July 24, 2021

Centrão: Junto e Misturado

 

 

 


POR ANDRÉ BARROCAL

Quando o deputado Ricar-
do Barros, do PP, líder do
governo Bolsonaro, co-
mandava o Ministério da
Saúde, de 2016 a 2018, a
pasta fechou seis contra-
tos emergenciais, sem licitação, inco-
muns por ali. Quatro eram de transpor-
te de insumos, remédios, vacinas e dois,
de armazenagem. Todos seguiam a mes-
ma lógica: valiam por alguns meses e
eram renovados perto do vencimento. Os
de transporte foram assinados em de-
zembro de 2016 (30 milhões de reais), fe-
vereiro de 2017 (60 milhões), junho de
2017 (80 milhões) e dezembro de 2017
(80 milhões). Os de armazenagem, em
abril e em outubro de 2017, no valor de 1,7
milhão cada. Tudo somado, 254 milhões.
Depois de Barros passar o bastão de mi-
nistro a um colega de PP, Gilberto Occhi,
a pasta renovaria mais uma vez o acordo
de transporte (80 milhões de reais) e o
de armazenagem (1,7 milhão).


A firma contratada nos oito acordos
era a VTC Operador Logístico. Pertence a
um empresário do setor turístico, Carlos
Alberto de Sá, dono da Voetur e ex-presi-
dente da seção brasiliense da Associação
Brasileira de Viagens. Sá não tem do que
reclamar da gestão de Barros na Saúde,
época em que faria outro belíssimo ne-
gócio, de 500 milhões de reais em cinco
anos, hoje alvo da CPI da Covid, como se
verá. Recorde-se como o deputado che-
gou àquele cargo: quando da cassação de
Dilma Rousseff, o presidente do PP, sena-
dor Ciro Nogueira, do Piauí, pediu o Mi-
nistério para o correligionário. A petista
não topou, Michel Temer sim, e os pepis-
tas votaram pelo impeachment.

Quem deve virar ministro agora, e uma
das razões é evitar outro impeachment, é
o próprio Nogueira. Com a impopulari-
dade alta, a CPI no encalço, a necessida-
de de melhorar relações com o Senado, de
salvar o mandato e se fortalecer para a re-
eleição, Jair Bolsonaro decidiu mexer na
equipe. Resolveu “a princípio”, disse na
quinta-feira 22, botar o senador na Casa
Civil, coordenadora das ações governa-
mentais. Um gesto, digamos, desprendi-
do. “O Bolsonaro eu tenho muita restri-
ção porque é um fascista. Ele tem um ca-
ráter fascista, preconceituoso... É muito
fácil você ir para a televisão dizer que vai
matar bandido”, dizia Nogueira sobre o
ex-capitão em 2017, a uma TV piauiense.
Águas passadas, para alegria do dito
“centrão”, cada vez mais entranhado no
Palácio do Planalto (a chefe das negocia-
ções políticas já é do time, ministra Flá-
via Arruda, do PL). Nogueira reelegeu-se
senador em 2018 em aliança com o petis-
ta Wellington Dias, governador do Piauí,

e na cola do lulismo. Agora sonha em con-
correr ao governo do estado de mãos da-
das com o bolsonarismo. Em entrevis-
tas recentes, o milionário Nogueira (pa-
trimônio declarado de 23,5 milhões de
reais, incluído um jatinho de 2,8 milhões)
comentou que Bolsonaro atravessa a pior
fase e hoje não se reelegeria. Acha, porém,
que a situação irá melhorar para o ex-ca-
pitão até 2022, no embalo de vacinas e de
um PIB de bom tamanho. É o diagnóstico
feito também pelo presidente da Câma-
ra, Arthur Lira, outro do PP.


Será esse o destino partidário de Bol-
sonaro? Seria uma volta ao ninho. No DNA
do PP está a Arena, a sigla do regime mi-
litar do qual o presidente sente saudades.
Bolsonaro foi pepista por anos. Saiu em
abril de 2015, após a convenção que man-
teve Nogueira à frente da agremiação,
função que o senador ocupa desde 2013.
Planejava disputar o Planalto, mas o PP
não tinha intenção de bancar o que pare-
cia uma aventura. Eram tempos de avanço
da Operação Lava Jato, do qual nasceram
inquéritos e denúncias contra o piauiense
no Supremo Tribunal Federal. “O senador
Ciro Nogueira foi colocado sob foco de in-
vestigação num momento no qual havia,
claramente, uma tendência de criminali-
zação da política”, disse na quarta-feira 21
um comunicado de sua assessoria.


Fosse só a Lava Jato, enquadrada pelo
Supremo, e a nomeação de Nogueira pa-
ra a Casa Civil não seria uma temeridade
por parte do presidente. O risco é a CPI
da Covid, da qual o senador integra (sem
o governismo que Bolsonaro esperava).
Nos bastidores da comissão, há rumores
de que a era Ricardo Barros no Ministé-
rio da Saúde gerou negócios que se rever-
teriam até hoje em grana para o deputado,
para Nogueira e para Arthur Lira.


A firma que faria a alegria da turma é
a VTC, aquela dos 254 milhões de reais
em contratos inusuais. “Esse tipo de con-
trato costuma ser de longo prazo e com
concorrência. Essa história é estranha”,
afirma o senador Humberto Costa, do PT,
membro da CPI e ex-ministro da Saúde.
Em 2004, quando Costa era ministro, a
Voetur, do mesmo dono da VTC, Carlos
Alberto de Sá, foi investigada pelo Minis-
tério Público Federal, por superfaturar a
cobrança de passagens vendidas à Saúde.
A diretora-executiva da VTCLog, An-
dreia Lima, foi convocada a depor pela
CPI, falta marcar a data. A VTCLog é a
VTC com outro CNPJ. A Comissão Par-
lamentar de Inquérito já requisitou ao
Ministério da Saúde informações sobre
contratos com a empresa. Quando rece-
bê-las, encontrará os acordos citados no
início desta reportagem. Na volta do re-
cesso, em 3 de agosto, a CPI votará a con-
vocação de Sá e a quebra dos sigilos ban-
cário, fiscal e comunicacional dele, de
suas firmas e de Andreia.


A história que botou a VTCLog na mi-
ra da CPI começa com Barros ministro

da Saúde. Ele privatizou a distribuição de
vacinas, serviço que era prestado havia
mais de 20 anos pela Central Nacional de
Armazenagem e Distribuição de Imuno-
biológicos, a Cenadi. No lugar desta, en-
trou a VTCLog. Na época, um deputado
estadual do Rio, Milton Rangel, do DEM,
foi ao Tribunal de Contas da União, ór-
gão auxiliar do Congresso, tentar barrar
o processo. A Cenadi ficava no Rio, daí o
interesse dele. Rangel alegava que o edi-
tal de licitação tinha sido elaborado com
a ajuda daqueles que participariam do lei-
lão. O TCU chegou a brecar tudo, mas no
fim deu sinal verde ao negócio.


 

A decisão de privatizar e todos os pre-
parativos foram feitos quando Barros era
ministro. Na assinatura do contrato, ele
não era mais. Já havia saído para concor-
rer de novo a deputado. O contrato é de
cerca de 500 milhões de reais por cinco
anos. No início de 2019, a VTCLog e o Mi-
nistério da Saúde se desentenderam so-
bre como calcular o valor de certos servi-
ços. A empresa queria cobrar 57 milhões.
Técnicos do Ministério defendiam 1 mi-
lhão. A briga se arrastou. Em março deste
ano, uma advogada da União integrante
da consultoria jurídica da Saúde, Adrie-
le Matos de Santana Santos, deu um
parecer a favor da posição dos téc-
nicos. Em vão.


Em maio, foi assinado um aditi-
vo ao contrato, a fixar o serviço em
questão em 18 milhões. Quem deu o
aval para o aditivo foi o então diretor
de Logística do Ministério, Roberto
Ferreira Dias, personagem do Vaci-
nogate. Dias é ligado a Barros, traba-
lhou no governo do Paraná quando o
estado era administrado pela espo-
sa do deputado, Cida Borghetti. Foi
demitido do Ministério em 29 de ju-
nho, em razão da acusação de cobrar
propina de 1 dólar por vacina em ne-
gociações obscuras de 400 milhões
de doses oferecidas por um PM mi-
neiro, Luiz Paulo Dominghetti, e
operação identificada pela comissão na
quebra de sigilo bancário da primeira?
Seria um duto para escoar grana ao PP?
A Precisa figura em outro rolo do tem-
um reverendo de Brasília, Amilton Go-
mes de Paula. A CPI quebrou o sigilo te-
lefônico de Dias e descobriu 135 ligações
dele com Andreia, da VTCLog. Daquelas
chamadas, 129 partiram da executiva.
A CPI fez outra descoberta curiosa. A
VTCLog pagou 250 mil à Precisa Medica-
mentos. Esta é a atravessadora da compra,
em fevereiro, de 20 milhões de doses de
vacinas indianas Covaxin pelo governo.


Essa compra é aquela eivada de indícios
de corrupção, segundo denúncia levada a
Bolsonaro por um servidor da Saúde, Luis
Ricardo Fernandes, e seu irmão deputa-
do, Luis Miranda. Foi suspensa pelo go-
verno logo após o depoimento de Fernan-
des à CPI, no fim de junho. Qual seria a ra-
zão do pagamento da Precisa à VTCLog,
po em que Barros era ministro da Saúde.
Seu dono, Francisco Maximiano, é o mes-
mo da Global Saúde. Barros é réu na Justi-
ça sob a acusação de improbidade em um
pagamento de 19,9 milhões de reais à Glo-
bal. Foi um pagamento antecipado por re-
médios que a Global não tinha para entre-
gar, embora prometesse arranjá-los. No-
te, leitor: no contrato da Covaxin, inter-
mediado pela Precisa, uma das estranhe-
zas é um pedido de pagamento antecipa-
do de 45 milhões de dólares em Cingapu-
ra. Maximiano foge da CPI. Convocado a
depor, primeiro invocou uma quarente-
na por suspeita de Covid-19, depois con-
seguiu no Supremo um habeas corpus que
lhe permitisse ficar em silêncio.


Com esse pano de fundo, Bolsonaro
acaba de propor a recondução de Au-
gusto Aras ao cargo de procurador-
-geral da República. Caberá ao Senado
aprovar a indicação, o que não deve ser
lá muito difícil. Muitos senadores gos-
tariam de ver Aras no Supremo, por ele
não ser do tipo que criminaliza a polí-
tica. O senador Flávio Bolsonaro
pediu ao “xerife” que processe o
relator da CPI, Renan Calheiros,
por abuso de autoridade. O “zero
um” de Jair diz que, durante uma
das sessões da comissão, o relator
divulgou parte de um depoimen-
to sigiloso do presidente. “No Bra-
sil, até a milícia denuncia”, reagiu
Calheiros, ironicamente.


Irônica é a a escolha de Ciro No-

gueira para chefe da Casa Civil. “Se
gritar pega ‘centrão’, não fica um
meu irmão”, cantarolava na elei-
ção o general de pijama Augusto
Heleno, hoje chefe do GSI, o órgão
de inteligência do Planalto. Bolso-
naro é cada vez mais refém dessa
turma que corre se alguém grita.

CARTA CAPÍTAL

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