December 2, 2020

A anomalia de Trump acabou. Será mesmo?

 

 


 

POR MICHAEL GOLDFARB

Donald Trump não é mais
presidente. A anomalia aca-
bou. Será mesmo? Pois uma
medida do impacto bizarro
e descomunal desse ho-
mem é que os eruditos falam sobre trum-
pismo. Os liberais de esquerda preveem
seu retorno como os devotos do filme de
Brian De Palma preveem a mão de Car-
rie a sair do túmulo. Trump virá arras-
tá-los para a escuridão. Radicais de di-
reita – “conservadores” não parece mais
o termo certo – falam sobre o trumpis-
mo porque ele foi aquele que energizou
sua coalizão díspar como nenhum outro.
Quase digitei “político” em vez de “aque-
le”, mas Trump não é político. Ele é um
“líder”, alguém em quem eleitores proje-
tam seus próprios desejos.


A presidência de Trump foi o produto
final de duas vertentes da vida norte-ame-
ricana que se uniram após um quarto de
século de desenvolvimento independente.
Em primeiro lugar, a evolução do Partido
Republicano de um bloco de interesses di-
versos para uma facção radical construída
em torno de uma única ideia: conquistar o
poder absoluto e tornar a América um Es-
tado de partido único governado por gen-
te dedicada a cortar impostos dos ricos e
encher os tribunais federais com juízes
que reverteriam o contrato social da era
do New Deal e dos direitos civis.


O ex-presidente da Câmara Newt Gin-
grich iniciou esse processo há mais de um
quarto de século. Ele foi o primeiro repu-
blicano proeminente a ver em Donald
36 CAR TACAP I TAL . COM . B R
Trump o homem que poderia realizar os
sonhos do partido moderno. Gingrich es-
creveu mais tarde, em 2018: “A América de
Trump e a sociedade pós-americana que
a coalizão anti-Trump representa são in-
capazes de coexistir. Uma simplesmen-
te derrotará a outra. Não há espaço para
concessões. Trump entendeu isso perfei-
tamente desde o primeiro dia”.


Imagine que Trump não tivesse se can-
didatado à presidência e que Marco Rubio
ou Ted Cruz, ou mesmo Jeb Bush, tivesse
se tornado presidente. Esse trio teria se-
guido uma agenda substancialmente dife-
rente? Corte de impostos que favorecem
os ricos doadores do partido, nomeação de
três juízes de direita para a Suprema Cor-
te, restrição à imigração, remoção das re-
gulamentações ambientais. Todos eles os
teriam aprovado. Teria havido um retro-
cesso contra a China na esfera comercial,
ao menos retoricamente. E todos eles te-
riam atuado a favor do crescente etnona-
cionalismo que se desenvolveu global-
mente desde a recessão de 2008.


Mas o que nenhum deles poderia ter
feito é demolir as normas e os costumes
de governança para incorporar essa agen-
da. A razão pela qual Trump destruiu
aqueles três homens para conseguir a no-
meação republicana foi o carisma de um
artista. O que Gingrich viu nele é o que
metade do país também viu: um cara au-
toconfiante que não aceitava ser contra-
riado e tinha superado as sutilezas retó-
ricas da política. Ele era mais familiar pa-
ra muitos eleitores do que Cruz, Rubio e
outros por meio de O Aprendiz, seu nome
nos cassinos onde eles perdiam dinheiro
e, claro, a Fox News.


A mídia é a segunda corrente que in-
flou a presidência de Trump. O “agru-
pamento” da sociedade é observado há
muito tempo, mas o quão incompreen-
síveis os indivíduos se tornaram uns pa-
ra os outros em ambientes de mídia tão
diferentes dominou o lado anti-Trump.


Os mesmos que viam Gingrich como
um fanfarrão, Rush Limbaugh como
um palhaço maligno e a Fox News como
algo a que apenas seu tio maluco assis-
tia não conseguiam entender quantos de
seus concidadãos aceitavam sua visão de
mundo. Para pouco mais da metade da
população, uma figura como Trump, ga-
nhando primeiro a indicação republica-
na e, depois, por meio do anacronismo do
colégio eleitoral, a presidência, apesar de
Hillary Clinton superá-lo por 3 milhões
de votos, é um choque que nunca passará.
Isso foi aprofundado pelas redes so-

ciais, especialmente o Twitter. Os tuí-
tes de Trump tornaram-se sua princi-
pal forma de comunicação com o país. E
aqueles que se opunham fizeram o tra-
balho por ele nessa plataforma. No mês
passado, o Centro de Pesquisas Pew di-
vulgou uma análise do Twitter que des-
cobriu que “apenas 10% dos usuários
produziram 92% de todos os tuítes de
adultos norte-americanos desde novem-
bro passado, e que 69% desses usuários
altamente prolíficos se identificam co-
mo democratas ou independentes com
tendências democratas”.

O Partido Republicano
tornou-se uma facção
radical em busca
do poder absoluto

A inferência é que Trump tuíta algo in-
sano e milhões de anti-trumpistas o retuí-
tam, espalhando sua mensagem como al-
guém sem máscaras com Covid espalha a
pandemia. Mas o Twitter anti-Trump es-
tá tão longe da realidade objetiva quanto a
Fox News ou Limbaugh. O desastroso fe-
chamento de jornais locais nos Estados
Unidos – 2 mil foram encerrados nos úl-
timos anos – eliminou uma fonte crítica
de conhecimento sobre o vasto e comple-
xo país em que vivem.


O Twitter substituiu esses jornais co-
mo fonte de informação, mas não é jor-
nalismo. E cria uma imagem enganosa
do que acontece. Fui a um comício de
Trump em Scranton, na Pensilvânia, um
dia antes da votação. A impressão que eu
tinha formado pelo Twitter do que iria
encontrar não se parecia nada com a rea-
lidade. A maioria usava máscaras, era es-
magadoramente de classe média e, fran-
camente, parecia normal. Comporta-
mento insano? Não que eu tenha visto. É
Pesadelo. Donald Trump vai pesar
na consciência dos Estados Unidos
por muito tempo. Talvez a ameaça leve
a oposição a manter a vigilância
uma fonte de transtorno do estresse pós -
-traumático. Eles vão temer constante-
fácil rejeitar as pessoas se você acha que
elas são malucas. É assustador quando
você percebe que elas não são.


No fim, Trump era simplesmente
cansativo demais para a maioria. Joe
Biden, que havia fracassado gravemen-
te em suas duas tentativas anteriores de
obter a indicação democrata, viu-se, com
quase 78 anos, como o homem certo no
lugar certo e na hora certa.


Biden nada mais é do que calmante.
Ele basicamente venceu a eleição no pri-
meiro debate, quando disse a Trump, com
a voz exasperada: “Cale a boca, cara. Is-
so é tão pouco presidencial”. Ele falou em
nome da maioria dos norte-americanos.


Trump vai pesar na consciência dos
Estados Unidos por muito tempo. Pa-
ra alguns, os últimos quatro anos serão
mente o ressurgimento do trumpismo, e
isso não é ruim. Esperançosamente, eles
vão parar de rir de quem tem a visão de
mundo moldada pela Fox News e final-
mente entenderão a natureza da luta em
que estão. Para os republicanos, quando
Trump terminar de lançar dúvida sobre
os resultados das eleições, eles terão mais
um ressentimento que nunca irá embora.
O poder de Trump, quer você o veja co-
mo líder, quer como demônio, é que ele
deu uma forma humana a um fato que o
antecedeu e continuará após sua parti-
da: a América está perigosamente dividi-
da, sem a sensação de que a sociedade vai
conseguir curar suas feridas tão cedo. •


* O autor é ex-chefe da sucursal de Londres da
NPR e pesquisador na Escola de Governança
Kennedy da Universidade Harvard.
Ele é o apresentador do podcast FRHD
(www.goldfarbpod.com)
 

CARTA CAPITAL

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