April 8, 2021

Os trabalhos de memória da pandemia

 Busto do epidemiologista Oswaldo Cruz (1872-1917) usa máscara em frente ao Castelinho da Fiocruz, sede da Fundação Oswaldo Cruz, em Manguinhos, no Rio de Janeiro. Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Projetos que reúnem relatos de pessoas comuns sobre a experiência têm o desafio de montar seus acervos em meio a uma história que ainda não acabou

Giuliana de Toledo

“Eu queria ficar perto de vocês. Eu tô sentindo tanta falta. Eu tô muito angustiada e com medo. Eu temo por vocês, por mim”, dizem as mensagens de WhatsApp compartilhadas por Laryssa Oliveira, moradora de Fortaleza, entremeadas por uma selfie chorando. Era o Dia das Mães de 2020. “Meus vizinhos fizeram uma festa com dez pessoas em casa. Fiquei abalada porque, ao mesmo tempo que achei errada aquela farra, pensei no quanto eu gostaria de fazer o mesmo... Mas as coisas não são como a gente quer. Nunca”, narrou ela.

A um clique de distância, outra memória cheia de revolta. “Raiva de quando preciso sair pra comprar comida ou por alguma outra urgência, ver amontoados de pessoas fazendo caminhada, soltando pipa, andando de bicicleta, vivendo a fantasia de férias perfeita. Mas ressalto que essa raiva não se baseia em inveja de eu não estar saindo e eles sim, mas apenas em... raiva. Puramente, raiva. De saber que por causa de pessoas como essas os casos não vão cair tão cedo, que graças a pessoas como essas chegamos na situação atual”, constatou Leonardo Chagas, que vive em Campinas, São Paulo.

“Como explicar hoje para as próximas gerações o impacto da pandemia em nossa existência? Esse é o desafio de quem aceita participar de plataformas colaborativas como a da Unicamp”

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Esses dois relatos fazem parte do projeto #MemóriasCovid19, criado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para a preservação de depoimentos sobre a pandemia. No site memoriascovid19.unicamp.br, as participações compõem uma espécie de museu vivo, que aponta desde já como poderemos contar a história da crise sanitária — ainda que ela esteja bem longe de acabar.

“Fazer isso é muito novo, porque na história a gente tem o hábito de trabalhar com arquivos que reuniram fontes depois dos eventos”, disse a historiadora Ana Carolina de Moura Delfim Maciel, idealizadora da plataforma. Mesmo assim, ela decidiu arregaçar as mangas logo nos primeiros meses da pandemia. “A ideia começou a ser traçada em uma sequência de noites insones. Eu acordava às 3 horas da manhã e pensava ‘O que será que vai acontecer? O que será de nós?’. Toda essa insegurança me fazia acordar. E aí comecei a usar esse momento para pensar e esboçar o projeto dessa plataforma de salvaguarda de relatos, abertos a toda a comunidade”, lembrou.

Maria Madalena Ramos, de Belém, enviou aos historiadores da Unicamp uma fotografia da vista de sua janela. Foto: Divulgação
Maria Madalena Ramos, de Belém, enviou aos historiadores da Unicamp uma fotografia da vista de sua janela. Foto: Divulgação

Enquanto seu projeto nascia, outros pelo mundo também brotavam. Atualmente essa força-tarefa em nome da história já tem cerca de 500 iniciativas em curso. O mapeamento foi feito pela Federação Internacional de História Pública (IFPH, na sigla em inglês) em parceria com a Made By Us, associação que congrega diversas instituições de memória nos Estados Unidos.

O Brasil está representado no levantamento com oito projetos. As ideias espalhadas pelo país vão desde documentar a experiência de isolamento de descendentes de poloneses no Paraná até construir um relato mais amplo dos tempos atuais em texto, foto, vídeo e áudio, caso do projeto da Unicamp e também de iniciativas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

Mirando no nicho ou não, refletiu Maciel, o que está em curso no planeta é a criação de “um caleidoscópio” para enxergar um momento histórico, de uma maneira que ainda não tínhamos feito. Antes da pandemia, o maior projeto colaborativo de história usando os meios digitais havia sido desenvolvido para reconstituir a tragédia do 11 de setembro, há 20 anos. “Na literatura ele é conhecido como o primeiro projeto de constituição de acervos ligados a um evento traumático e nesse formato crowdsourcing”, contou a historiadora Luciana Heymann, citando o September 11 Digital Archive, cujo site, o 911digitalarchive.org, tem mais de 70 mil itens preservados.

Uma agenda totalmente reservada à quarentena foi a escolha de Anik Zegman Zaharic, morador de São Paulo, para representar o momento no projeto da Unicamp. Foto: Divulgação
Uma agenda totalmente reservada à quarentena foi a escolha de Anik Zegman Zaharic, morador de São Paulo, para representar o momento no projeto da Unicamp. Foto: Divulgação

Heymann é coordenadora do projeto Arquivos da pandemia: memórias da comunidade Fiocruz, destinado a guardar as experiências de funcionários, alunos, bolsistas e moradores do entorno de todas as sedes da Fiocruz. “A gente se inspirou não só nos formatos dos projetos colaborativos de constituição de acervos, como esse do 11 de setembro e outro sobre o Furacão Katrina, mas também em experiências de arquivos comunitários”, explicou ela.

Olhar para o seu “quintal” quando ele é cenário de pesquisas e de produção de vacinas que podem mudar o curso da pandemia, caso da Fiocruz, virou o foco dos relatos, mas o aspecto secundário, o de retratar a vida das pessoas comuns que residem no entorno dos endereços da instituição, como as favelas de Manguinhos, Maré e Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, ainda precisa avançar.

Uma cena de trabalho em casa foi registrada e enviada ao projeto da Fiocruz. O participante não quis se identificar. Foto: Divulgação
Uma cena de trabalho em casa foi registrada e enviada ao projeto da Fiocruz. O participante não quis se identificar. Foto: Divulgação

Das 74 pessoas que depositaram suas histórias e imagens no site do projeto desde agosto de 2020, quando foi inaugurado, apenas três são moradoras de comunidades vizinhas. “Foi o público que a gente conseguiu atingir menos, e dá para entender. Acho que essas pessoas estão vivendo a pandemia de uma forma mais dura e com outras urgências”, constatou a pesquisadora. Para atrair mais participações, o questionário on-line passará em breve por uma reformulação, tornando-se mais enxuto.

Mas quantidade não é o mais importante, pontuou Maciel. Dos mais de 270 envios feitos a seu projeto na Unicamp, cerca de 180 estão exibidos no site. Todos os materiais recebidos são guardados em um arquivo da universidade, como parte dessa cápsula do tempo, mas nem todos, ela destacou, ajudariam a traçar história. A seleção é feita por uma equipe de curadores, intelectuais convidados de dentro e de fora da instituição, como a historiadora Lilia Moritz Schwarcz e o escritor Daniel Munduruku.

“Achei interessante compor um comitê curatorial, porque os arquivos, sejam eles textuais, de imagem ou de áudio, são sempre uma escolha. A gente já tem essa dimensão na historiografia. Um arquivo nunca é totalizante, é sempre um olhar. Os próprios museus são assim. A ideia nunca foi mostrar ‘isso é a pandemia’. A ideia é ter uma subjetividade, uma percepção dessa situação”, explicou a responsável, que está trabalhando também em um livro com os relatos. A publicação deverá acontecer até o final do ano.

Vitor Artigiani, de São Paulo, contribuiu para o acervo da Unicamp com uma imagem sobre os novos hábitos no trabalho na agricultura. Foto: Divulgação
Vitor Artigiani, de São Paulo, contribuiu para o acervo da Unicamp com uma imagem sobre os novos hábitos no trabalho na agricultura. Foto: Divulgação

Os limites de compor um acervo com a colaboração do público durante uma história ainda em curso aparecem também na escassez de depoimentos daqueles que vão na contramão das recomendações. “Uma pena que a gente não tem nenhum relato das pessoas que descumprem as ordens. Eu gostaria muito que essas pessoas um dia relatassem. Elas, infelizmente, descumprem as ordens, botam a vida das outras em risco, mas não põem seus depoimentos em público”, constatou a historiadora Beatriz Kushnir.

Outra falta, ainda mais importante, é a de memórias dos profissionais do “front”, notou ainda Kushnir, que criou, em maio do ano passado, o projeto Testemunhos do isolamento, no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, onde era diretora. Agora, fora da instituição (ela deixou o cargo em janeiro), segue com a pesquisa e se prepara para buscar memórias de trabalhadores da saúde, do transporte, da alimentação e da imprensa. “Essas pessoas nem têm tempo de elaborar o que está acontecendo e muitas perderam colegas de trabalho ou familiares durante esse processo”, ressaltou Kushnir.


“Uma das lacunas dos acervos que estão sendo criados sobre a vida em tempos de covid-19 é a ausência de relatos de negacionistas”

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Fala-se também muito pouco sobre luto. “A gente nunca teve tantos mortos em território nacional e não está fazendo o luto disso”, avaliou. “Isso é uma coisa que a gente vai ter de trabalhar com muita frequência, algo que a Europa trabalha desde a Segunda Guerra Mundial, mas que aparece pouco nos relatos. Eles falam muito mais das situações pessoais, da mudança na rotina, de ficar em casa, mas não falam das mortes.” Para Kushnir, isso é um sintoma de que “a ficha não caiu”. “Acho que vai levar um tempo para as pessoas, quando voltarem a seus cotidianos, perguntarem por aqueles que morreram. Como vai ser lidar com essa ausência e esses milhares de mortos? É muita gente. A gente tem se debruçado muito pouco sobre essa questão”, destacou. “Sinto que enquanto sociedade adoecemos juntos e não estamos nos dando conta do que significam esses números que estão longe de terminar.”

ÉPOCA

 

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