October 17, 2020

Os pecados do “zero um”

 

 

 


 

 

 

 

 

 

POR ANDRÉ BARROCAL

Flávio Bolsonaro, o filho “zero
um” do presidente, embolsou
2,7 milhões de reais de funcio-
nários no tempo de deputado
estadual no Rio de Janeiro? Se
sim, cometeu crime de peculato, a apro-
priação de verba pública por quem a ad-
ministra, punido com 2 a 12 anos
de cadeia. E para branquear es-
sa grana suja, usou uma loja de
chocolates comprada de 2014 pa-
ra 2015? Adquiriu imóveis por
preços abaixo de mercado, pagou
cash a diferença por fora e depois
os revendeu pelo valor real? Se
sim, foi lavagem de dinheiro, pe-
na de 3 a 10 anos. Sua conduta te-
ve a colaboração de várias pesso-
as, a principal delas o ex-PM em
prisão domiciliar Fabrício Quei-
roz, amigo de Jair Bolsonaro? Se
sim, viu-se aí uma organização
criminosa, ilícito castigado com
reclusão de 3 a 8 anos.


O Ministério Público do Rio
não tem dúvida sobre as respos-
tas a essas questões, razão pa-
ra ter finalizado a acusação que
apresentará à Justiça contra Flá-
vio e Queiroz. Uma denúncia ba-
seada em movimentações ban-
cárias, declarações de Imposto
de Renda, mensagens de celular,

anotações, cronologias, mas nenhuma
deduragem. A possível delação de Quei-
roz ou de sua mulher, Márcia Aguiar, ou-
tra em cárcere domiciliar, não veio, após
o ex-PM ter sido pego pela polícia em ju-
nho, na casa do então advogado de Flá-
vio, Frederick Wassef. Este, aliás, acaba
de tornar-se réu, no Rio, por dois crimes
similares atribuídos ao ex-cliente, pecula-
to e lavagem de dinheiro, no suposto des-
vio de verba pública do Sistema S pela Fe-
deração do Comércio do Rio.


Até a conclusão desta reportagem, na
quinta-feira 1º, a acusação contra Flá-
vio e Queiroz estava com o che-
fe do MP fluminense, Eduardo
Gussem. Flávio trava uma ba-
talha pessoal com ele. Pediu,
e em agosto o Conselho Na-
cional do Ministério Público
abriu um processo contra Gus-
sem. Este manteve o grupo es-
pecial anticorrupção no encal-
ço de Flávio, mesmo após o Tri-
bunal de Justiça do Rio ter da-
do foro especial ao filho do pre-
sidente, em junho. Com o foro, o
senador podia ser averiguado só
pelo próprio chefe do MP. Gus-
sem disse ao CNMP que o sena-
dor faz tudo para “obstaculizar
as investigações”.


O chefe do MP do Rio parece

calcular o melhor momento polí-
tico-jurídico de despachar a acu-
sação contra Flávio ao TJ. Deixa
o cargo em janeiro. Seu suces-
sor será escolhido em uma lista
tríplice pelo governador do Rio.
Diante da desgraça de Wilson 

Witzel, inimigo dos Bolsonaro, o leme
está hoje com o vice, Cláudio Castro, que
namora o clã. Em 24 de setembro, um dia
após a abertura do processo de impeach­
ment de Witzel, Castro recebeu o ex-capi-
tão na porta do avião presidencial e, mais
tarde, ouviu Bolsonaro declarar em um
evento: “Juntamente com a Assembleia
Legislativa e o nosso jovem governador,
vamos buscar uma maneira de tirar o Rio
de Janeiro da situação difícil”.


O próprio Castro está em dificuldades,
graças à tropa de Gussem. O MP quer sa-
ber se ele tirou proveito de corrupção
na Fundação Leão 13, órgão assistencial
do governo. A suspeita é que Castro te-
ria se beneficiado de desvios quando era
vereador e, depois, como vice-governador,
cargo que lhe deu o controle da instituição.
O primeiro tiro contra fraudes na funda-
ção, a Operação Catarata, ocorreu em ju-
lho de 2019 e levou à prisão de um empre-
sário, Flávio Chadud, com quem Castro
se reunira um dia antes, em um shopping.
Uma firma de Chadud ficava no shopping
e, naquele dia, ele teria dado 100 mil em es-
pécie a Castro, conforme delatou um fun-
cionário, Bruno Campos Selem.


De volta às “rachadinhas” de Flávio. Se

verdadeiras, as conclusões do MP ajudam
a explicar o enriquecimento do “zero um”.
Na eleição de 2006, ele declarou 385 mil
reais. Na de 2010, 690 mil. Na de 2014, 714
mil. Na de 2016, já dono da loja de choco-
lates, 1,4 milhão. Em 2018, 1,7 milhão. O
patrimônio do pai sobe de forma pareci-
da. Sai de 433 mil em 2006, para 826 mil
em 2010, 2 milhões em 2014 e 2,2 milhões
em 2018. Foi com o peculato das “rachadi-
nhas” que o clã, que vive da política, en-
riqueceu? Em uma entrevista de tevê em
1999, o então deputado Jair Bolsonaro de-
clarou: “Conselho meu e eu falo: sonego

tudo o que for possível”. O ídolo Donald
Trump, bilionário, ficou dez anos sem
pagar Imposto de Renda e recolheu ape-
nas 750 dólares em 2016 e 2017, noticiou
recentemente a mídia norte-americana.
Com base nas descobertas do MP do
Rio, é possível supor que, se houve pecu-
lato e organização criminosa no antigo
gabinete de deputado estadual de Flávio,
foi obra do pai dele, em primeiro lugar.


Antes de Queiroz tomar conta do peda-
ço, alguns funcionários de Flávio eram
da família da segunda esposa de Jair, Ana
Cristina Siqueira Vale. Para o MP, houve
um “núcleo Resende”, a cidade da famí-
lia de Ana Cristina, nas “rachadinhas”.
No primeiro mandato de Flávio, de
2003 a 2007, o gabinete era chefiado
pela mãe de uma ex-sócia de Ana Cris-
tina. Queiroz entrou ali após Bolsona-
ro se separar de Ana. Era amigo do ex-
-capitão desde 1984. Parentes e conhe-
cidos de Queiroz formariam o segundo
núcleo das “rachadinhas”. Haveria um
terceiro, e barra-pesada: o do milicia-
no morto Adriano da Nóbrega. A mãe e
uma ex-esposa de Adriano foram contra-
tadas por Queiroz, suspeito de ter parti-
cipado com o miliciano de um homicídio
em 2003, quando eram PMs.


Flávio entrou na mira em 2018, em
meio à apuração de um esquema gene-
ralizado de “rachadinhas” na Assembleia
do Rio. Esse inquérito levou a várias pri-
sões em 8 novembro de 2018, na Opera-
ção Furna da Onça. Esta teria sido adiada
para depois da eleição, a fim de não preju-
dicar a campanha de Jair Bolsonaro. É o
que diz o empresário Paulo Marinho, su-
plente de Flávio no Senado. O “zero um”
teria contado a ele, em dezembro de 2018,
haver recebido uma dica de um policial
federal, entre o primeiro e segundo tur-
no da campanha: o nome de Queiroz apa-
recera na investigação. Em 15 de outu-
bro, oito dias após o primeiro turno, o ex-
-PM foi demitido do gabinete de Flávio
na Assembleia. No mesmo dia, sua filha

Nathalia deixou o gabinete de deputado
federal de Bolsonaro.


Com base no relato de Marinho, o Mi-
nistério Público Federal abriu um inqué-
rito sobre a “dica”. Senador e suplente de-
veriam ter ficado frente a frente em 21
de setembro, mas Flávio deu bolo. Foi a
Manaus, participar de um programa de
tevê policialesco. Antes, tentara evitar o
tête-à-tête sob a alegação de ter contraído
Covid-19. “Com certeza alguém mentiu,
né? E não fui eu”, disse Marinho ao che-
gar para a acareação que não houve. O
procurador à frente do inquérito, Eduar-
do Benones, acredita que o senador quis
atrapalhar ao não aparecer e propôs ao
procurador-geral da República, Augus-
to Aras, averiguar um crime de desobe-
diência. Logo Aras, indicado ao cargo pe-
lo pai do rapaz.


O alegado uso de uma loja de choco-
lates para Flávio lavar grana foi ironiza-
do em uma música recente da banda de
rock Detonautas, do vocalista Tico San-
ta Cruz, um progressista. Um dos versos
diz que “zero um é Willy Wonka”, o no-
me do dono da “fantástica fábrica de cho-
colates” do filme e do livro homônimos.


Quem ficou mais chateada foi a
madrasta de Wonka. A canção in-
titula-se Micheque, referência aos
89 mil reais depositados pelo casal
Queiroz na conta da esposa de Jair.
“Hey Michelle, conta aqui pra nós,
a grana que entrou na sua conta é
do Queiroz? Hey capitão, como is-
so aconteceu?”, diz o refrão.


A primeira-dama tenta na Jus-
tiça proibir a música de ser toca-
da em qualquer lugar, na web ou
no mundo real. Sente-se vítima
de injúria, calúnia e difamação.
Teria sido “difamada” pela Folha
também? O jornal noticiou nos úl-
timos dias que o programa social
comandado por Michelle no gover-
no, o Pátria Voluntária, de incenti-
vo à caridade, beneficiou entidades

evangélicas indicadas pela ministra pro-
testante da Família, Damares Alves. E te-
ria sido abastecido com verba dada por um
frigorífico para a compra de testes rápi-
dos de Covid-19, um desvio de finalidade.


Quando se soube, em dezembro de
2018, dos primeiros 24 mil depositados
por Queiroz na conta de Michelle, Bolso-
naro afirmou que era a devolução de um
empréstimo de 40 mil ao amigo. E os ou-
tros 65 mil, noticiados em agosto passa-
do? Questionado a respeito por um jor-
nalista de O Globo, reagiu assim: “Vonta-
de de encher a tua boca na porrada, tá?”

 
No dia do lançamento da música Mi­
cheque, a Rede Globo foi proibida por uma
juíza do Rio, Cristina Serra Feijó, da 33ª
Vara Criminal, de divulgar documentos
da investigação sobre Flávio. A liminar
havia sido pedida pelo senador sob o ar-
gumento de que seu caso é sigiloso. Outro
capítulo da guerra do clã com a emisso-
ra. Bolsonaro reduziu a verba publicitária
federal destinada ao canal. Pediu à Justi-
ça direito de resposta no Jornal Nacional,
por ter sido responsabilizado pelas mor-
tes na pandemia de coronavírus, quando
estas alcançaram 100 mil. Em uma via-
gem há alguns dias a uma fazenda em Ma-
to Grosso, um major do Exército de sua
comitiva tirou a equipe global do evento.


A emissora foi ao Supremo Tribunal
Federal contra a censura no caso de Flá-
vio. O caso está com o mato-grossense
Gilmar Mendes. Que fará ele? Mendes
tornou-se inimigo do lavajatismo, que a
emissora apoia, e agora é íntimo de Bol-
sonaro. Recebeu-o em um jantar, no qual
o menu foi a intenção do presidente de in-
dicar este mês o juiz Kassio Nunes Mar-
ques para o Supremo. Consta, aliás, que
Flávio abençoa a escolha do pai.


Em agosto, Mendes tinha mandado
Queiroz para casa, após a prisão
domiciliar dele ter sido dada e re-
vogada pelo Superior Tribunal de
Justiça. No STJ, o juiz do caso “ra-
chadinhas”, Félix Fischer, tem si-
do duro. Negou vários pedidos do
“zero um” para anular provas e a
investigação toda. O senador ten-
ta zerar a apuração, iniciada por
um juiz de primeira instância,
Flávio Itabaiana, desde que con-
seguiu foro privilegiado no TJ do
Rio em junho. O MP fluminense
foi ao Supremo contra o foro. Com
quem o caso está? Mendes. Que é
quem cuida de todo o caso Flávio-
-Queiroz na corte.
É… Bolsonaro tem motivos

para beijar a mão do togado an-
tes de indicar um novo integran-
te do Supremo. •

 

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