December 27, 2020

Países de alta renda dão as cartas no acesso às vacinas, e os mais pobres ficam para trás

 

Margaret Keenan, uma avó britânica de 90 anos, tornou-se a primeira pessoa no mundo a receber a vacina da Pfizer contra a Covid-19, no início da campanha britânica de vacinação em massa, em 8 de dezembro de 2020 Foto: Jacob King / REUTERS

Rafael Garcia

Com 7,7 bilhões de doses de vacinas para Covid-19 já tendo sido encomendadas mundo afora, a quantidade de ampolas prometidas já é praticamente igual ao número de habitantes do planeta. Isso não significa, porém, que em 2021 haverá imunizantes suficientes para proteger toda a população global, principalmente por causa da desigualdade.

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Em primeiro lugar, a maioria das vacinas à beira de ganhar aprovação para uso requer duas doses para imunização efetiva, então é preciso dobrar a quantidade. Em segundo, os países mais ricos estão abocanhando um quinhão maior da produção de vacinas prevista para o primeiro semestre. Além disso, muitos dos contratos assinados por governos com os desenvolvedores das vacinas reservam produtos que ainda não foram fabricados e nem sequer aprovados para comercialização.

Esse é o cenário revelado pelo projeto Launch & Scale Speedometer, da Universidade Duke, da Carolina do Norte (EUA), que mapeou todas as negociações para pré-aquisição de vacinas de Covid-19 no mundo divulgadas até a semana passada.

Parte do problema da desigualdade se reflete no fato de a Covax, consórcio ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS) para distribuição equânime de imunizantes da Covid-19, estar ainda muito aquém da meta. Nesse vácuo de oferta, Rússia e China estão se valendo de seu papel de desenvolvedores para expandir sua influência geopolítica em contratos com países em desenvolvimento.

O panorama da Universidade Duke não inclui as doses produzidas por esses dois países para consumo interno, que chegam à casa das dezenas de milhões. Enquanto o governo russo diz esperar vacinar um terço da população em breve (45 milhões de pessoas), os chineses não anunciaram meta, mas já começaram a imunizar, e estimam produzir 1 bilhão de doses de vacina em 2021.

A divisão até agora indica que países de alta renda per capita já contrataram mais de 4 bilhões de doses de diferentes fabricantes, e países de renda média (classe onde se insere o Brasil) contrataram 2,9 bilhões, uma quantidade relativamente pequena, dado que essas nações possuem uma população maior.

Acordos bilaterais

Os países de baixa renda, como os da África subsaariana, não conseguiram fechar ainda nenhum contrato bilateral para aquisição de vacina, e dependem totalmente de a Covax obter sucesso. O compromisso inicial da iniciativa é adquirir 2 bilhões de doses e distribuí-las a todos os países membros. A ideia é garantir as primeiras aplicações para cobrir 20% das populações de cada um dos 92 países membros da iniciativa que são elegíveis para acesso preferencial.

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Muitos governos estão dando como certo o repasse dessas doses, e o do Brasil já diz contar com 42 milhões delas para o programa nacional de imunização contra Covid-19. Até agora, porém, a Covax só detalhou contratos para 870 milhões de doses, menos da metade do objetivo inicial, e não está claro quanto tempo vai levar para o programa cumprir sua meta de 2 bilhões. O consórcio diz que as vacinas começam a embarcar para os países até o fim de março, e espera chegar à marca de 1,3 bilhão de doses ainda no primeiro trimestre de 2021.

No mundo como um todo, além das 7,7 bilhões de doses que foram reservadas em contratos de encomenda de produção futura, outras 3,9 foram acordadas em contratos de intenção de compra, que estão sujeitos ao aprimoramento da capacidade das fábricas. Se considerarmos que todos esses negócios serão concretizados, a União Europeia e outros nove países devem conseguir vacinar toda sua população até o segundo semestre de 2021.

Presidente da Comissão da UE, Ursula von der Leyen, anunciou, em vídeo, que neste domingo, 27, a vacinação contra a Covid-19 começará em todos os 27 países da União Europeia, depois que os órgãos reguladores aprovaram a vacina Pfizer-BioNTech em 21 de dezembro. Neste sábado
Presidente da Comissão da UE, Ursula von der Leyen, anunciou, em vídeo, que neste domingo, 27, a vacinação contra a Covid-19 começará em todos os 27 países da União Europeia, depois que os órgãos reguladores aprovaram a vacina Pfizer-BioNTech em 21 de dezembro. Neste sábado

São nações que investiram pesadamente em acordos bilaterais para cumprir essa meta.

“Esses negócios diretos feitos por países de alta renda (e alguns de média renda) resultam em uma fatia menor da torta disponível para alocação global equânime”, afirma o último relatório do projeto da Duke, liderado pelo médico e economista indiano Krishna Udayakumar. “Os países de alta renda estão dando suas cartas, enquanto os países de baixa renda vão sendo excluídos.”

O Canadá, país que mais se empenhou em buscar vacinas, fechou contratos assegurando doses suficientes para imunizar sua população cinco vezes. A intenção dos canadenses não é a de submeter seus cidadãos a uma “overdose” de vacina, é claro, mas assegurar um estado de imunidade coletiva o mais rápido possível.

A Coalizão CEPI, que organiza a Covax, está buscando negociar com esses países a doação de doses excedentes para o programa. “Essas negociações estão em andamento, mas países de alta renda per capita têm pouco incentivo para compartilhar seu estoque de aquisição avançada”, afirma o relatório da Duke.

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Na América Latina, o países que mais se empenharam em acordos bilaterais foram o Chile, que já tem doses encomendadas para vacinar sua população duas vezes, e o México, que em tese conseguirá cobertura total em 2021.

Nas contas do projeto Speedometer, o Brasil, quando descontado aquilo que se espera obter com a Covax, só tem em vista vacinas para cobrir 63% da população, e não se sabe quando todas essas doses chegarão.

Atraso brasileiro

Na opinião da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o país não pode se contentar apenas com o que já tem previsto.

— O Brasil tem que abrir a negociação para outras vacinas, até porque a gente não tem nada concreto até agora — afirma o médico Juarez Cunha, presidente da entidade. — Tudo o que temos está na espera. Ou são vacinas que ainda precisam ter o registro solicitado na Anvisa, com a apresentação dos resultados, ou é a vacina da Pfizer, que está em negociação num quantitativo relativamente pequeno, comparado à nossa população.

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Há outros complicadores quando se tenta estimar quantas pessoas precisam ser vacinadas até que se atinja um grau de imunidade coletiva razoável, capaz de deter a proliferação do coronavírus. Não se sabe, por exemplo, se as vacinas conseguirão bloquear a infecção, pois a maior parte dos testes clínicos tem como critério primário de eficácia a capacidade de impedir o surgimento de doença grave, e não o contágio em si. E não se sabe quanto tempo a imunidade estimulada pela vacina dura.

Proteção global só em 2023 ou 2024

Outro problema é que, à medida que os ensaios clínicos avançam, está ficando claro que algumas vacinas são mais eficazes que outras. A OMS estipulou que uma eficácia de 50% já é suficiente para colocar uma vacina no mercado, mas isso pode significar a necessidade de uma cobertura vacinal maior para desacelerar a pandemia.

— Sabendo que existe uma vacina com 95% de eficácia, como a da Pfizer, e outra com 62%, como a da AstraZeneca, como as pessoas vão se posicionar? Elas vão querer optar por qual vacina? — questiona Cunha.

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Os países ricos, por enquanto, garfaram a maior parte das doses de vacinas da Pfizer e da Moderna, que tiveram eficácia maior que 90%. Vacinas russas e chinesas, que já estão sendo aplicadas em seus países de origem e vêm sendo adquiridas por países em desenvolvimento, não apresentaram ainda dados detalhados de eficácia. Há um receio de que a desigualdade no acesso a vacinas venha a se refletir também no acesso à qualidade dos produtos, não só à quantidade.

Segundo o relatório da Duke, se o panorama não mudar, uma cobertura completa de vacinação no planeta deve demorar.

“Os modelos atuais preveem que não deve haver vacina suficiente para cobrir a população global até 2023 ou 2024”, diz o documento.

O GLOBO 

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