POR CARLOS DRUMMOND
Proposta de Emenda Cons-
titucional encaminhada
pelo governo ao Congres-
so na quinta-feira 3, da re-
forma administrativa, po-
deria ser chamada também de “ajuste fis-
cal, o retorno”. O motivo dessa dupla
identidade é que a PEC visa quase que ex-
clusivamente reduzir gastos correntes
por meio da quebra da estabilidade fun-
cional para fins de demissão, um expe-
diente para rebaixar as remunerações
dos atuais servidores e os salários das no-
vas contratações, motivo de alguns a con-
siderarem apenas, ou principalmente,
um novo capítulo da política de austeri-
dade fiscal permanente de Paulo Guedes.
Além de pôr em risco as condições
fundamentais exigidas para o exercício
das funções dos servidores ao extinguir a
estabilidade, não responde à necessidade
de aprimorar o serviço público, não re-
duz a burocracia nem enfrenta o autori-
tarismo crônico na relação entre os fun-
cionários e o público. Tampouco reduz o
custo da máquina do Estado, segundo es-
pecialistas. Não bastasse, contém mais
uma excrescência governamental, a ou-
torga de poderes arbitrários adicionais
ao presidente da República por meio da
inserção na Constituição de dispositivo
que completa a submissão ao mercado,
conforme se esclarecerá adiante.
Cardoso Jr., do Ipea:
“A proposta é uma
perfumaria, um
choquezinho liberal
dos anos 1990”
A republicanização e a redemocrati-
zação do Estado deveriam ser os eixos
de qualquer reforma que se pretenda fa-
zer, defende José Celso Cardoso Júnior,
economista do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada e presidente da
Associação Nacional de Funcionários da
instituição. A reforma atual é, no entan-
to, “uma perfumaria, um choquezinho de
gestão da linha gerencialista liberal dos
anos 1990, que obviamente não vai me-
lhorar em nada o desempenho, a relação
do Estado com a sociedade, nem alargar
as possibilidades de cobertura das polí-
ticas sociais, nem diminuir desigualda-
de nenhuma, pelo contrário, vai aumen-
tar. A proposta em essência é retirar o
Estado das políticas públicas e tornar o
servidor mais vulnerável para cumprir
as missões institucionais das organiza-
ções que foram criadas ou fortalecidas
da Constituição de 1988 para cá”, analisa.
O fim da estabilidade é a derrubada da
última muralha de proteção do funcioná-
rio contra o assédio institucional caracte-
rizado, segundo associações profissionais
do setor, por recorrentes ameaças, cercea-
mentos, constrangimentos, desautoriza-
ções, desqualificações e deslegitimações
do trabalho do servidor público e que se
tornou a forma dominante de relaciona-
mento entre distintas instâncias ou or-
ganizações hierárquicas em cada poder
da União e entre chefias e subordinados.
Um comportamento de várias autorida-
des liderado pelo próprio presidente da
República, quando persegue o funcioná-
rio do Ibama que o multou por pesca ile-
gal em 2012 em Angra dos Reis, e provoca
a demissão do presidente do Inpe, Ricardo
Galvão, no ano passado, por ter cumprido
com a sua obrigação funcional de retratar
as queimadas na Amazônia, entre inúme-
ros exemplos. A conduta lamentável ocor-
re também no uso de fiscais municipais
pelo prefeito Marcelo Crivella, do Rio de
Janeiro, para intimidar usuários de ser-
viços de saúde, nas seguidas ofensas lan-
çadas pelo ministro da Economia Paulo
Guedes à categoria, composta, segundo ele,
de parasitas, merecedores de “uma gra-
nada no bolso”, ou na humilhação impos-
ta pelo desembargador Eduardo Siqueira,
do Tribunal de Justiça de São Paulo, a um
guarda civil municipal de Santos que o
multou por não usar a máscara obrigató-
ria para reduzir o risco de transmissão da
Covid-19. Não é difícil imaginar que uma
escalada ainda maior de desmandos seria
a consequência inevitável da pretendida
derrubada da estabilidade dos servidores.
“A imposição de um serviço públi-
co sem estabilidade, sem carreira, sem
vínculo e com retorno ao clientelismo
e ao coronelismo do início do século XX
significará a transformação perfeita de
crime em modelo”, sintetiza o sindicato
dos professores do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Sul. Não há dúvida, prosse-
gue a entidade em editorial, quanto ao
interesse de Bolsonaro em extinguir ór-
gãos como Incra, Ibama e ICMBio, os
quais tem criticado por exercerem suas
funções legais.
“Esse projeto não é sério, a não ser
no sentido de que encaminha a destrui-
ção do Estado e de que protege a elite do
funcionalismo”, pondera o economis-
ta Sérgio Mendonça, ex-secretário de
Recursos Humanos do serviço público
federal de 2003 a 2007 e de 2012 a 2016.
Caso seja aprovado como está, diz, pra-
ticamente tira os principais incentivos
para ser servidor que são a estabilidade
e a aposentadoria integral. Com a refor-
ma da Previdência e o fim da estabilida-
de, elimina-se o poder de o Estado atrair
quadros mais qualificados. Se o funcio-
nário pode ser demitido como qualquer
trabalhador do setor privado, relutará
em fazer concurso público, onde a ativi-
dade é mais engessada, burocratizada e
a responsabilização é grande. “É um pro-
jeto confuso, mais voltado para o curto
prazo, para a questão fiscal e o mercado,
mas é evidente que é necessário discu-
tir a avaliação do desempenho, com mais
seriedade, no serviço público”, ressalva
Mendonça. “Isso é importante, e não é
uma questão liberal, acho que a esquer-
da tem de defender isso. Porque é dinhei-
ro público que está ali.”
Os cidadãos precisam de acesso, diz,
aos dados e a defesas céleres em relação
ao serviço público e é necessário aumen-
tar muito a transparência. “A população
não tem uma boa imagem do serviço pú-
blico. Não vamos negar, não vamos tapar
o sol com a peneira. É possível melho-
rar, ter um Estado a serviço do público,
da redução das desigualdades de renda
e regional, com instrumentos para fa-
zer essas políticas públicas.” É dispen-
sável, prossegue, uma estabilidade rígi-
da para todos, como, certamente, audi-
tores fiscais, procuradores, juízes e ou-
tros precisam. Caberia, portanto, uma
gestão mais flexível.
Quanto à questão de em quais áreas
se quer atrair e reter quadros no Estado,
dependeria “da concepção que está por
trás”. Nos governos do PT, houve con-
curso público para 250 mil vagas, dos
quais 60% na área da educação, em
universidades e institutos federais.
“Queríamos fortalecer o Estado por es-
se viés. Então havia uma concepção”, su-
blinha o economista.
Não há garantia de que proposta do
atual governo tenha efeito apenas pa-
ra as próximas contratações e nenhu-
ma repercussão nos funcionários ho-
je na ativa. “A reforma atual pode dimi-
nuir gastos no meio do caminho, nas fa-
ses II e III, propor tabelas salariais, for-
mas de progressão, de avaliação de de-
sempenho, enfim, as questões que ain-
da não apareceram na PEC. Nesse caso,
teria algum efeito sobre o funcionalis-
mo que está aí”, diz Mendonça.
Segundo Francisco Gaetani, coorde-
nador do mestrado profissionalizante
em Administração Pública da Fundação
Getulio Vargas, a reforma administra-
tiva é um desafio permanente em todos
os governos, inclusive em outros países.
“A sociedade muda, os valores mudam,
a tecnologia evolui, o mundo se trans-
forma e é natural que todos os gover-
nos estejam buscando continuamente
se reestruturar”, afirmou Gaetani du-
rante encontro da Frente Parlamentar
Mista da Reforma Administrativa, que
discutiu o engajamento e a valorização
do servidor público.
Um indício da existência de consen-
so quanto à necessidade de aprimora-
mento é a ampla aceitação de pontos
integrantes da atual proposta de refor-
ma como o fim da aposentadoria com-
pulsória de servidores como modalidade
de punição, a proibição de promoções ou
progressões na carreira exclusivamen-
te por tempo de serviço e o veto a mais
de 30 dias de férias por ano. O progres-
so técnico facilita esse aprimoramento.
“Com a digitalização e outros avanços,
não há mais necessidade de grandes ar-
quivos e enormes contingentes de pes-
soal em cargos de níveis auxiliar e mé-
dio. A parte desse serviço que será ne-
cessário manter com funcionários é pos-
sível resolver com jovens. Na nossa ad-
ministração, pensamos em usar o Enem
como porta de entrada. O serviço públi-
co é uma oportunidade para os jovens
entre 18 e 20 anos de famílias de mais
baixa renda, de regi ões menos desen-
volvidas, que ingressariam no Estado
não por meio de concursos ultraeliti-
zados, nos quais só os filhos das classes
média e alta conseguem passar”, desta-
ca Mendonça. Há rumores de que o go-
verno cogita algo semelhante em uma
próxima etapa da reforma.
Um dos pontos mais polêmicos do pro-
jeto é a proposta de introduzir no arti-
go 37 da Constituição, que relaciona os
princípios da administração pública, o
princípio da subsidiariedade, descar-
tado na Constituinte de 1988. Gilberto
Bercovici, professor titular de Direito
Econômico e Economia Política da
Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo, afirma que a ideia nada mais
é que a preponderância do setor priva-
do. “O Estado auxiliaria e supriria a ini-
ciativa privada em suas deficiências e ca-
rências, só as substituindo excepcional-
mente. A atuação do Estado seria a exce-
ção, não a regra.”
O serviço público
é mal avaliado
e uma reforma
administrativa séria
precisa ser discutida
Assim como a reforma administrati-
va tem muito de ajuste fiscal, várias ou-
tras PECs encaminham indiretamen-
te a reforma administrativa pretendida
pelo governo, sublinha Cardoso Júnior
A estratégia de pulverização de mudan-
ças enfraquece ainda mais a presunção
de que a PEC 32 consista em uma pro-
posta merecedora do nome e reforça o
seu caráter de mais um movimento ru-
mo à austeridade. “Veja que a reforma ad-
ministrativa na verdade está em curso.
Há várias PECs e medidas infraconsti-
tucionais em curso que vão dando a ca-
ra do que quer o atual governo sobre is-
so. A PEC 188, que vai ser retomada no
Senado, é terrível, porque ela não só su-
gere o corte dos vencimentos dos servi-
dores em 25%, como extingue o plano
plurianual. É a tal PEC do pacto federati-
vo, que propõe a extinção de municípios,
e contém um detalhe importantíssimo,
que ninguém está olhando com atenção,
uma proposta de mudança do artigo 6º
da Constituição, no qual eles pretendem
incluir um conceito surreal, que é o equi-
líbrio fiscal intergeracional.”
Isso seria, segundo o economista,
uma das mais graves violações de direi-
tos constitucionais fundamentais do
Estado Democrático de Direito no Brasil
desde 1988. O artigo 6º da Constituição
estabelece os direitos a educação, saúde,
alimentação, trabalho, moradia, trans-
porte, lazer, segurança, previdência so-
cial, proteção à maternidade e à infância
e assistência aos desamparados. A mo-
dificação proposta pelo governo repre-
senta uma “relativização ou severa res-
trição dos direitos sociais fundamen-
tais ao condicioná-los ao ‘equilíbrio fis-
cal intergeracional’, mesmo sendo este
um pseudoconceito, teórica e empirica-
mente questionável. Representará uma
petrificação das finanças públicas bra-
sileiras, uma verdadeira normalização
da exceção, que instalará uma ‘situação
de emergência fiscal permanente’, além
do teto de gastos”.
O recurso encontrado pelo governo pa-
ra justificar a presumida necessidade de
arrocho incessante distribuído em inú-
meras PECs é manipular números para
alegar explosão de despesas com o fun-
cionalismo e inchaço do Estado “gasta-
dor”. São manobras primárias, mostra
a Associação Nacional dos Servidores
da Carreira de Especialista em Meio
Ambiente. “Para justificar a reforma,
o governo usou a estratégia cherry pi-
cking, coleta seletiva de dados que con-
firmem uma tese, mas sem considerar o
todo composto de informações que pos-
sam contradizê-las. Como o governo fez
isso? ‘Esquecendo’ de descontar a infla-
ção.” Os dados mostrados pelo governo,
descreve a Ascema, são de gastos com
salários que saltariam de 44,8 bilhões
de reais em 2008 para 109,8 bilhões em
2029, mais que dobrando, portanto, nes-
sa conta da entidade, mas, considerada a
inflação, caem para 58,8 bilhões. “O go-
verno não quer que os cidadãos saibam
que os gastos com servidores aumenta-
ram 31% nos últimos 12 anos, em vez de
145%, uma curva praticamente estável no
aumento das despesas com pessoal ativo
do Executivo Federal.”
Outras alegações econômicas do go-
verno igualmente não se sustentam,
mostra a comparação internacional. A
arrecadação tributária, que alegam ser
elevadíssima, corresponde a 35,6% do
PIB, enquanto na média dos países da
OCDE é de 42,4%, segundo dados de 2015
da própria organização. Ao contrário do
que alegam, o Estado brasileiro não é in-
chado. O total de funcionários públicos
em relação ao conjunto da população
ocupada é de 12%, enquanto nos países
da OCDE é quase o dobro disso, 21,3%,
de acordo com a mesma fonte. Os salários
mais polpudos em relação àqueles da ini-
ciativa privada valem só para um punha-
do de privilegiados nos três poderes, jus-
tamente a parcela poupada pela reforma
de Bolsonaro e Guedes. A grande massa
de funcionários, 60% a 70%, ganha mui-
to mal, tão mal quanto a maior parte dos
trabalhadores do setor privado. •
Good reading yoour post
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