September 6, 2020

O abc de Aldir Blanc

 ­ Foto: Mello Menezes

Luiz Fernando Vianna

Aldir Blanc morreu na segunda-feira 4 após 23 noites lutando contra a Covid-19. Fica uma obra de mais de 600 canções, construída, em grande medida, com os pés na rua da realidade e a cabeça na lua da liberdade poética. “O corona não tem como comer a obra dele”, disse seu parceiro Guinga. “Quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças”, prometeu outro parceiro, João Bosco.

ÉPOCA montou um ABC inevitavelmente parcial, sem a audácia de propor “o melhor de”. Muitos versos soberbos ficaram de fora. É uma compilação, à guisa de homenagem, para exemplificar a excelência das letras de Blanc.

Amor

O amor é estar no inferno

ao som da Ave Maria

“Nem cais nem barco”, com Guinga

 

O amor é a patada da fera

na cara do domador

“Falso brilhante”, com João Bosco

 

Acho que o amor é a ausência

de engarrafamento

“Transversal do tempo”, com Bosco

 

O amor é meu pastor:

tudo me faltará

“Oração perdida”, com Jayme Vignoli  e Luiz Flavio Alcofra

 

Boemia

Todo boêmio é feliz/Porque quanto mais triste, mais se ilude

“Me dá a penúltima”, com Bosco

 

Eu não resisto aos botequins

mais vagabundos/mas

não pretendia te envergonhar

“Pra que pedir perdão?”, com Moacyr Luz

 

Mas a tarde começa a cair e eu perco o sossego/Sentindo correr

no meu sangue de negro/O chamado do samba e do botequim

“Mãos de aventureiro” (sem parceria)

 

Carnaval

Por um bloco que aumente/o movimento/que sacuda e arrebente/ o cordão de isolamento

“Plataforma”, com Bosco

 

Carnaval, missa campal/

do povo brasileiro/onde a hóstia sagrada é o pandeiro

“Vitória da ilusão”, com Luz

 

Imaginar o Salgueiro,/lua sobre o sangue de linda mulher.../é preciso

o universo inteiro/pra mostrar o que o Salgueiro é

“Lua sobre sangue”, com Cláudio Jorge

 

Delírios

Estrela é só um incêndio na solidão

“Pra que pedir perdão?”, com Luz

 

A terra onde nasceu o Peter Pan/

fica entre a Vila e o Maracanã

“Ramo de delírios”, com Guinga

 

No Rio: mar./Ouço Netuno assoviar/

Um Gershwin Clara Nunes/que faz vibrar feito flauta/os túneis

“Delírio carioca”, com Guinga

 

Elas

Bem que eu queria dar com fé uma cacarecada/Mas minha nega é maior e vacinada

“Feminismo no Estácio”, com Bosco

 

Um mulherão, balangandãs, cerâmica e sisal/Língua assim, a conta certa entre a baunilha e o sal

“Coisa feita”, com Bosco e Paulo Emílio

 

Fascínio tenho eu/por falsas louras/

(ai, a negra lingerie)/Com sardas,/

sobrancelha feitas a lápis/

e perfume da Coty

“Miss Sueter”, com Bosco

 

Família

Mãe,/arranha o vidro da janela/onde a sujeira vela/por nós dois/porque eu não sei/quem anda mais sozinho./ Aí eu perdi o ninho, a casa/o colo, a crença/Só nossa doença não me abandonou

“Choro-réquiem”, com Guinga

 

Ponho a mão na testa do meu neto/

e é meu avô que está estendendo

a mão./Nessa comunhão dos três/ eu sou avô do meu avô

“Acalanto pros netos”, com Cristovão Bastos

 

Galos de briga

O rubro das brigas duras/dos galos de fogo puro/rubro gengivas de ódio/antes das manchas no muro

“Galos de briga”, com Bosco

 

Meu companheiro/tá armado até

os dentes/já não há mais moinhos/

como os de antigamente

“O cavaleiro e os moinhos”, com Bosco

 

Mas, ovelha negra me desgarrei/

o meu pastor não sabe que eu sei/

Da arma oculta na sua mão

“Agnus sei”, com Bosco

 

História negra

Rubras cascatas/jorravam das

costas dos santos/entre cantos

e chibatas/inundando o coração/

do pessoal do porão

“O mestre-sala dos mares”, com Bosco

 

Preso,/marca a rebeldia/traz pra senzala/a luz do amanhã

“Da África à Sapucaí”, com Bosco

 

O escuro do negreiro/O açoite

pardo do feitor/E um clarão enganador/A liberdade sonhada ainda não chegou

“Rainha negra”, com Luz

 

Irmãos

Perder um amigo/Perder o sentido/ Perder a visão/As mãos, os ouvidos

“Perder um amigo”, com Maurício Tapajós

 

Os irmãos Francisco, Herbert, Henrique/são muito engraçados./ São marujos de um navio/várias vezes posto a pique/nem por isso perdem o riso

“Quatro irmãos”, com Leandro Braga

 

Jobim

Toco piano e a Virgem canta,/diz pro Menino: Tio Tom./Senta à vontade

e a coxa santa me dá saudade

do Leblon

“Jobiniana”, com Guinga

 

O Jobim, sabiá, bem-te-vi

“Querelas do Brasil”, com Tapajós

 

Lua

Estrela, no adeus/faz com que/tua luz me proteja,/me beija de leve/azul serenata ao luar Moonlight serenade, versão para música de Glenn Miller

Mulher lunar,/hoje eu te louvo no momento em que te pões

“Mulher lunar”, com Luiz Carlos da Vila

 

Machismo

Ele vai voltar tarde/Cheirando

a cerveja/Se atirar de sapatos

na cama vazia/E dormir na hora murmurando: Dora/E você é Maria

“Bodas de prata”, com Bosco

 

Eu não posso me queixar/

pra Delegacia da Mulher/

ninguém pra testemunhar/

como é a violência em meu lar

“Delegacia da Mulher”, com Luz

 

Noite

Ah, vida noturna/eu sou

a borboleta mais vadia/na doce flor/

da tua hipocrisia

“Vida noturna”, com Bosco

 

Um cuba libre treme na mão fria/ao striptease da agonia/de cada um que deixa o cabaré/lá fora, a luz do dia fere os olhos

“Cabaré”, com Bosco

­ Foto: Aldir Blanc e João Bosco / Acervo pessoal
­ Foto: Aldir Blanc e João Bosco / Acervo pessoal

Oceanos

Eu, teu corsário preso/vou partir

a geleira da solidão/E buscar

a mão do mar

“Corsário”, com Bosco

 

O dom de acariciar/Profundamente feito o mar,/Remexendo o que naufragou/Lentamente na solidão

“Restos de um naufrágio”, com Luz

 

Pares

Sentindo frio em minh’alma/

Te convidei para dançar/

A tua voz me acalmava/

São dois pra lá, dois pra cá

“Dois pra lá, dois pra cá”, com Bosco

 

Nos dissemos/que o começo

é sempre,/sempre inesquecível/

e, no entanto, meu amor,

que coisa incrível,/esqueci nosso começo inesquecível

“Latin lover”, com Bosco

 

Querelas do Brasil

O Brazil não merece o Brasil/O Brazil tá matando o Brasil

“Querelas do Brasil”, com Tapajós

 

Chora a nossa pátria, mãe gentil/

choram Marias e Clarices/

no solo do Brasil

“O bêbado e a equilibrista”, com Bosco

 

Grampearam o menino do corpo fechado/e barbarizaram com mais de cem tiros./Treze anos de vida sem misericórdia/E a misericórdia no último tiro

“Tiro de misericórdia”, com Bosco

 

Se alastra entre os gurus/visões diluvianas/Carmen Miranda teme/

que não haja mais bananas

“Diluvianas”, com Guinga

 

Rio de Janeiro

Brasil, Brasil/tua cara ainda é o Rio de Janeiro/três por quatro na foto

e o teu corpo/precisa se regenerar

“Saudades da Guanabara”, com Luz e Paulo César Pinheiro

 

Um dia vi Iemanjá/cantando num dancing lá.../Me diz aí: que mal há/

em ser da Praça Mauá

“Praça Mauá: que mal há?”, com Luz

 

Samba

Meu samba é casa de marimbondo/ Tem sempre enxame pra quem mexer

“Casa de marimbondo”, com Bosco

 

Ele é um samba de quadra da Mangueira/que Deus letrou,/

dá aula sobre a cidade/e nessa universidade/é o reitor

“Flores em vida para Nelson Sargento”, com Luz

 

Tempo

E o tempo se rói com inveja de mim,/

me vigia querendo aprender/como eu morro de amor/pra tentar reviver

“Resposta ao tempo”, com Cristovão Bastos

 

50 anos são bodas de sangue/casei com a inconstância e o prazer

“50 anos”, com Bastos

 

Uniões estáveis

Se eu tô/Devendo dinheiro e vem um me cobrar/Dotô, a peste abre a porta e ainda manda sentar

“Incompatibilidade de gênios”, com Bosco

 

Eu sou teu acaso/e por acaso tu és minha sina,/somos sorte e azar,/eu sou tua relíquia/tu és minha ruína

“Siameses”, com Bosco

 

As sandálias, e eu batendo em teu rosto/E a queda dos saltos tão altos/

Sobre os nossos filhos

“Altos e baixos”, com Sueli Costa

 

Meu catavento tem dentro o vento escancarado do Arpoador/Teu girassol tem de fora o escondido do Engenho de Dentro da flor

“Catavento e girassol”, com Guinga

 

Vila Isabel

Os netos... o quintal... Vila Isabel.../

Todo o Brasil era sol, quarador

“Tempos do onça e da fera — Quarador”, com Bosco

 

Zune o vento e valsam os oitis/no velho boulevard/bosques de Viena

“Viena fica na 28 de setembro”, com Bosco

 

X do problema

Entre amar e matar não sobra espaço/quanta lâmina rente

ao meu abraço/e cristais

de arsênico em meu beijo/

vão matar o que mais quero

“Canção do lobisomem”, com Guinga

 

Num lance alguém se suicida/

e a marca de uma ferida/

não sai com o apagador

“Tabelas”, com Bosco

 

Zona Norte

Há quem não se importe/mas a

Zona Norte/é feito cigana/lendo a minha sorte

“Só dói quando eu Rio”, com Luz

 

Dirá um dodói que Tolstói era chuva demais pra tão pouca planta./

Ô, trouxa, heroínas sem par

podem brotar na Rússia/

ou lá em Água Santa

“Lupicínica”, com Vignoli

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