,
implantando um autêntico estado de
exceção. Muito se falou em autogolpe e
alinhamento das Forças Armadas com o
presidente. Mas não se sabe se os chefes
militares estão todos ao lado de Bolsona-
ro, nem se estariam dispostos a praticar
um golpe de Estado – o que é altamen-
te improvável. Golpes militares saíram
de moda, ao menos na forma antiga, no
estilo dos pronunciamientos, em que após
uma rebelião militar segue-se a ade-
são do conjunto das Forças Armadas.
Mais improvável ainda é que militares
saiam às ruas para defender a democra-
cia, no caso de uma insurreição promo-
vida pelos seguidores do presidente. E é
apenas disso que Bolsonaro precisa: que
os militares permaneçam quietos em
seus quartéis, sem se meter na balbúrdia
dos bolsonaristas.

 
Para preparar um golpe, é necessário
apoio das elites e da cúpula do Exército.
Foi assim em 1964, quando grande parte
do empresariado, dos generais e da im-
prensa apoiou a derrubada do governo
João Goulart. O cenário atual é muito
diferente. Uma parte significativa da eli-
te defende as instituições – o que ficou
claro com a divulgação da Carta às Bra-
sileiras e aos Brasileiros em Defesa do
Estado Democrático de Direito, em 11 de
agosto passado. Os mais importantes veí-
culos de imprensa são hoje legalistas.

 
Desde o início de seu mandato, Bol-
sonaro se comportou não como presi-
dente, mas como líder de uma revolução.
Em vez de construir novas políticas pú-
blicas, focou na destruição das existen-
tes. Em seu terceiro mês no cargo, disse
que seu governo não era para construir
nada, mas para “desconstruir muita coi-
sa”. O desmantelamento do Estado que
se seguiu lhe proporcionou disputas e
oportunidades para engajar seus segui-
dores. Cada etapa de destruição se con
figurava como uma batalha do “bem”
contra o “mal”, levada a cabo por “mo-
cinhos” que agiam contra “bandidos”.
As atitudes de Bolsonaro nunca se-
guiram a lógica que norteia as ações de
um político, e sim as de um ativista.
Diariamente, ele informa seus seguido-
res sobre as posições que tomou e depois
os convida a agir na internet em favor do
próprio Bolsonaro e contra seus inimigos.
Por fim, vai às ruas para se manifestar,
na condição de presidente da República.
Bolsonaro construiu uma infraestrutura
de mobilização de milhões de pessoas
que nutrem uma relação muito intrigan-
te com seu líder. Ele se comporta co-
mo um influenciador, cujas atividades
na dimensão offline são pensadas, es-
truturadas e realizadas de forma a gerar
dividendos na arena digital. Decretos,
projetos de lei, pronunciamentos, mani-
festações, alianças, tudo é pensado para
contar uma história no universo online.
Quanto mais ardentes, radicais e contro-
versas são suas palavras e ações, mais
engajamento elas geram.

 
Bolsonaro não só mobiliza seu eleito-
rado como o fortalece estrategicamente.
O apoio que recebeu das igrejas neopen-
tecostais se converteu em importantes
cargos nos ministérios para as lideranças
religiosas (como a pasta da Educação, a
da Cidadania e a da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos e, sobretudo, no
Supremo Tribunal Federal). Com a PEC
Kamikaze criou novos benefícios sociais
para segmentos da população no perío-
do eleitoral (de agosto a dezembro) para
tentar reduzir a forte rejeição entre a po-
pulação mais pobre e reforçar o apoio de
taxistas e caminhoneiros, seguidores aguer-
ridos do presidente.

 
Bolsonaro trabalhou ativamente para
armar a população. Em 2018, cerca de
100 mil civis tinham licença para a posse
de armas. Em 2022, eram quase 700 mil.
Isso significa que, atualmente, temos mais
civis com armas no país do que profissio-
nais ativos das Forças Armadas (cerca de
350 mil) ou policiais militares (pouco
mais de 400 mil). Uma parcela substan-
cial dos novos donos de armas adora o
presidente e está organizada em uma
vasta rede de mais de 2 mil clubes de tiro
(em 2018 eram apenas cerca de 150),
muitos dos quais fizeram convocações
para protestos contra o Supremo Tribu-
nal Federal (STF) no ano passado. O pre-
sidente do Movimento Proarmas, Marcos
Pollon, conclamou os atiradores a se le-
vantar contra Lula e o STF.

 
Entre os policiais, Bolsonaro também
é muito popular. Um estudo do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública estimou
que 51% dos praças da Polícia Militar
interagiam em páginas bolsonaristas nas
redes sociais, em 2021. O verdadeiro par-
tido político de Bolsonaro é essa rede de
pessoas armadas – sejam civis ou agentes
do Estado. É uma rede vibrante, capila-
rizada e altamente engajada.

 
Assim, Bolsonaro foi reunindo todos
os possíveis ingredientes para uma in-
surreição bem-sucedida. E o que mais
chama a atenção é que não existe ne-
nhuma força com poder suficiente para
se opor a isso. Afinal, quem impedirá a
insurreição? O Exército? Provavelmen-
te não, em vista dos numerosos apoiado-
res de Bolsonaro nas Forças Armadas,
sem contar os mais de 6 mil militares
que trabalham em seu governo, ocupan-
do cargos civis. Um relatório recente
mostrou que cerca de 1,6 mil militares
recebiam mais de 100 mil reais líquidos
por mês – três vezes o teto salarial do
governo federal. Não há sinal de que as
Forças Armadas reajam a uma tentativa
de insurreição da parte de Bolsonaro.

 
Também é improvável que as forças
democráticas possam resistir. Apesar de
toda a popularidade de Lula, as esquer-
das parecem ter perdido a capacidade de
colocar as massas na rua. Como bem
apontou Eugênio Bucci, em texto recen-
te no jornal O Estado de S. Paulo: “A ve-
lha gramática dos protestos virou de
ponta-cabeça.” Manifestações contra
Bolsonaro não têm a magnitude, o entu-
siasmo e a energia das demonstrações da
extrema direita. Existe ainda o medo.
Como ir às ruas, se o outro lado está ar-
mado e pronto para atirar, como demons-
tram os assassinatos políticos recentes?

 
Mas de que maneira se daria na prá-
tica uma insurreição bolsonarista? Se
Lula for vencedor, Bolsonaro dirá que a
eleição foi fraudada e se recusará a dei-
xar o Palácio do Planalto. Bolsonaristas
logo sairão às ruas para protestar contra
o “roubo”. Não se pode descartar a eclo-
são de motins das polícias pelo país,
como ocorreu em 2019 e 2020, e o blo-
queio de estradas por caminhoneiros,
como vimos em 2018. A eles poderiam
se juntar boa parte dos 2 mil clubes de
tiro e os milhares de pessoas que detém
licença para a posse de armas. O prédio
do STF seria ocupado, bem como os pa-
lácios de governadores da oposição.
Opositores seriam presos. Bolsonaro
decretaria estado de emergência e colo-
caria o Exército nas ruas – por meio de
uma medida provisória, feita a pretexto
de manter a ordem pública. E passaria
a governar em estado de sítio durante
algumas semanas, quiçá meses.

 
Por melhor que Bolsonaro seja em en-
gajar sua militância, não é tarefa fácil
conduzir uma revolução até o fim. Após
a destruição de prédios públicos e da pri-
são de opositores, o que seria possível fa

er? Parte importante da imprensa e da
elite financeira e industrial provavelmen-
te se manifestaria contra. Os governos
das maiores democracias do Ocidente
talvez protestassem contra a usurpação
do poder. A confusão política teria re-
percussões imediatas na nossa moeda e
no fluxo de investimentos estrangeiros.
Bolsonaro se veria, nos meses seguintes,
em crescentes dificuldades para susten-
tar a tomada de poder. Como a aposta é
arriscada demais, pode ser que ele pre-
fira o terceiro cenário.

 
Nesse último cenário, Bolsonaro, der-
rotado nas urnas, contestaria o re-
sultado e geraria um princípio de
caos, mas evitaria provocar uma insur-
reição. Continuaria insistindo na fictícia
fraude nas urnas e convocaria seus mili-
tantes para protestar nas ruas. Isso gera-
ria alguma violência política, mas ele
deteria o ímpeto revolucionário dos seus
asseclas, da mesma maneira como fez
no Sete de Setembro do ano passado,
quando deu um “cavalo de pau” em seus
apoiadores, desmobilizando as mani-
festações. Essa seria a tática mais inteli-
gente e benéfica para o presidente, que
estaria seguindo o modelo bem-sucedi-
do de Donald Trump.

 
Em 2020, o então presidente norte-
americano não reconheceu a derrota
nas urnas e iniciou uma grande mobili-
zação para contestar o processo eleito-
ral. Stop the steal (Parem o roubo) foi o
slogan mais repetido por seus apoiado-
res. Trump sustentou intensamente a
mobilização por algumas semanas, até
chegar ao fatídico dia 6 de janeiro de
2021, quando, na diplomação do presi-
dente eleito, Joe Biden, incentivou seus
apoiadores a invadir o Congresso. Trump
até hoje não foi devidamente responsa-
bilizado – a CPI montada para investigar
o caso tem sido muito bem conduzida,
mas o processo é demorado. Por mais
antidemocrático e violento que tenha
sido, o 6 de janeiro não passou de uma
performance de Trump para manter sua
base engajada e não deixar que outra fi-
gura do Partido Republicano venha a to-
mar o lugar que ele ocupa no imaginário
político dos seus seguidores.

 
Se for calculista como seu ídolo nor-
te-americano, Bolsonaro, em caso de
derrota, fará o mesmo. Os dividendos
políticos que podem vir dessa decisão
são claros. Ele precisará instigar uma
mobilização poderosa e fazer de conta
que está buscando meios pacíficos para
invalidar o pleito. Dessa maneira, con-
seguirá segurar a fúria da sua base elei-
toral, enquanto a mantém mobilizada.
Nos próximos anos, espalhará a ideia
de que o governo Lula é ilegítimo, ale-
gando que venceu por causa de fraudes
eleitorais. Poderá articular uma oposi-
ção extraordinariamente mobilizada,
capaz de paralisar o país de uma maneira
que ainda não vimos na Nova Repúbli-
ca. Será uma oposição violenta, destru-
tiva, de deixar tucano com saudade de
petista, e petista com saudade de tuca-
no. O crucial para Bolsonaro será man-
ter essa base mobilizada, motivada, e
fiel exclusivamente a ele. Se conseguir,
tem tudo para ganhar as eleições de
2026. Até porque dificilmente o virtual
incumbente conseguirá apresentar um
bom desempenho.

 
O próximo governo enfrentará uma
economia sem capacidade de cresci-
mento e de investimento, e uma ater-
rorizante situação social, educacional
e sanitária. A máquina estatal, princi-
pal arma para combater os problemas
da fome, da saúde e da escolarização
dos brasileiros foi gravemente afetada
nos últimos anos, com o desmantela-
mento da administração federal, o apa-
relhamento dos cargos técnicos por
militares e militantes e a dispersão da
mão de obra. Colocar as coisas no lugar
não será tarefa fácil e exigirá muito em-
penho de reconstrução. Além disso, o
Executivo enfrentará a concorrência do
Judiciário e do Legislativo, ambos cada
vez mais inclinados a disputar funções
governamentais. Para piorar, terá que
enfrentar uma oposição como nunca se
viu, hiperconectada e mobilizada, com
importantes aliados dentro do aparelho
estatal (em particular da polícia) e ar-
mada até os dentes. Fazer um bom go-
verno com todos esses empecilhos à
frente será empreitada muito difícil, o
que só aumentam as chances de retorno
da extrema direita em 2026.

 
Dói constatar que, em qualquer cená-
rio futuro, todas as perguntas giram em
torno de Bolsonaro e seu movimento.
O que será mais estratégico para ele?
Aceitar a derrota e preparar-se para 2026
ou incitar à insurreição? Qualquer que
seja a opção, é Bolsonaro, e não Lula, o
personagem que ditará os próximos anos
da política nacional. Derrotar o bolsona-
rismo deve ser a obsessão política dos
próximos anos, comum a todos os demo-
cratas – de direita, centro ou esquerda.

 
Em qualquer desdobramento possí-
vel – Bolsonaro eleito, insurgente
ou candidato em 2026 –, uma re-
volução está em marcha. Deixamos de
viver na normalidade democrática. Aqui-
lo que entendemos como aceitável den-
tro do jogo político se expandiu. Todos
os marcadores de certeza, as fontes de
legitimidade e as vozes de autoridade vi-
raram fumaça. Teremos que conviver com
essa nova realidade, que permanecerá
com ou sem governo Bolsonaro.

 
A literatura em ciências sociais sugere
que um acontecimento só pode ser qua-
lificado como “revolução” com a dis-
tância histórica necessária. Não existe
maneira de prever uma revolução, mas é
possível identificar com maior proprie-
dade aquilo que o sociólogo norte-ame-
ricano Charles Tilly chama de “situação
revolucionária”. No caso brasileiro, a
sociedade passou por importantes trans-
formações que contribuem para caracte-
rizar um estado de coisas que seriam
indícios de uma situação revolucionária.

 
A primeira grande transformação
tem a ver com a fé de nossa gente. O Bra-
sil conserva a posição de ser o maior país
católico do mundo, mas essa realidade
estatística não se traduz concretamente
em política. Os católicos ainda são maio-
ria (64,6%, segundo o último Censo, de
2010), mas quantos deles são católicos
para valer? Quantos têm o catolicismo
como identidade norteadora de seus com-
portamentos, escolhas e afetos políticos?
O Brasil é majoritariamente católico
por inércia.

 
O país está se tornando uma na-
ção predominantemente pentecostal e
neopentecostal. O dinamismo social
e os principais influenciadores cristãos
se encontram ao lado das igrejas chama-
das genericamente de “evangélicas”.
A teologia que muda os comportamen-
tos da sociedade brasileira, sua maneira
de consumir, de votar, não é a católica,
mas neopentecostal.

 
A segunda grande transformação está
relacionada à força produtiva mais dinâ-
mica da nossa economia, o agronegócio
– e não mais a indústria. As cidades da
região Centro-Oeste se tornaram, em
três décadas, ricas e modernas. O “agro”,
como foi apelidado, prospera, com uma
contribuição relevante, embora repre-
sente apenas 7% do PIB, como mostrou
a reportagem O agro é top?, publicada
na piauí_192, setembro de 2022.

 
Apesar de minoritário na economia,
o agronegócio é majoritário em termos
políticos. A força propulsora está nele,
que vem organizando e produzindo
conteúdo cultural – com a criação de
centros de pesquisa em universidades,
patrocínio à música sertaneja e veicula-
ção de uma identidade própria. Promove
valores muito mais alinhados ao “aven-
tureiro” do que ao “trabalhador” – reto-
mando os tipos ideais identificados por
Pedro Meira Monteiro na obra de Sérgio
Buarque de Holanda. A coragem e o des-
bravamento substituíram valores como
disciplina, hierarquia e trabalho em equi-
pe que a indústria impõe.

 
A terceira grande mudança é a da des-
centralização da produção de informa-
ção. Isso aconteceu no mundo inteiro,
mas é particularmente forte no Brasil.
Passamos de uma situação em que a pro-
dução de informação estava concentra-
da em pouquíssimas empresas para
outra, em que quase todo cidadão com
um smartphone se tornou um produtor
potencial. O brasileiro é um dos que pas-
sam mais tempo nas redes sociais, e um
estudo recente apontou que o Brasil é
onde se encontra o maior número de
influencers. Os influenciadores digitais
têm suas atividades e, quanto mais sen-
sacionalistas são, mais engajamento ge-
ram. Por outro lado, grande parte da
população sequer tem acesso à internet.
Bolsonaro articulou muito bem essas
três dinâmicas – da religião, do
agro, do digital –, abraçou a força
propulsora de cada uma, e enunciou
uma visão de mundo. Construiu uma
nova maioria política a partir dessas for-
ças, que hoje estão conectadas entre si.
Criou uma nova gramática política, deli-
neou um novo programa da verdade e
apresentou um horizonte de expectativas
claro para esses segmentos da população.
Muitos dizem que é preciso mostrar
aos empresários do agronegócio que
Bolsonaro vai contra os interesses de-
les. Sobre isso, existe ampla evidência,
mas não é esse o ponto. Quem vota em
Bolsonaro não está necessariamente
pensando em seus interesses, mas no
voto como força de transformação da
realidade. Vota-se não para delegar in-
teresses a um representante na esfera
política, mas como se clicasse o like em 

uma rede social. Ou seja, o voto seria
mera demonstração de uma concordân-
cia com as opiniões de Bolsonaro.

 
A pergunta a ser feita é: “Como po-
demos evitar que essas dinâmicas se tor-
nem hegemônicas nos próximos anos?”
Com Bolsonaro reeleito, esse esforço ca-
berá exclusivamente à sociedade civil.
Não será suficiente resistir apenas, como
se fez bravamente nos últimos quatro
anos. Será preciso articular novos sujei-
tos políticos com grande capacidade de
mobilização, aptos a se construírem po-
liticamente e a produzirem lideranças no
futuro próximo.

 
A política já não está atrelada apenas
à melhoria das condições materiais de
vida. Existem outros elementos, como
os sonhos, ideais, expectativas, e nesse
contexto a produção de discurso é tam-
bém um fator de alinhamento político
fundamental. A política que só se ocu-
pa das condições materiais e deixa de
lado a dimensão mais ligada ao “dese-
jo” comete o mesmo erro dos governos
tecnocráticos do passado. Com isso, deixa
toda a construção de desejo na política
para a extrema direita.

 
Com Bolsonaro derrotado, essa tarefa
caberá também aos que tomarão posse.
Para estancar a revolução bolsonarista
em marcha, não bastará fazer um gover-
no consensual como foi o de Lula ante-
riormente, ou de união nacional, como
o de Itamar Franco. Não há desenvolvi-
mento econômico possível, crescimento
ou melhora nas condições de vida que
fará com que o bolsonarismo deixe de
existir. Mesmo num país em que a vida
prospera, ele continuará forte.

 
O próximo governo precisará ter no
combate ao bolsonarismo o denomina-
dor comum de uma ampla coalizão de
forças antagônicas, de esquerda, centro
e direita. Esse combate não deverá se
dar no plano simples da retórica ou na
forma de uma caça às bruxas – como foi
o caso do antipetismo –, mas precisará
constituir um trabalho estratégico de
desidratação do bolsonarismo. Trata-se
de combatê-lo de maneira pacífica, ho-
nesta e positiva, por meio do fortaleci-
mento da democracia, e não apenas das
instituições, como foi feito ao longo da
Nova República. Para fortalecer a de-
mocracia, precisamos construir uma
sociedade democrática.

 
Ora, não pode haver uma sociedade
verdadeiramente democrática quando o
poder de um cidadão ameaça a existên-
cia de outro. A mais importante missão
da democracia não é realizar eleições
ou garantir o direito à propriedade, mas
proteger o cidadão frágil em toda e qual-
quer circunstância. O próximo governo
deveria fazer, logo nos primeiros meses,
um pacote de medidas de choque para
a proteção da fragilidade.

 
A primeira medida é desarmar a po-
pulação imediatamente, seja proibindo
o porte e a posse de armas, seja taxando
exorbitantemente a indústria de arma-
mentos. A segunda é reduzir o dinamis-
mo dos três eixos do qual se alimenta o
bolsonarismo: todos, sem exceção, rece-
bem generosos benefícios fiscais.

 
Rever os subsídios diretos e indiretos
do agronegócio é uma necessidade de
ordem democrática. O setor é causador
de importantes externalidades negativas
– quando uma atividade impõe um efei-
to negativo aos que não estão envolvidos
nela – e não nos indeniza por isso. A títu-
lo de exemplo, as constantes e sucessivas
flexibilizações de agrotóxicos poluem a
água que consumimos em nossas cida-
des, são fatores de risco para a população
e quem paga é o contribuinte, por meio
do SUS. Enquanto isso, sobra dinheiro no
setor para fazer marketing e melhorar a
imagem do “agro”, bem como para di-
fundir massivamente nos meios de co-
municação o estilo sertanejo, a fim de
torná-lo cada vez mais hegemônico na
cultura brasileira. Compensar esse dese-
quilíbrio é papel do Estado.

 
No caso das igrejas neopentecostais,
a organização empresarial que algumas
adotam representa um problema para
outras igrejas com menor poder econô-
mico e, sobretudo, para a democracia.
A intolerância religiosa promovida por
algumas delas também não pode ser
tolerada. É necessário que o próximo
governo coíba esse discurso de ódio e
assegure efetivamente a liberdade reli-
giosa no país. Com o objetivo de manter
o pluralismo religioso característico do
Brasil, é preciso rever a relação do Esta-
do com as grandes corporações empre-
sariais eclesiásticas e garantir que elas
atuem conforme os princípios constitu-
cionais. A política tem que parar de con-
taminar a religião, e vice-versa.

 
Por fim, o ambiente hiperconectado
das redes sociais, que gera os influen-
ciadores digitais, deveria ser mais bem
regulado. Reduzir os incentivos para a
propagação de discursos de ódio e de
fake news é condição necessária para
começarmos a imaginar uma socieda-
de democrática.

 
Para além dessa agenda defensiva, é
preciso criar uma agenda ofensiva, em
que os serviços públicos, como educa-
ção, saúde e moradia, se universalizem
verdadeiramente e sejam dotados de
qualidade. Não há como sustentar uma
sociedade democrática com os níveis
de desigualdade social e racial que exis-
tem no país.

 
Seja qual for o resultado – com Bol-
sonaro eleito ou derrotado –, o bolsona-
rismo seguirá ameaçando as instituições
e a cidadania. O futuro da democracia
no Brasil dependerá como nunca das
ações enérgicas dos que se opõem à ex-
trema direita e de um esforço incansá-
vel da sociedade civil em busca de um
maior equilíbrio de forças. 

PIAUI 

 

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