P O R K A I M I C H A E L K E N K E L *
A questão de “quem
guarda os guardiões”
– ou seja, de como su-
bordinar os meios de
violência do Estado ao
controle político civil
– é conhecida desde os tempos de Platão.
Essa pergunta se impõe na vida pública
brasileira desde o período colonial, mas
sob o governo Bolsonaro ganhou urgência
e agudez inéditas na era democrática. Um
olhar comparativo inter-
nacional, usando crité-
rios objetivos, demonstra
claramente quanto o Bra-
sil se afastou dos padrões
democráticos de contro-
le civil das Forças Arma-
das nos últimos três anos.
O dilema fundamen-
tal é que o Estado pre-
cisa de Forças Armadas
para sua defesa externa,
mas a força – ou mesmo
a sua ameaça – não po-
de se impor sobre a de-
liberação participativa
que define a democracia.
No fundo, trata-se de um
embate entre duas culturas. Na cultura in-
terna de uma força armada, legitimidade
e poder têm sua fonte na hierarquia e na
disciplina, a discordância não é tolerada.
Essa visão combina legitimamente com a
função militar: no meio do combate, nu-
ma trincheira ou numa corveta, subme-
ter cada ordem a um debate estendido se-
ria fatal. Na cultura democrática, baseada
na deliberação, na participação (ou repre-
sentatividade) e na transparência, é não o
fazer que se revela fatal.
A democracia não per-
mite a existência de âm-
bitos separados isentos
dos seus princípios basi-
lares. Como reconciliar,
então, essas duas cultu-
ras necessárias? As de-
mocracias consolida-
das adotam um modelo
que organiza as Forças
Armadas segundo os pró-
prios requisitos internos,
mas delimita claramente
esse âmbito e o subordi-
na firmemente ao con-
trole de líderes civis,
cuja legitimidade emana
guentados momentos decisivos, mas na
forma da “tática do salame”, acabado por
mil fatias fininhas: gradativamente, sor-
rateiramente, e às vezes até a convite dos
próprios civis. Assim, a democracia e o
controle civil são questões de grau, por-
tanto, décadas de estudos nos deixaram
com indicadores muito claros da sua
qualidade. Três tipos de critério são os
mais imperativos: os formais, que lidam
com os arranjos institucionais; os norma-
tivos, que mostram quem está ganhando
de fato o embate de valores; e os discur-
sivos, que ilustram de que forma se nar-
ram a história e a identidade da nação. É
nesses critérios, na sua comparação com
democracias consolidadas, que se revela
o retrocesso democrático acarretado pe-
lo governo Bolsonaro.
Dentre muitos, quatro elementos ins-
titucionais são fundamentais para a ma-
nutenção de Forças Armadas democrá-
ticas. O primeiro é um Ministério de
Defesa sob controle civil. O Brasil foi um
dos últimos países do mundo a cumprir
esse passo: demorou 15 anos após o fim
da ditadura para fazê-lo, superando for-
te resistência fardada. Contrariando seu
propósito no modelo das democracias
consolidadas, o Ministério da Defesa bra-
sileiro foi ocupado, desde a sua criação,
por uma significativa maioria de milita-
res da ativa. Mais divergente ainda do pa-
drão internacional, sob Bolsonaro, o car-
go de ministro foi exercido por dois gene-
rais que haviam ido muito recentemente
para a reserva. Embora na América do
Sul essa prática possa existir esporadi-
camente, nas democracias consolidadas
os ministros (e ministras!) são civis. Nos
raros casos onde se nomeia um ex-mili-
tar de carreira, países como os EUA exi-
gem um hiato de sete anos para garantir
a autonomia do nomeado diante dos in-
teresses corporativos castrenses.
Se, na democracia, o posto de minis-
tro da Defesa se exerce por um civil, a no-
meação de militares da ativa ou que foram
para a reserva recentemente para chefiar
pastas civis é igualmente considerada um
grave retrocesso no controle democráti-
co. Bolsonaro nomeou não menos que se-
te militares de carreira para postos civis
no seu gabinete desde 2019; o ápice veio
com a imperícia mortífera do general de
divisão da ativa Eduardo Pazuello como
titular da Saúde, no lugar de profissionais
médicos, em tempos pandêmicos. Para
agravar ainda mais o quadro, num mo-
vimento inédito nessa escala em outros
países de regime democrático, no gover-
no Bolsonaro, mais de 6 mil militares, da
ativa ou da reserva, ocupam cargos discri-
cionários na administração federal.
Mas por que o padrão democrático se
opõe à nomeação de militares para pos-
tos civis? Uma parte da resposta reside
no isolamento da esfera militar da so-
ciedade civil e, assim, dos seus valores.
Democracias consolidadas enxergam na
falta de espaços de contato cotidiano en-
tre seus soldados e a população civil, com
suas normas e valores – através de siste-
mas judiciários e administrativos em co-
mum, escolas civis compartilhadas, ou
atividades sociais e de lazer –, uma poten-
cial ameaça para a sua integração na de-
mocracia. Enxerga-se, nesse padrão, que o
risco de nomear um militar para um car-
go de chefia na democracia é que ele pode
ter feito a sua formação inteira unicamen-
te dentro do estamento militar.
Essa formação pode ter grande quali-
dade técnica, mas não está voltada, como
a sua homóloga civil, à transmissão de va-
lores da cultura cotidiana democrática,
baseada na discordância construtiva, na
crítica livre, na tomada de decisão parti-
cipativa e na primazia civil. O isolamento
da convivência cotidiana civil foi visto, no
momento do restabelecimento das Forças
Armadas da Alemanha Ocidental, em
1955, como extremamente nocivo e, de fa-
to, como uma das condições permissivas
do Holocausto presentes da sociedade ale-
mã. A integração moral dos militares na
sociedade democrática através do princí-
pio da Innere Führung (liderança interna)
tornou-se requisito incontornável para a
a sua homóloga civil, à transmissão de va-
lores da cultura cotidiana democrática,
baseada na discordância construtiva, na
crítica livre, na tomada de decisão parti-
cipativa e na primazia civil. O isolamento
da convivência cotidiana civil foi visto, no
momento do restabelecimento das Forças
Armadas da Alemanha Ocidental, em
1955, como extremamente nocivo e, de fa-
to, como uma das condições permissivas
do Holocausto presentes da sociedade ale-
mã. A integração moral dos militares na
sociedade democrática através do princí-
pio da Innere Führung (liderança interna)
tornou-se requisito incontornável para a
Mas por que o padrão democrático se
opõe à nomeação de militares para pos-
tos civis? Uma parte da resposta reside
no isolamento da esfera militar da so-
ciedade civil e, assim, dos seus valores.
Democracias consolidadas enxergam na
falta de espaços de contato cotidiano en-
tre seus soldados e a população civil, com
suas normas e valores – através de siste-
mas judiciários e administrativos em co-
mum, escolas civis compartilhadas, ou
atividades sociais e de lazer –, uma poten-
cial ameaça para a sua integração na de-
mocracia. Enxerga-se, nesse padrão, que o
risco de nomear um militar para um car-
go de chefia na democracia é que ele pode
ter feito a sua formação inteira unicamen-
te dentro do estamento militar.
Essa formação pode ter grande quali-
dade técnica, mas não está voltada, como
a sua homóloga civil, à transmissão de va-
lores da cultura cotidiana democrática,
baseada na discordância construtiva, na
crítica livre, na tomada de decisão parti-
cipativa e na primazia civil. O isolamento
da convivência cotidiana civil foi visto, no
momento do restabelecimento das Forças
Armadas da Alemanha Ocidental, em
1955, como extremamente nocivo e, de fa-
to, como uma das condições permissivas
do Holocausto presentes da sociedade ale-
mã. A integração moral dos militares na
sociedade democrática através do princí-
pio da Innere Führung (liderança interna)
tornou-se requisito incontornável para a
renovada existência de Forças Armadas
sob a bandeira alemã. A crítica não é à cul-
tura institucional militar, mas ao seu iso-
lamento daquela civil.
Uma manifestação de limitada expe-
riência democrática é a afirmação de que
a discordância entre os poderes consti-
tui uma crise que justificaria uma inter-
venção militar para “restabelecer a or-
dem”. Quem foi socializado na democra-
cia sabe que tal discordância é tanto con-
dição sine qua non quanto propriamen-
te um indicativo do seu bom funciona-
mento. A Constituição Brasileira de
1988 – assim como todas as leis básicas
democráticas modernas – em momento
algum respalda a existência de um “po-
der moderador”, que colocaria as Forças
Armadas acima das autoridades civis dos
três Poderes e consagraria o uso de força
como razão de Estado.
Numa democracia, as Forças Armadas
são um órgão de implementação subordi-
nado a um ministério do Poder Executivo
civil e não possuem função de árbitros da
Constituição. No padrão internacional, o
mero fato de permitir que pairem dúvidas
sobre o uso da força no contexto político
ou eleitoral já constitui em si uma pane
democrática severa. Serve de exemplo o
extremo constrangimento do alto coman-
do militar estadunidense quando Donald
Trump cogitou do uso político das tropas
nos últimos dias do seu mandato.
renovada existência de Forças Armadas
sob a bandeira alemã. A crítica não é à cul-
tura institucional militar, mas ao seu iso-
lamento daquela civil.
Nas democracias consolidadas, as
Forças Armadas, além de não entrarem
diretamente na política, não manifestam
institucionalmente preferências políti-
cas. Isso, porque internalizaram a noção
de que o controle civil não é uma ques-
tão de orientação política, de esquerda ou
direita, ou de orientação antimilitarista,
mas de compromisso com o regime de-
mocrático. Dessa forma, a Alemanha, em
2020, não hesitou em dissolver uma com-
panhia prestigiosa das suas forças espe-
ciais ao constatar fortes associações de
seus integrantes com a extrema-direi-
ta antidemocrática. Em 1995, o Canadá
dissolveu seu regimento paraquedista de
elite ao constatar graves infrações con-
tra o código de conduta.
Não bastam as instituições meramente
funcionarem, o discurso também é
crucial. O ponto central é que o papel le-
gítimo de determinar a narrativa histó-
rica da nação decorre da representativi-
dade democrática, e não da força das ar-
mas. As Forças Armadas nas democracias
consolidadas não buscam influenciar em
seu favor a narrativa histórica e a identi-
dade da nação. É nesse âmbito justamen-
te que Bolsonaro teve um de seus efeitos
mais nefastos. Seu apoio público a figu-
ras e práticas ligadas à tortura e às viola-
ções de direitos humanos no regime mili-
tar são um ataque direto à construção de-
mocrática da narrativa histórica nacional.
Um exemplo comparativo: os enfren-
tamentos do legado do Holocausto e da
Segunda Guerra Mundial são elemen-
tos fundamentais do entendimento mo-
derno de identidade dos alemães, e qua-
se 80 anos depois permanece pedra ba-
silar do consenso democrático no país. A
submissão da sua história ao debate e ao
escrutínio públicos fortaleceu determi-
nantemente a legitimidade das institui-
ções do Estado alemão, inclusive das suas
Forças Armadas, perante a sociedade na-
cional e internacional. No Brasil, a inte-
ração no máximo superficial das Forças
Armadas com a Comissão Nacional da
Verdade previsivelmente teve o efeito
contrário. A aguda preocupação dos mi-
litares com a sua imagem perante a so-
ciedade, e com a difusão da sua versão de
determinados eventos por meio de “no-
tas de esclarecimento”, paradoxalmente
revela a fragilidade discursiva institucio-
nal legada por um capítulo ainda não fe-
chado da história nacional.
O conjunto de fatores acima, apresen-
tados em comparação com democracias
consolidadas, deixa claro como o gover-
no Bolsonaro enfraqueceu nitidamente
o quadro já precário do controle civil no
Brasil, e em que medida tal fenômeno põe
em risco elementos basilares do nosso sis-
tema político. A democracia é um ser vi-
vo que precisa ser defendido e renovado
a cada dia, e cabe a cada um sua defesa,
contra cada uma das mil fatias fininhas. •
CARTA CAPITAL
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