June 23, 2022

A narrativa precisa e eloquente de Amigo Secreto

 Imagens a quente. A diretora Maria Augusta Ramos escancara as arbitrariedades cometidas pelos procuradores da Lava Jato e pelo ex-juiz Sergio Moro - Imagem: Ana Paula Amorim e Vitrine Filmes

 

Por Ana Paula Sousa e Cássio Starling Carlos

Anuvem negra que encerra 

va O Processo (2018) pare-
ce, em Amigo Secreto, ter se
espalhado e coberto o po-
der e o País. O novo docu-
mentário de Maria Augusta Ramos, em
cartaz nos cinemas desde a quinta-feira
16, prolonga e complementa o registro des-
te momento turvo da história brasileira.
Se, em O Processo, a cineasta filmou
os seis meses da crise política que desa-
guou no impeachment de Dilma Rousseff,
em Amigo Secreto ela procura sintetizar,
a partir de recursos da linguagem docu-
mental, as arbitrariedades e as violações
praticadas pelos procuradores da Lava Ja-
to e pelo ex-juiz Sergio Moro. O primeiro
era um filme retrospectivo e, portanto,
mais frio. Este foi feito no calor da hora.

 
“Em geral, faço filmes que me incomo-
dam, me inspiram e me dão medo tam-
bém. E o que tem acontecido à democra-
cia, com as arbitrariedades da Lava Jato,
me toca profundamente”, diz a diretora,
em entrevista a CartaCapital. “Ver o País
no estado em que a gente vê hoje, e se dar
conta do nível de ilegalidade da Lava Jato
é algo que tem de ser documentado.”
Maria Augusta adota, como fio narra-
tivo, o trabalho de investigação jornalís-
tica que tomou por base as mensagens va-
zadas em um grupo nomeado Amigo Se-
creto. As imagens acompanham o traba-
lho de investigação conduzido pelos jor-
nalistas Leandro Demori, então editor-
-executivo do Intercept Brasil, e Carla Ji-
menez, Regiane Oliveira e Marina Rossi,
do El País Brasil, alguns dos veículos a re-
velar o conteúdo das mensagens.

 
A presença de repórteres como me-
diadores nas entrevistas com juristas, ad-
vogados e acusados acentua a eloquência
da leitura de Maria Augusta. O filme expõe
as fragilidades de parte da imprensa em
sua relação, sem questionamentos, com
representantes do Ministério Público,
cujos interesses políticos ficaram masca-
rados pela agenda do combate à corrupção

A estratégia narrativa permite 

Amigo Secreto depurar o jornalismo, ex-
pondo suas falhas, seu papel danoso na
Lava Jato, movido pela crença apressa-
da em versões, sem, com isso, desconsi-
derar o papel crucial da imprensa. “Evi-
to também desqualificar a Justiça como
um todo”, apressa-se em ponderar a dire-
tora, quando o tema surge na entrevista.

 
“Muito do que se fala no filme nós já
sabemos, porque ele se baseia em repor-
tagens”, pondera. “Mas procuramos fazer
uma releitura da Vaza Jato. A gente fez o
filme para a memória, para ele ser visto
daqui a 10, 15 anos.” Isso não significa que
Amigo Secreto não esquente ainda mais o
caldeirão em que ferve a política no Brasil.

 
O depoimento dadopor Alexandrino
Alencar, ex-executivo da Odebrecht, so-
bre as delações premiadas da Lava Jato
já saiu do filme para o noticiário. Nele,
Alencar fala pela primeira vez, em públi-
co, sobre as pressões sofridas para que,
em seu acordo de colaboração, compro-
metesse o ex-presidente Lula. “Ele foi o
único a topar dar entrevista. Procura-
mos todos os envolvidos, mas Moro e ou-
tros procuradores não toparam”, relata a
diretora. “O depoimento do Alexandrino
era essencial para se compreender a La-
va Jato e as violações.”

 
As entrevistas, ausentes em outros do-
cumentários da diretora, surgem emAmi-
go Secreto como um elemento central. Ma-
ria Augusta assume que, desta vez, fez um
filme menos austero ou, em suas palavras,
menos “bressoniano” – sinônimo, no ci-
nema, de minimalismo e distanciamento.
“Tentei um distanciamento pelo tra-
balho de câmera, que é sempre fron-
tal, pela escolha de contar essa história
por meio de pessoas reais e pela monta-
gem”, detalha, referindo-se à colabora-
ção criativa de longa data com a monta-
dora Karen Akerman. “Mas é um filme
feito sob o calor da emoção e era impossí-
vel a gente ver o que estava acontecendo e

não ser tocado por aquilo, mantendo-se
na austeridade do roteiro, da estrutura.
Existe um comprometimento com a ver-
dade, com a ética, mas é um filme subjeti-
vo. Cada corte, cada fala é uma escolha.”

 
Nada disso, no entanto, aparta Ami-
go Secreto de uma das características
mais eloquentes do trabalho da cineas-
ta: o autocontrole. A filmagem em meio
ao desenrolar dos acontecimentos não a
impede de imprimir seu temperamento
frio no material. Manter-se fiel ao enca-
deamento factual e saber escutar o tem-
po narrativo são qualidades que, aqui, fa-
zem toda a diferença.

 
Desde a campanha presidencial e du-
rante seu governo, Jair Bolsonaro implan-
tou um método de bombardeamento diá-
rio de factoides, embaralhando o foco dos
outros poderes e da população. A estraté-
gia, bastante eficaz, induziu o País a só re-
agir, em vez de agregar forças para agir.
Amigo Secreto não cede a este estímulo
de bombardeio. O filme sintetiza os mo-
mentos cruciais da transformação bolso-
narista e, no lugar da fragmentação alu-
cinatória em que o País está mergulha-
do desde 2019, oferece uma continuida-
de, uma progressão. A narrativa elimina
os ruídos e nos força a ouvir o essencial.
Nascida em Brasília, em 1964, Maria
Augusta formou-se em Música na Uni-
versidade de Brasília (UnB) e deu segui-
mento aos estudos em musicologia e ele-
troacústica na França e na Inglaterra. Em
1990, mudou-se para a Holanda, onde vive
até hoje, e lá começou a estudar cinema.

 
Desde o primeiro longa-metragem,
Brasília, Um Dia em Fevereiro (1996)
chamou atenção pelo domínio do méto-
do e da linguagem. Com Justiça (2004),
que mostra a rotina desumanizadora de
juízes, advogados e delinquentes das va-
ras criminais brasileiras, começou a ga-
nhar projeção no Brasil e no exterior. Na
sequência, viria Juízo (2007), passado em
um Tribunal de Infância e Juventude do
Rio de Janeiro, onde as vidas são, desde
cedo, moídas por um sistema sem saída.
Esses dois projetos, embora pareçam
distintos dos dois filmes mais recentes, já
traziam a semente de cada um deles. “Mi-
nha obra, desde Justiça, tem focado no sis-
tema de Justiça”, diz. “Me interessa muito
relatar as relações humanas, sociais e de
poder através do que eu chamo de teatro da
Justiça – as audiências, as falas jurídicas.
Não tinha como não falar da Lava Jato.”
Amigo Secreto, assim como O Proces-
so, não teve nenhum dinheiro público.
Coproduzido pela Vitrine Filmes, foi fi-
nanciado pelo Grupo Prerrogativas, pelo
Instituto para Reforma das Relações en-
tre Estado e Empresa (Iree), pelo canal
alemão ZDF, pelo canal franco-alemão
ARTE e pelo fundo holandês de apoio ao
cinema. “Foi uma luta, mas não poderí-
amos pedir recursos públicos no Brasil
porque é um filme que lida profunda-
mente com a questão política”, afirma.

 
Documentarista experiente e artista
consciente do papel da linguagem, Ma-
ria Augusta tem clareza não apenas da
relação de continuidade entre os dois fil-
mes como do significado do lançamento
de Amigo Secreto a cinco meses das elei-
ções presidenciais. “Temos eleições que
vão definir os rumos do País, estamos em
um momento perigoso de ataque à demo-
cracia e o tema do filme tem de ser tra-
tado, tem de ser visto”, diz. “As pessoas
que vão votar devem conhecer os reais
fatos por trás da narrativa que a Lava Ja-
to criou. Não consigo fazer filmes com fi-
nal feliz, mas o nosso final feliz pode ser
o resultado das eleições.”

 
Embora, atualmente, quase todos os
longas-metragens cheguem às salas de
cinema tendo já definido o seu destino no
streaming, Amigo Secreto, segundo Maria
Augusta, provavelmente terá de aguardar
um pouco até chegar a essa outra janela. “A
gente só vai ter uma posição clara sobre is-
so depois das eleições, se é que vocês me
entendem”, diz, com sua fala sempre pau-
sada, e a voz em tom baixo. “Há interesse
da parte das plataformas, mas nenhuma
decisão será tomada antes das eleições.”

CARTA CAPITAL 

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