September 10, 2022

Não ao futuro

 



Uma maioria expressiva rejeita a nova Constituição e a esquerda busca um bode expiatório para a derrota

POR SERGIO LIRIO..

Três anos no Chile parecem uma eternidade. No domingo 4, saudosos pinochetistas agitavam bandeiras e promoviam uma sinfonia de buzinas na Avenida Bernardo O’Higgins, ou simplesmente Alameda, principal via da capital Santiago. Quase não se viam chilenos de origem indígena em meio à multidão que celebrava a vitória incontestável do “não” à nova Constituição elaborada para enterrar de vez a carta autoritária e neoliberal imposta durante a ditadura de Augusto Pinochet: 61,9% dos eleitores rejeitaram a proposta da Assembleia Constituinte. Nem parecia a mesma rua, a mesma cidade e o mesmo país de 2019, quando manifestantes inflamados ocuparam por semanas a Alameda e a transformaram em um símbolo da insatisfação popular com um modelo econômico que, a despeito de ter produzido uma das rendas per capita mais elevadas do Cone Sul, cerca de 13 mil dólares, só beneficia uma minoria.  

Os protestos de 2019 moveram as placas tectônicas da política chilena. A Assembleia Constituinte, aprovada por 78% dos eleitores em um referendo em agosto do ano seguinte, nasceu da pressão das ruas, assim como a candidatura vitoriosa de Gabriel Boric, político de esquerda de 36 anos forjado no movimento estudantil e com ideias que superam o bolorento caudilhismo sul-americano e conceitos ultrapassados dos tempos da Guerra Fria. A esquerda mundial voltou os olhos para o Chile, mas, cinco meses após a posse de Boric, o medo venceu a esperança. “Além das legítimas divergências, sei que prevalece a vontade de diálogo e encontro”, contemporizou o presidente em cadeia nacional de rádio e tevê na noite do domingo. “O povo não ficou com a proposta de Constituição que a convenção apresentou ao Chile e, portanto, decidiu rejeitá-la de maneira clara nas urnas. Mas deixemos para trás maximalismos, violência e intolerância.”  


A rejeição ao trabalho da Constituin-
te confunde-se com a decepção inicial
em relação ao governo. A crise econômi-
ca aprofundada pela pandemia, associa-
da à recente disparada da inflação, jogou
a popularidade de Boric na sarjeta. No
fim de junho, apenas 24,6% dos chilenos
aprovavam a gestão do presidente empos-
sado em março. Sem forças para influen-
ciar no plebiscito, resta ao jovem manda-
tário tirar lições do episódio. No pronun-
ciamento oficial em que aceitou humilde-
mente a derrota, Boric afirmou ter enten-
dido o recado dos eleitores. Dois dias de-
pois, na terça-feira 6, iniciou uma refor-
ma ministerial com a troca de quatro au-
xiliares. “Fazer frente a esses importantes
e urgentes desafios exigirá ajustes rápi-
dos em nossas equipes governamentais”,
declarou. Mais difícil será encontrar ma-
neira de retomar ainda neste mandato o
debate sobre uma nova Constituição, em-
bora a maioria dos chilenos deseje a subs-
tituição da Carta pinochetista e o presi-
dente tenha garantido que a luta continua,
companheiro: “Estou empenhado em fa-
zer tudo da minha parte para construir,
juntamente com o Congresso e a socieda-
de civil, um novo caminho constituinte”.
Após o fim da ditadura, o Parlamento con-
seguiu excluir os artigos que exacerbavam
os poderes do aparato de repressão e limi-
tavam os direitos políticos e individuais,
mas os capítulos econômicos ultralibe-
rais, redigidos por egressos da Escola de
Chicago, continuam praticamente intac-
tos. O jogral entre a Concertácion, fren-
te de centro-esquerda, e representantes
da direita liberal que vigorou desde a der-
rubada de Pinochet engessou o sistema e
impeliu os governos a promover retoques
cosméticos no “celebrado” modelo chile-
no – até a explosão dos protestos de 2019.



Enquanto os derrotados nas últimas
eleições presidenciais e os mercados ce-
lebravam o resultado do plebiscito – na
segunda-feira 6, a Bolsa local subiu mais
de 3% e o peso valorizou-se ante o dólar –,
a esquerda lambia as feridas e iniciava a
habitual caça às bruxas para identificar
os culpados pelo vexame nas urnas. Para
certa linha de pensamento, a responsabi-
lidade pesa sobre os ombros do grupo de
constituintes que teria preferido enfati-
zar questões identitárias a focar nos direi-
tos básicos dos cidadãos, entre eles saúde
educação e previdência. Não que os temas
econômicos tenham sido esquecidos. Ao
contrário. O texto previa a criação de um
SUS chileno, majoritariamente público,
e alterava o modelo de aposentadorias: a
capitalização individual, que condena a
maioria dos pensionistas a receber menos
do salário mínimo local, de 400 dólares,
seria substituído por um sistema tripar-
tite, baseado em contribuições propor-
cionais dos trabalhadores, das empresas
e do governo. Os eleitores foram, no en-
tanto, bombardeados por mentiras e dis-
torções a respeito de pautas de costume e
identidade contemplados na proposta: a
criação de um Estado plurinacional, com
reconhecimento da Justiça indígena – as
etnias representam 12,8% da população –,
a liberação do aborto e os mecanismos de
democracia direta e paritária.

O historiador Célio Turino assistiu
in loco as polêmicas em torno da nova
Constituição. Nos últimos meses, a con
vite do governo Boric, o brasileiro acom-
panhou a implementação no país de um
programa semelhante aos pontos de cul-
tura criados durante os mandatos petis-
tas. No Twitter, Turino corroborou a tese
de que os defensores do processo consti-
tuinte falharam na comunicação e foram
atropelados pela rede de desinformação
dos opositores. “Inegavelmente, as for-
ças pró-Constituição caíram na armadi-
lha de dar enfoque a conceitos e procedi-
mentos ainda não plenamente compreen-
didos pela população e falaram pouco so-
bre as conquistas sociais e econômicas de
interesse da maioria”, escreveu. “Os de-
fensores do Apruebo ficaram enredados
na proteção da pauta de costumes, reba-
tendo fake news e firulas. Também abri-
ram a guarda na redação ambígua de al-
gumas questões, justas, mas que necessi-
tavam de melhor explicação e aprofunda-
mento, como plurinacionalidade e povos
indígenas, gênero e direitos da natureza.”

Seria, no entanto, ingenuidade ignorar
a influência do “gabinete do ódio” chile-
no e da mídia dominante na esmagadora
rejeição ao projeto. O mecanismo profis-
sional de mentiras e boatos nas redes so-
ciais não encontra barreiras de contenção
na América do Sul. Funcionou para im-
plodir o acordo de paz na Colômbia, pavi-
mentou a vitória de Bolsonaro no Brasil e
agora produz estragos no Chile. “Eu não
culparia o texto”, declarou à Deutsche
Welle a especialista em processos cons-
titucionais Ester Rizzi, da Universidade
de São Paulo. “Ele é bastante democráti-
co, mas criou-se uma narrativa de relação
com ditaduras de esquerda. Foi dito que
o país iria virar uma Chilenzuela. De al-
guma forma, conseguiram associar essa
nova Constituição a um processo autori-
tário. Tinha também uma coisa de achar
que a Carta dividia os cidadãos, punha
em risco a unidade do Chile.” A sombra
de Pinochet paira sobre os Andes.

CARTA CAPITAL

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