July 4, 2022

Moradores de um bairro de Kharkiv se deparam com a cidade em ruínas

 

Natalia Tkachuk, 40, and her daughter Anastasia, 11, shelter from Russian shelling inside the Heroiv Pratsi underground station in the Kharkiv suburb of Saltivka.

PJ OT R S AU E R , D E K H A R K I V

Tatyana Marchenko, de 63
anos, quando voltou para
sua casa em Kharkiv no iní-
cio deste mês, entrou num
mundo de destruição. Rou-
pas e brinquedos de crianças estavam
espalhados pelos caminhos entre os pré-
dios incendiados, muitos dos quais ti-
nham buracos enormes por onde as
bombas entraram. “Vivi no mesmo bair-
ro, Saltivka, minha vida inteira. E agora
acabou, é um show de horrores.”
Saltivka – um conjunto habitacional
da classe trabalhadora da era soviéti-
ca, inicialmente destinado aos operá-
rios da cidade e suas famílias – abriga-
va cerca de 600 mil habitantes antes da
guerra, o que o tornava um dos maio-
res bairros da Europa. Embora reco-
nhecidamente superlotado, era cheio
de energia, lembrou Marchenko. Mas
desde o início da invasão pela Rússia,
há quatro meses, a região tem sofrido
o impacto do bombardeio implacável
de Moscou contra a segunda cidade da
Ucrânia. Agora, o bairro parece uma
cidade fantasma.
Marchenko, como muitos outros, dei-
xou Kharkiv, a apenas 40 quilômetros da
fronteira russa, com seu marido nos pri-
meiros dias da guerra, quando tanques
inimigos ameaçavam invadir a cidade.
Retornou este mês, encorajada por re-
latos de amigos e autoridades de que o
bombardeio estava diminuindo, após
uma contraofensiva ucraniana bem-
-sucedida que afastou as forças russas
dos arredores da cidade. Outros saíram
das estações de metrô próximas, que fo-
ram transformadas em abrigos onde vi-
veram durante semanas. Coletivamen-
te, agora eles tentam conduzir suas vi-
das no bairro mais destruído da cidade.
Muitos moradores de Saltivka não
têm acesso a gás, eletricidade ou água
corrente, e Marchenko é obrigada a car-
regar grandes garrafas de água até seu

apartamento. “Pelo menos mantenho
a forma, mas não era assim que ima-
ginava minha aposentadoria”, disse
Marchenko, que trabalhou durante 30
anos no correio local. Ela se considera,
porém, uma felizarda. Seu apartamen-
to ficou praticamente intocado, além dos
pequenos estilhaços que quebraram as
janelas e continuavam espalhados pela
casa quando ela voltou.
Andando por Saltivka, a pura aleato-
riedade dos ataques da Rússia rapidamen-
te se torna aparente – um quarteirão atin-
gido, o próximo intocado, um apartamen-
to transformado em ruínas, outro intacto.
Logo abaixo de Marchenko, no nono an-
dar, um foguete MLR russo destruiu
o apartamento de sua vizinha e velha
amiga Nastia. “Olhe para isso”, disse
Marchenko, enquanto descia um andar
para mostrar um grande buraco redondo
no que antes era a sala de estar de Nastia.
“Neste lugar nossos filhos cresceram jun-
tos. Todas essas memórias se foram.”
Algumas famílias perderam suas casas
ou permanecem nos subterrâneos por-
que ainda estão com muito medo dos ata-
ques russos. Na estação de metrô Heroiv
Pratsi (Heróis do Trabalho), no norte de
Saltivka, cerca de cem pessoas, na maio-
ria mulheres e crianças, ainda estão es-
condidas, apesar da reabertura do metrô
no início deste mês. Para piorar as coisas,
a relativa calma que levou Marchenko e
outros a retornarem foi, afinal, enganosa.
Na semana passada, Kharkiv sofreu al-
guns dos piores bombardeios russos, que
matou mais de 15 moradores, enquanto
crescem as preocupações em Kiev, a ca-
pital, de que agora a Rússia esteja prepa-
rando outro ataque à cidade.
As forças russas estão a poucos quilô-
metros de Saltivka e, de seu apartamen-
to, Marchenko pode ver tropas ucrania-
nas reorganizando suas posições na flo-
resta que se limita com o bairro. Ao longo
do dia, explosões eram ouvidas ao fundo,
mas muitos em Saltivka agora simples-
mente dão de ombros, sem se impressio-
nar e quase acostumados com a ameaça
de perigo que não os deixa mais acorda-
dos à noite.
Em algum lugar na linha de frente esta-
va o filho de Marchenko, disse ela, apon-
tando para um pequeno santuário que fez
para ele em seu apartamento. “Meu filho
não era um assassino e não planejava se
alistar para lutar. Mas algo mudou nele
depois que viu os russos bombardeando
civis”, disse ela. “Estou tão feliz porque
ele está defendendo nosso país.”

Saltivka é sem dúvida o testemunho
mais poderoso que contradiz as repeti-
das afirmações da Rússia de que seus mi-
litares não têm como alvo a infraestrutu-
ra civil. “No começo, achamos que a Rús-
sia estivesse apenas recebendo informa-
ções erradas, pensando que nossos solda-
dos poderiam estar escondidos em pré-
dios civis”, afirma Sergei Bolvinov, che-
fe do departamento de investigação da
força policial da região de Kharkiv. “Mas
agora vemos que esse sempre foi o plano
– atacar a infraestrutura civil.”
No total, diz ele, cerca de 2 mil edifí-
cios foram gravemente danificados na ci-
dade, muitos dos quais não serão repa-
rados. “Saltivka, especialmente no nor-
te, está completamente destruída.” Não
muito longe da casa de Marchenko fi-
ca o devastado mercado Barabashova.
Antes da guerra, era o maior e um dos
mais movimentados mercados da Eu-
ropa. Algumas das poucas lojas que per-
manecem abertas na passagem abando-
nada e infestada de lixo vendem flores.
“Não há mais namoros aqui, mas temos
enterros”, comenta Anastasia, dona de
uma floricultura com o mesmo nome.
Anastasia afirma que apenas um dia
antes de a Rússia lançar a invasão ela fez
um pedido “enorme” de tulipas holande-
sas para 8 de março, Dia Internacional da
Mulher. Desde os tempos da União Sovi-
ética, a data tem sido amplamente come-
morada na Rússia e na Ucrânia, com os ho-
mens muitas vezes gastando uma fortuna
em flores para suas esposas, mães e irmãs.
As tulipas estavam quase apodrecendo.
“Elas não são para funerais. As famílias
dos soldados mortos só querem lírios.”
A florista diz que ainda está “se chu-
tando” pelo pedido de tulipas, e que pra-
ticamente ninguém na cidade de língua
russa poderia imaginar que seu grande
vizinho realmente invadiria o país. “Ain-
da penso todos os dias: eu devia ter pre-
visto isso? Devia ter feito esse pedido?”
Estar tão perto da fronteira fez que
muitos em Kharkiv, como Anastasia,
cujo tio morava na Rússia, desenvolves-
sem amplos laços culturais e familiares
com o país vizinho. A guerra serviu co-
mo uma ruptura decisiva entre a cida-
de e Moscou. “Tudo mudou em 24 de fe-
vereiro e não há como voltar atrás”, dis-
se Bolvinov, o chefe de polícia local que
agora se recusa a falar russo no trabalho.
Na quarta-feira 22, a maior universi-
dade de Kharkiv anunciou o fechamen-
to de seu Departamento de Literatura
Russa, reorganizando-o no Departa-
mento de Filologia Eslava. A cidade tam-
bém planeja renomear mais de 200 ruas
ou praças que celebram artistas, escrito-
res e figuras históricas russas. Para mui-
tos em Saltivka, as mudanças simbólicas
fizeram pouca diferença em sua luta di-
ária para sobreviver e seguir em frente.
A maioria dos moradores continua
sombriamente pessimista sobre as pers-
pectivas de a guerra terminar em breve.
“Quem sabe quanto tempo isso vai durar?
Não podemos viver assim por muito mais
tempo”, disse Artyom Belousov, 45, que
ficou em Saltivka durante a guerra para
cuidar de sua mãe que sofre de demência.
A luta na Ucrânia se transformou nu-
ma sangrenta guerra de desgaste, com
ambos os lados fazendo poucos avanços
estratégicos. Líderes ocidentais começa-
ram a alertar que poderá levar anos pa-
ra a guerra terminar. E as autoridades lo-
cais temem que, mesmo que a Ucrânia
consiga expulsar o exército invasor do
país, a Rússia ainda poderá disparar fo-
guetes da cidade de Belgorod, do outro
lado da fronteira.
Belousov, fumando um cigarro, diz
que tenta não pensar nos meses difíceis
que estão por vir. “E se o inverno chegar e
ainda não tivermos aquecimento? O que
será de nós?”

CARTA CAPITAL / THE OBSERVER

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