August 12, 2020

Fortuna se consagrou como 'o cartunista dos cartunistas'

 

 Homem segura, diante de seu rosto, folha de papel em que se lê "Aberto para balanço". Ele está com os olhos arregalados e a boca aberta, de forma bem-humorada

Thales de Menezes

Quando Fortuna começou a trabalhar na Folha, em 1979, já era um cartunista e artista gráfico consagrado.

Desenvolveu estilo próprio e moderno de humor nos anos 1950, adicionou a crítica política aos seus cartuns na década seguinte, fundou com amigos talentosos o semanário O Pasquim e, nos anos 1970, criou uma revista de quadrinhos lendária, O Bicho.

Sua entrada no jornal foi a retomada de uma parceria. Fortuna recebeu o convite de Tarso de Castro, então editor do suplemento cultural Folhetim. Ambos faziam parte da equipe que criou O Pasquim, em 1969.

Na Folha, ele reuniu duas frentes de trabalho que o agradavam muito: a charge política certeira e uma inovadora proposta visual de diagramação e paginação. Ele criou o projeto gráfico do Folhetim.

Depois de anos combativos sob o regime militar, em veículos como o jornal Correio da Manhã (para onde foi levado por Antonio Callado), Pasquim e a revista Veja, Fortuna chegou à Folha no clima de um certo renascimento cultural diante da anistia política.

Produziu então uma sequência admirável de charges e cartuns, alguns funcionando como a própria capa do Folhetim.

Seguir a trajetória do maranhense Reginaldo Fortuna, nascido em 21 de agosto de 1931 em São Luís, é um encontro constante com grandes intelectuais brasileiros. Já no Rio, em 1951, foi Millôr Fernandes que sugeriu a ele assinar seus desenhos como Fortuna, quando ambos trabalhavam na revista A Cigarra.

Na década anterior, muito jovem e com o pseudônimo Ricardo Forte, ele publicou ilustrações e textos em revistas para público infantil, como a Sesinho (publicação do Sesi) e a consagrada Tico-Tico.

Em A Cigarra, Fortuna atravessou a década de 1950 refinando seu humor e criando seu traço definitivo. Passeando por várias seções da revista, experimentou técnicas de gravura, inseriu fotos em ilustrações, entrevistou desenhistas e traduziu cartuns de autores estrangeiros para apresentá-los ao público brasileiro.

No início dos anos 1960, trabalhou nas revistas Senhor e Pif-Paf, esta editada pelo amigo Millôr. Foi então que Fortuna trouxe para seu desenho o comentário político e econômico, que nunca abandonou. Recuperar seus cartuns a partir daí é uma forma de entender a história do Brasil.

Em 1965, ele foi para o Correio da Manhã. O editor Antonio Callado descrevia Fortuna como “líder de um cartunismo editorial”. O conteúdo das charges do jornal passou a se comunicar com a cobertura política, com uma intensidade nunca antes experimentada.

Ele deixou a publicação em 1968. Juntou-se então a um time de amigos dispostos a construir um bunker de resistência no Pasquim.

Ao lado de textos de nomes hoje lendários, como Paulo Francis, Ivan Lessa e Sérgio Cabral, a equipe que ilustrava o jornal era um “dream team”, com Jaguar, Millôr, Ziraldo, Fortuna, Miguel Paiva e Claudius.

Foi no Pasquim que Fortuna criou seus personagens mais longevos de HQ, Madame e seu Bicho Muito Louco (um cachorro de bigode). Jaguar classifica a proposta como surreal. As histórias da senhora arrogante e seu cão um tanto filósofo passaram a sair em 1975 na revista O Bicho, idealizada pelo próprio Fortuna. Durou oito exemplares, hoje disputados nos sebos a preços estratosféricos.

Antes da aventura em O Bicho, Fortuna trabalhou na Veja, entre 1974 e 1976, com uma série de capas de desenhos engraçados e críticos.

Em 1979 veio sua passagem pela Folha. Ele integrou a equipe do jornal até 1984, mas seguiu colaborando com charges até o ano seguinte.

Enquanto trabalhava na Folha, colaborou com a revista O Careta, comandada pelo amigo Tarso de Castro, nas 19 edições publicadas. Na segunda metade dos anos 1980, ele atuou na imprensa sindical e publicou livros em editoras pequenas.

Em 1994, retornou à charge política no jornal Gazeta Mercantil. Essa nova fase foi interrompida em 5 de setembro daquele ano, quando morreu de um infarto fulminante, aos 63 anos.

No Salão de Humor de Piracicaba de 1995, foi criada a medalha Reginaldo Fortuna, que depois seria concedida a vários de seus amigos, como Jaguar, Millôr e Ziraldo. A homenagem valida o epíteto consagrado dado a Fortuna, “o cartunista dos cartunistas”.

O poeta, ensaísta e diplomata Felipe Fortuna, filho do cartunista, tece considerações sobre possíveis sucessores do pai.

“Creio que, durante um período, tanto Luscar quanto Alcy foram cartunistas cujo trabalho mostra influência do traço e da contundência do Fortuna. Em vários depoimentos, Laerte se diz muito devedora do trabalho político do Fortuna, sobretudo no início, quando ela ainda desenhava para a revista Balão e para a imprensa nanica. Esses são os três nomes que me parecem mais evidentes.”

Em 2014, foi publicado pelas Edições Pinakotheke a coletânea “Fortuna – O Cartunista dos Cartunistas”. Lá estão reunidos trabalhos de todas as fases da carreira dele. Ainda é encontrado nas livrarias.

Leia a seguir, a entrevista com o poeta e ensaísta Felipe Fortuna, filho do cartunista. Diplomata, ele falou com a Folha de Seul, na Coreia do Sul. Ele conta que prepara a edição de um livro com textos de Fortuna, caso raro de desenhista que também escrevia prosa.

A maior parte dos cartunistas não se arrisca a escrever prosa. No máximo, fazem roteiros de HQ. Fortuna escrevia muito bem, mesmo sem apoio dos desenhos. É incomum, não?
Sim, é bastante incomum que cartunistas escrevam textos. A grande exceção foi Millôr Fernandes, justamente quem certa vez declarou que Fortuna seria um grande escritor, se escrevesse... Mas Fortuna sempre escreveu bastante e chegou a lançar um livro somente com textos de humor, “Acho Tudo Muito Estranho (Já o Professor Reginaldo, Não)”, da editora Anita Garibaldi, em 1992. Se não me engano, duas influências no texto de Fortuna são James Thurber e Stanislaw Ponte Preta. Planejo organizar um novo livro só de textos do Fortuna.

Fortuna gostava de trabalhar em equipe. Ele contou muito a você sobre a criação do Pasquim, naquele time de feras?
Há várias histórias sobre o “Pasquim”, claro, pois ele não apenas participou do dia a dia do jornal, mas também de algumas entrevistas. Seu maior amigo ali foi o cartunista Jaguar. Mas Ziraldo, quando Fortuna morreu, fez um desenho em que disse: “Eu era apaixonado pelo Millôr, mas quem me ensinou tudo foi o Fortuna.” Meu pai foi para o “Pasquim” depois de ter passado pela antiga “Senhor” e pela “Pif-Paf”, revista do Millôr, onde também estavam Claudius e Ziraldo. Depois fez amizades boas com Luiz Gê, Laerte e Angeli.

Todo mundo ressalta que o Fortuna era incrivelmente culto. Ele consumia diariamente jornais e livros?Fortuna lia muito, principalmente ficção e história. Foi amigo de Otto Maria Carpeaux no “Correio da Manhã”. Gostava de antologias, em especial “Mar de Histórias”, de Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Rónai. Há referências, tanto na família quanto entre amigos, de que desejava ser escritor, mas acabou desenhista.

Lembro que lia diariamente o “Jornal do Brasil”. Acompanhava a “New Yorker”, a “National Lampoon” e também o humor francês, principalmente Siné, Wolinski e Reiser. E tinha interesse por economia, em especial pelo processo decisório que levava a aumentos de salários e pelo principal tema das suas charges, o custo de vida. Não lia tanto livros de economia, apenas o noticiário. Ele nunca deixou de caricaturar os banqueiros como homens de cartola e abotoaduras. E, no final da vida, acabou trabalhando para sindicatos, produzindo revistas.

O livro "O Cartunista dos Cartunistas" consegue dar realmente a dimensão do trabalho do seu pai?
É um repositório, um mapa da mina. Houve também, em 2009, o lançamento do catálogo “A Arte de Desdesenhar”, a partir de uma exposição dos desenhos do Fortuna nos Correios. Creio que falta fazer um novo trabalho de curadoria, estabelecendo fases e influências, e trazendo comentários de um especialista. Toda a fase da revista “A Cigarra” e da “Revista da Semana” me parece riquíssima. Ainda este mês, Ana Paula Simonaci e Sérgio Cohn publicarão o número 12 da revista “Expressa” dedicado ao Fortuna, com novos depoimentos e desenhos e originais ainda inéditos em livro.

O que precisa ser feito, de fato, é a republicação de alguns trabalhos no formato original, acompanhado de um bom acervo de informações. Creio que, em algum momento, será importante ter um site dedicado ao Fortuna. Por ora, estou mais preocupado em organizar livros e tratar do acervo. Mas aceito propostas!

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